Perturba-me escrita por Laila Gouveia


Capítulo 31
até o pôr do sol


Notas iniciais do capítulo

"E se um dia hei de ser pó, cinza e nada, que seja minha noite uma alvorada, que eu saiba me perder para me encontrar..."



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Pelos lados, era possível perceber a pena estampada na face das pessoas. Eu mal sabia quem era a maioria presente ali. Indiferente disso, nada significava para eles. Depois, cada um estaria em suas respectivas casas, tranquilos, sem medo, e com suas famílias de propaganda de margarina.

Eu sentia uma insuportável vontade de estar naquele caixão aberto. Queria que fosse eu ali. Deveria ter sido eu.

Eu!

Minha cabeça doía e meu rosto queimava. Vi minha mãe chegar perto do caixão e abaixar-se sussurrando, como se tivesse em uma última conversa íntima. Aquilo fez meu coração apertar dentro de meu peito.

Temos que leva-lo, minha pequena. Vovô disse calmo.

Recuei um passo para trás e gritei sem pensar. Eles não o levariam de mim. De jeito nenhum! Eu nunca deixaria que isso acontecesse. Formei uma postura rígida e corri até seu corpo. Abracei-o com tanta força, mostrando que ninguém lhe tocaria, além de mim.

►•( :: )•◄

Ela urrou com a dor que sentiu ao receber o tiro, e em sequência um silêncio permeou o ambiente. Deslizei pelo chão, completamente impulsionada por um desespero que invadiu-me assim que a bala atravessara o ar.

Apoiei-me nos joelhos e tapei a boca, resfolegante. Meu nariz escorreu e percebi que estava segurando o choro.

—Por favor, olhe para mim. —Coloquei a mão em sua nuca e levantei sua cabeça. —Olhe para mim.

—Dói muito. —Maya abriu os olhos encarando o buraco em seu peito, referindo-se ao polegar que eu insistia em pressionar por cima, na tentativa de estancar e impedir a hemorragia.

Tirei o dedo de seu ferimento, e rasguei um pedaço da minha blusa. Amarrei o pano com toda força, mas o sangue conseguira facilmente ultrapassar.

—Eles falaram de você o caminho todo. —Sua voz saiu tão baixo, que mal era audível. Eu apenas escutei porque estávamos próximas o suficiente. —Ela m-machucou os d-dois tamb-bém? —As sílabas eram pronunciadas pausadamente.

—Não! —Tirei meu celular do bolso com a mão tremendo. —Bellamy disse que os encontrou. Vamos tirar vocês daqui assim como prometi, ok? —Tentei ao máximo reconfortá-la.

O toque gelado de seus dedos impediu que eu discasse o número da emergência. Ouvir que eles haviam sido achados a fez sorrir minimamente. Porém, o gesto foi desfeito por uma tosse sufocante, fazendo com que mais sangue saísse por sua boca.

—D-diz pro m-meu pai q-que eu s-sinto m-muito. —Ela gaguejava. —D-debaixo do c-colchão d-eixei pra e-ele. Diz... Diz...

—Não faça esforço. —Implorei.

—P-prom-meta. —Um tom opaco começara a tirar a vivacidade de seus olhos suplicantes.

—Prometo. —Respondi, em meio ao amolecimento definitivo de seu pálido corpo.

Proferiu um sussurro, no segundo em que suas pálpebras desceram. Fiquei encurvada. Minha enxurrada de nãos foi em vão. Muito lentamente, pousei a palma da mão sobre o peito dela. Maya já não respirava.

Afastei-me subitamente. Minha única reação foi esfregar meu braço, tentando limpá-los. Eu queria arrancar minha pele! Desfazer tudo aquilo. Eu só conseguia tremer. Olhava fixamente para ela envolta daquela poça escura. Sem vida. Um corpo sem vida. Um corpo que tivera uma vida.

Assim que minha mente decidiu trabalhar, a única pessoa que pensei foi em Jasper. Imaginá-lo tornou-se o estopim...

Parecia que não tinha como parar de chorar, parecia que todas as gotas do oceano estavam sendo expelidas por mim. Meu corpo estava estático, porém, por dentro, era como se minha alma lutasse pra sair e gritar. Uma guerra acontecia dentro de mim, e o sangue saia convertido em lágrimas que deslizavam por minhas bochechas e pendiam no queixo. Não aguentava tanta dor e eu demonstrava isso através das lágrimas que escorriam cada vez mais e mais, sem parar por um segundo; sem nem dar tempo de respirar a vontade. Meus pulmões tentavam a todo custo puxar oxigênio, mas fraquejavam.

Eu teria ficado ali, jogando minha cabeça para trás contra a porta dos armários, -o barulho ecoando por toda escola-, se não fosse pela terceira mulher presente no corredor, ter se jogado contra mim com as mãos apertadas na minha garganta.

Num ato rápido e impensado, consegui desvencilhar-me, encontrando outra vez os olhos vermelhos brilhantes que eu passara a temer.

—A namoradinha esquisita daquele seu amigo chato recebeu o que merecia. —Tinha me esquecido de Lexa. Sua voz assustadora retornara sobre qualquer coisa, em meio a um sorriso gelado e cheio de desprezo.

Senti-me compelida a dizer que aquela não era ela verdadeiramente, mas meu corpo não conseguia reagir, então apenas anui.

Um puxão me fez perder o equilíbrio. Outro puxão me fez voar para o lado. Minha cabeça bateu contra o chão com tamanha força, deixando-me atordoada. Meu rosto ainda estava molhado, e eu sequer fiz menção a se levantar. Lexa ficou olhando, e aguardando alguma atitude.

Eu insisti em não me mover, até quando uma voz no fundo do meu ser manifestou-se. “Faça algo, porra!”. Aquele som que eu escutava, não pertencia a nenhum timbre conhecido; somente a mesma voz que nomeei por semanas, de consciência. Mesmo assim, ignorei. No entanto, a voz não aguentou minha inutilidade posta sob o chão e retornou; quase como se debatendo dentro de mim. “Se você não vai fazer nada, eu vou!”.

Minhas pernas seguiram sozinhas. Nem mesmo a dona dos olhos vermelhos entendeu o que aconteceu no momento seguinte. Minha boca já estava cravada em seu braço, tentando ao máximo feri-la como um cachorro com raiva. Um fluxo espesso e quente fora meu alimento por poucos e dosados segundos. Recuei sentindo-me tonta e cansada, mas a castanha não deixou barato minha reação impulsiva.

Eu deixei que Lexa me batesse o quanto quisesse e era até engraçado, mas quando percebi sua fúria indomável, o desespero chegou. Fui acertada incontáveis vezes, pela mulher que eu aprendera a amar. Se eu dissesse que não estava com medo, estaria mentindo, e se dissesse que não estava doendo, estaria mentindo três vezes mais.

Por um momento eu não tive mais certeza de nada, e minha visão era tão escurecida, que imaginei estar de olhos fechados novamente. Mas eles estavam abertos, eu sabia disso. Eram apenas pontos pretos dançando diante das minhas pupilas, obstruindo minha visão, que já não estava muito boa por conta da escuridão da escola. De qualquer forma, era preocupante, e mesmo já não me sentindo muito bem, com a cabeça latejando e ficando cada vez mais desnorteada, eu tinha noção disso. Mas minha certeza não durou muito, pois foi transformada em outra coisa. Eu sabia que se ela continuasse, eu desmaiaria ali mesmo, e isso acabaria por acontecer, porque o corredor foi se tornando um breu maior.

◘◘◘◘

▬▬▬▬▬▬▬

Soltei um grito ensurdecedor. O por quê? Não saberia responder. E eu que pensara que ela fosse diferente. Acreditei tantas vezes em sua doçura que cheguei ao ponto de me jogar em seus braços no carro naquela noite. Mas agora eu estava com raiva. Com muita raiva por ter sido estúpida, e acreditado.

Pouco a pouco fui ganhando noção do espaço e ambiente em que estava. As pontadas de dores por causa da surra que a Griffin, –quer dizer, eu.-, recebera instalou-se em mim fazendo-me urrar. A tal da Greta, agarrou meu braço e me jogou atrás dela. Cravei as unhas e me contorci, tentando fugir. Ela deu um soco no meu estômago. Maldita! Tropecei para trás, lutando para inspirar o ar que se recusava a entrar em meus pulmões. Não, não... Você pode até deixar esses surtos estúpidos surgirem e vencerem a ti, mas eu não sou fraca igual. De jeito nenhum!

—Vai para o inferno. —Gemi.

A garota riu. Sim, ela teve a audácia de rir na minha cara. É uma pena o seu rosto ser tão lindo, pois eu vou detoná-lo em breve.

O ar fugiu do meu corpo novamente e a Clarke dentro dele entrava em um estado quase de pânico. Queria manda-la ficar quieta, mas no fundo eu sabia que deveria estar seguindo o seu exemplo covarde.

Agarrei um estilete sujo caído ao chão, e consegui enfiar no braço da castanha. Que no instante, arquejou levemente afrouxando seu aperto apenas por alguns segundos. Para seu azar, era o tempo exato que eu precisava.

Levantei-me com dificuldade, e estava pronta para ataca-la quando de repente uma voz masculina adentrou meu ouvido: “Seus amigos estão do lado de fora, mas estão querendo entrar de novo. São onze e quarenta, princesa. Não tenho mais tempo! Preciso que venha até nós agora.”

 

○ Primeiramente, constatações>

1- Esse cara me chamou de princesa? Que tosco!

2- Quem se importa com amigos quando sou eu aqui dentro?

3- Ele disse que não têm mais tempo? Oh quiridu, Quem não está tendo mais tempo aqui soy yo!

4- Digo e repito: Ele me chamou de princesa? Sério mesmo? Isto realmente foi tosco.

 

Ok, eu deveria respondê-lo de uma vez.

—Poderia me dar uma dica de como ir até vocês? Porque tá difícil. —Gritei. Esperando que dessa forma ele fosse me entender.

—Está pronta para mostrar o que aprendeu em nossas aulas de boxe? —A garota falou, enquanto caminhava até mim. Ainda segurando o braço que eu ferira.

Sim, eu a chamaria de garota ou Greta pelo resto de minha vida. Não conseguia mais proferir o nome falso que eu acostumara.

Meus olhos voaram a séries de janelas enfileiradas na parede oposta. Pensei se poderia abrir uma delas e fugir antes que Greta me pegasse. Entre outros milhares de pensamentos que tratavam da minha própria sobrevivência, disse para mim mesma que não deveria estar amedrontada. De algum lugar lá no fundo veio as lembranças dessas tais ‘aulas de boxe’. Olhe nos olhos... Pareça confiante... Use senso... Aff... Tudo fácil de dizer e difícil de fazer. Principalmente quando uma maníaca está chegando mais perto.

“Não serei capaz de chegar a tempo. Você está compreendendo? Corra o mais rápido possível. Corre e não pare!” Aquela voz masculina alertou-me outra vez. Fiquei tentada a gritar um: Você não manda em mim!, mas naquele momento, eu não encontrei outra solução, senão fugir. Bem, eu até podia bater na garota, igual os carinhas daqueles jogos que os dois bobos dos meus melhores amigos insistem em jogar, -Como é o nome mesmo? Street Fighter?-, enfim, o problema do caso era simplesmente culpa da minha inutilidade e vulnerabilidade. Quem mandou apanhar sem reagir. Agora não consigo enfrenta-la de igual pra igual.

Saí em disparada pelos corredores. Entrei no ginásio coberto e joguei-me contra a porta, esperando invadir o corredor. Em vez disso, a sensação era de estar batendo contra uma parede. Puxei a maçaneta, pois achava que a porta estava destrancada. Mas só achei mesmo. Abri os olhos exasperando minha frustação, e vi a garota dos olhos vermelhos aproximando-se. Eu precisava descobrir uma saída.

Presa na parede entre as arquibancadas havia uma escada de ferro. Subia até o conjunto de vigas no alto do ginásio. Na extremidade das vigas, na parede oposta, quase exatamente acima do lugar onde eu estava, existia um canal de ventilação. Se eu conseguisse chegar até lá, poderia atravessá-lo e encontrar outro caminho para baixo, ou para cima.

Corri em toda velocidade, mesmo com o homem dos planos pedindo para que eu seguisse um outro caminho mais seguro. Até conclui que a opção dele era melhor, entretanto, eu já o obedeci uma vez. Já chega! Agora vou seguir minhas intuições, e ele que se dane.

Meus sapatos batiam na madeira, ecoando no espaço vazio, tornando impossível ouvir se Greta estava me seguindo. Coloquei o pé no primeiro degrau da escada e comecei a escalar. Subi um degrau, depois outro. Pelo canto do olho, vi o bebedouro lá embaixo. Parecia pequeno, o que significava que eu estava alto, bem alto. Não olhe para baixo, ordenei para a Griffin, que entrara mais uma vez em desespero. Arrisquei subir mais um degrau. A escada chacoalhou por não ser devidamente soldada à parede.

Imagens de quedas passavam por minha cabeça. Então meu cérebro vacilou, e eu não consegui lembrar que sentido era para cima ou para baixo.

O medo foi tão intenso que turvou minha visão. Mas não me sucumbi, e continuei. No alto, transferi-me perigosamente para a viga mais próxima. Agarrei-a com os braços, então passei a perna direita para cima. Estava de frente para a parede, de costas para a saída de ventilação. Mas não havia nada que eu pudesse fazer, afinal. Com muito cuidado, ergui-me sobre os joelhos. Com toda concentração, comecei a me estreitar de costas, para atravessar toda largura do ginásio.

Mas era tarde demais.

Greta subira depressa e estava a menos de quatro metros de mim. Ela escalou. Com uma das mãos após a outra, foi se arrastando na minha direção. Nós duas estávamos agarradas à viga, sentadas face a face.

—O que seu escolhido achará, se eu sequestra-la? —Ela perguntou em um sussurro fino.

—Ele não é meu escolhido. Eca! —Afirmei.

Seus olhos assustadores ganharam um tom de confusão. E eu achei divertido. Se ela não estivesse querendo me matar, ou sei lá o que ela quer, eu até poderia ficar dentro de um carro mais uma vez a luz do luar.

Não, nunca mais!

No entanto, quando eu estava pronta para empurra-la, algo fez-me bloquear. De novo. Só que dessa vez, era algo mais forte e eu não pude resistir.

◘◘◘◘

▬▬▬▬▬▬▬

Abri os olhos com um suspiro, como se eu tivesse sido resgatada de um afogamento. Olhei para baixo e deparei-me com uma altura significativa do chão. Ah, senhor! Meu pavor de altura fez jus ao tremor que meu corpo iniciara, enquanto todos os meus membros ficaram gelados. Não tinha ideia de como cheguei aqui.

Bellamy, então, surgiu lá embaixo, no piso do ginásio. E eu respirei um tanto aliviada. Vê-lo ali, tão distante fez com que eu quisesse voltar no tempo. Reviver cada momento. Mais um sorriso secreto, mais uma risada, mais um beijo. Porém, assim que pus meus olhos sob a figura ao meu lado, meu tremor aumentou em proporções.

Lexa estava quase grudada em mim, e seus olhos brilhantes causou certo embrulho no meu estomago. Fiquei enojada, não por tê-la ao meu lado, mas por estarmos naquela situação. De certa forma, eu tinha um pouco de culpa. Sim, eu tinha! E encarar sua face angelical, comparando com suas ultimas ações, trazia-me ao meu ponto máximo de culpa e arrependimento.  

—Irei tirar você, dele. Assim como ele a tirou de mim. —Ela disse.

—Ele faz com que os demônios que existem em minha cabeça desapareçam. Ele faz o lugar sombrio se tornar o céu. Cada vez que ele me toca, sinto meu corpo derreter como neve em um dia de sol. Sou frágil e forte ao lado dele... Contudo, demorei em entender e descobrir isto. E a culpa é sua.

Os olhos surpresos dela, agora piscavam como luzes de natal. A cor de suas íris mudava de vermelho para verde em frações de segundos, e algo dentro de mim soube que Lexa devia estar numa batalha interna.

—Sabe o porquê você é culpada? —Prossegui, inibindo meu medo.

Ela não respondeu, apenas continuava com os olhos piscando.

—Porque você é minha confusão. Eu não sei como, mas existe uma parte dentro de mim que corresponde aos seus sentimentos. Mas a outra parte, não. A outra parte o quer. Só ele!

—Está dizendo isso porque está com medo. Posso sentir seu pavor.

—Me sinto confusa, Lexa.

—Sou Greta! —Fez menção a gritar, e eu me agarrei ainda mais a viga.

—Não! Não é! Quando esbarrou em mim na porta do banheiro, quando sentou ao meu lado na arquibancada, quando dividiu pipoca comigo no cinema, quando brincou comigo no parque, quando ajudou-me na escola, quando desceu do céu para me proteger... Cada momento que esteve ao meu lado, foi a Lexa.

Tão de repente, os olhos dela voltaram a ficar verdes esmeraldas. Mesmo estando desprovidos de luz, examinavam-me atentamente, absorvendo cada palavra que eu dizia. Eu podia ver em sua expressão, que ela estava pesando minhas palavras. Um rubor tomou conta de seu rosto, e eu soube que ela acreditava.

Ela estava vacilante, e eu não resisti em olhar para Bellamy novamente. O Blake estava imóvel, em posição calculada para o caso de eu cair. Mas sua transpiração era identificável, ele estava a exatos dez minutos de sua transgressão ao corpo do inimigo.

Foi quando um grito dilacerante ecoou por todo prédio da escola. Não precisei de mais de um segundo para distinguir o som, e confirmar mentalmente que o dono era Jasper.

Um: não, agudo e sofrido foi à resposta para o que ele havia encontrado. Mesmo longe, estava claro que meu melhor amigo tinha voltado e visto sua, doce Maya. Eu podia imaginar ele jogado sob o corpo embebido de sangue, berrando para que ela respirasse.

Lágrimas tomaram conta de meus olhos, e uma decisão fácil entrou em mim.

—Você matou ela. —Falei, encarando a castanha ao meu lado. —Eu matei ela...

Juntamente, aniquilei meus sonhos, minhas verdades foram apagadas. O pior de tudo: meu coração fora trapaceado pela única artéria de esperança que o fazia pulsar, ir adiante. Fui enganada por minhas decisões, e o que restara? Nada além de culpa. Eu não fazia ideia de como tinha vindo parar ali pendurada na viga. Não fazia ideia de como tinha conseguido piorar minha vida em tão pouco tempo. Não fazia ideia de como seria depois. Mas tinha ideia de apenas uma coisa... Estava na hora de por fim ao mal infinito que eu vinha trazendo para todos ao meu redor.

Um fim para meu martírio, um ponto final rápido e indolor.

Dividi minha atenção no homem e na mulher. E sequei meu rosto com minha mão livre, deixando que uma última lágrima escorresse em pedido de desculpa. Ou talvez ‘sinto muito’ fosse mais propicio. Bem, eu só esperava que ele entendesse.

E então, -mais rápido que meus próprios pensamentos-, adentrei o tubo de ventilação, aproveitando minha chance. Engatinhei sem olhar para trás. Não parei, até achar a saída. Tirei a placa de proteção e sai, pisando no concreto sólido.

Mesmo escuro pela noite, eu percebi facilmente que tinha chegado ao teto/cobertura. Meus ossos e músculos estavam doloridos, e lentamente caminhei em direção à beirada da escola.

Analisei brevemente o pátio ao longe, a quadra e o campo. Cada espaço que eu usufrui e vivenciei ao longo dos anos estudantil. Pensei em minha mãe, Vovô, Octavia, Raven, Monty, Jasper... Mundo. Cabeça. Mente. Memórias. Cansada... Estou tão cansada desse mundo que me pertence.

 —Não se mova! —Lexa gritou em ordem, assim que meus pés já quase alcançavam.

A voz dela retornara com aquele ar diferente. Ruim. E minhas entranhas congelaram.

Joguei-me do prédio escolar tendo certeza que: Meus amigos estariam melhor sem os riscos que eu atraio. Minha mãe estaria melhor sem ter que ficar constantemente se preocupando com meus problemas de existência. Bellamy estaria melhor comigo facilitando e dando-lhe o que sempre almejou. Tudo estaria melhor. Tudo!

Há muitas coisas na vida que não podemos evitar, como o vento batendo em seu cabelo, como um sorriso, uma lágrima, apaixonar-se. São coisas que, por mais que você não queira, algum dia acabará acontecendo. São coisas inevitáveis.

Como a morte.

Você nasce, cresce, sofre e é feliz no meio do caminho; talvez se reproduza, talvez não... Vive cem anos, ou apenas dezoito... Não importa o caminho que você vai levar.

No final, apenas a morte lhe espera.

►•( :: )•◄

Com a mochila nas costas, eu caminhava por todo meu solitário bairro. Olhei para o horizonte e o sol parecia querer ir embora. Só então percebi que a minha rua, -nossa exclusiva rua-, era um lugar bonito. Bonito demais!

As árvores deixavam frestas de luz tocar o asfalto, e o canto dos pássaros eram músicas perfeitas. O gramado do quintal se estendia até o final da pequena colina onde ficava minha casa aristocrática decadente. Ela combinava perfeitamente com a paisagem: um jardim bem cuidado enfeitava a entrada, o colorido das flores enchia de vida a fachada. A luz rosada do entardecer deixava a paisagem bem mais bela.

Dei três pulinhos infantis, para subir os degraus da varanda. Abri a porta principal, largando minha mochila pesada em qualquer canto no chão. Sentindo-me leve, eu caminhei até a cozinha.

Um homem alto, usando moletom, brigava com as panelas tentando fazer ovos mexidos. No pequeno rádio em cima do balcão, um CD girava tocando 'Here Comes The Sun' dos The Beatles.

—Até que enfim, chegou. —Ele sorriu.

—Pai. —Soltei, surpresa.

—Como foi na escola? —Perguntou sereno.

—Foi horrível. —Meus olhos ficaram automaticamente marejados.

—Vem aqui. Me dê um abraço. —Ele largou a panela no fogo, e abriu os braços mais acolhedores do mundo.

Não hesitei. Afaguei meu rosto em seu peito e envolvi meus braços na tentativa falha de rodeá-lo por completo. Seu corpo era quente, e seu cheiro me lembrava o escritório, com imperceptíveis sensações da brisa do mar e cabana de férias.

—O que houve? —Ele insistiu.

—Destruí minha vida. Fiz tudo errado. E agora, pessoas irão sofrer por minha causa.

—É tão grave assim?

—Foram tantas coisas depois que você nos deixou. Tantas... Não pude mais suportar.

—Nunca lhe deixei.

—Quando dei o nó em sua gravata aquele dia, e o vi saindo pela porta com sua maleta. Eu senti algo. Eu deveria ter feito você ficar. —Comecei a soluçar.

—Perdoe-se.  

—Vim ficar contigo. —Apertei o abraço.

—Estou preparando omelete.

—Ainda nem é sábado. —Sorri sentindo-me absurdamente completa e feliz, por tê-lo ali. Colado a mim.

—Todo dia é sábado. Todo dia podemos ficar assim.

—Quero ficar assim pra sempre.

—Então ficaremos.

A suave melodia invadia a casa.

—Pai... —Sussurrei ainda presa em seus braços.

—Diga meu amor.

—Tive medo de descobrir que você e eu não somos pessoas boas.

—Por que temeu isto?

—Por causa de nosso sangue.

—Não são genes que definem as pessoas. Sabe disso, não é?

—Sei...

Encarei propositalmente, seus olhos azuis intensos.

—Senti tanto sua falta.

—Mas eu estou aqui. —Ele apontava para meu peito. Indicava meu coração.

—Não tive a chance de dizer que Te amo.

—Você e sua mãe são minhas meninas. As mulheres da minha vida.

O quão reconfortante fora ouvi-lo. Papai era e pra sempre será minha alma gêmea.

Uma porta se abriu e fechou. Esperei ouvir passos se aproximando, mas o único som era o tique-taque de um relógio: pancadas rítmicas e regulares que violavam a voz de John Lennon. O som começou a diminuir, perdendo o ritmo. Fiquei pensando se notaria quando parasse completamente. Temi aquele momento, insegura quanto ao que viria a seguir.

Um som muito mais vibrante se sobrepôs ao relógio. Era um som reconfortante e etéreo, uma dança no ar. Asas, pensei. Vieram para me levar.

—Eu acredito em você, meu amor. Acredito veemente. —Papai sussurrava.

Prendi a respiração, esperando, esperando, esperando.

—Clarke! —Meu pai gritou, assustando-me.

 Então o relógio começou a andar ao contrário. Senti como se algo fluído começasse a espiralar dentro de mim, em um redemoinho cada vez mais profundo.

—Clarke! —Ele gritara novamente.

—Pai, não me deixe! —Tentei responder ao alcance, mas minha voz se afastava.

Eu era jogada na correnteza. Estava carregando através de mim mesma, até chegar numa luz branca e quente.

►•( :: )•◄

Lentamente meus olhos se entreabriram, e quando conseguiram se acostumar, visualizei o céu estrelado. Eu estava em movimento, logo, alguém me segurava. Meu corpo ficou tenso por alguns instantes, antes de perceber os braços de quem eu estava.

Analisei a expressão de meu salvador. Os traços fortes e bem desenvolvidos, a boca tensa; sem a constante do humor. Os olhos pareciam mais profundos, aguçados por um instinto protetor.

—Clarke. Você está me vendo? —A voz dele era dura e ao mesmo tempo, mansa, decisiva e gentil.

Sorri vislumbrada, mas assim que fiz o menor dos movimentos, meu coração gelou. A mesma sensação de pisar em falso; quando pisamos em algum degrau e descobrimos estar pisando em nada. Foi exatamente deste jeito que senti-me. Desta forma vacilante, quando notei ainda estar no ar.

—Foi uma bela briga no ginásio. —Disse ele.

Arregalei meus olhos, tentando enxergar melhor onde eu estava. Ele se revelou, suas asas enormes e negras, de envergadura grande, cada pena como a chama de uma vela sendo soprada pelo vento. Voando! Estávamos voando.

—Suas asas! —Gritei. —Bellamy, são suas asas!

—Sim... —Ele sorriu torto.

—Estou morta? —Disse baixinho.

Tentei reconstruir minhas lembranças, tentando examina-las de trás para frente.

—Algum descendente de Chauncey precisava morrer para que eu me tornasse humano.

—Eu morri. —Agarrei-me mais ao seu corpo, com medo de cair. Mesmo sabendo que este medo não era mais necessário.

—Não aceitei seu sacrifício quando pulou. Eu recusei.

Senti minha boca abrir. O vento adentrava minhas narinas.

—Você desistiu... —Encarei seus olhos. —Desistiu de ter um corpo humano?

—Desisti. —Ele afirmara, irredutível.

—Por minha causa?

—De que adianta ter um corpo se eu não puder ter você?

Tão de repente, lágrimas escorreram por meu rosto. E Bellamy apertou-me ainda mais.  Bem devagarzinho, o pânico cedeu e eu soube que tudo tinha acabado. Eu ficaria bem.

—Você salvou minha vida.

—Você que salvou a minha.

—Não! Bellamy, você salvou a vida de alguém. O perdão. Suas asas! Você é um...

—Sim... Fui perdoado. Sou um anjo, agora.

Uma mistura de sentimento percorreu cada célula do meu corpo. Ele é um anjo? Um anjo de verdade? Ele não é mais um decaído? Não mais?

—Quer dizer que...

—Não poderei mais ficar na terra. Devo arcar com minhas escolhas.

Eu não conseguia pensar mais; não conseguia dizer mais nada. Lentamente, o Blake foi diminuindo o bater de suas lindas asas e começara a descer. Ele deitou-me no gramado do campo de futebol, e eu senti a grama pinicar-me.

—A polícia está chegando. —Disse perto de meu ouvido.

—Os meninos?

—Seu amigo ligou. Eles estão lá dentro, não sabem que você pulou.

—Lexa?

—Ela não está mais aqui.

—Onde ela está? —Eu queria saber onde minha Lexa verdadeira estava. Eu queria!

—Não sei.

Ao longe, era possível ouvir o barulho da sirene. Flocos de neve ainda caiam do céu, e atingiam minha face.

—Vai voltar pra mim? —Perguntei em desespero, assim que o moreno levantou-se e abriu seu par de asas, amedrontadoras aos olhos de leigos.

—Sim.

—Promete que vai voltar?

—Prometo, princesa.

Desejei segurar sua mão e não soltar nunca mais. Desejei saber onde Lexa havia ido. Desejei... No entanto, o arrepio foi inevitável quando o momento seguinte em que presenciei, era dos paramédicos levando-me em macas para a ambulância. Como se eu estivesse na cena de um crime. Eu podia ouvir minha mãe chegar e gritar por meu nome. Podia ver meus dois melhores amigos caminhando com mantas, e outra maca sendo deslizada com um pano branco cobrindo o corpo.

•••

Não costumava acreditar em Contos de Fadas e Histórias de Terror. Desde criança eu era o tipo realista de garota. Sempre acreditei que podia escrever meu próprio destino com base em minhas escolhas, no entanto, com a chegada de dois estranhos em Coldwater, minhas crenças começaram a mudar de formas drásticas. Era eu mesma quem ditava as regras? Ou era eu, apenas uma peça de algo maior já escrito há muito tempo?

Amei, por mais que pareceu errado.

Lutei, por aquilo que achei ser certo.

Sofri, pelas perdas e consequências de meus atos.

Cai, pelo que jamais poderá ser meu outra vez.

E agora, não podia especular o que aconteceria. Eu só tinha certeza que histórias com final feliz, são histórias que ainda não acabaram...

 


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Notas finais do capítulo

FIM?

O próximo capítulo será POV Blake.
Darei explicações sobre minha ausência e o que pretendo com a fic em breve...



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