Arborescente escrita por nywphadora, nywphadora


Capítulo 2
Capítulo dois




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Apesar de tudo, eu passei as minhas primeiras aulas da manhã muito bem. Sendo uma integrante da Amizade, eu deveria estar acompanhada de pessoas ao meu redor, mas esse era o motivo pelo qual eu sentia que não me encaixava ali. Eu tinha grandes dificuldades para iniciar uma conversa com uma pessoa; portanto, tinha dificuldade para fazer amigos.

Muitas vezes, eu me sentia solitária. Porém, logo eu chegava na fazenda e esse sentimento se dispersava. As outras pessoas também deviam sentir que eu era estranha e, por isso, não se aproximavam enquanto estávamos na cidade. Austin e Eleonore eram legais, mas não tínhamos a amizade tão invejada que eu via entre membros de facções como, por exemplo, a Audácia.

Realmente muito irônico para alguém de minha facção. Eu parecia com os abnegados, sempre quietos em seus cantos. Sentavam-se na mesma mesa, mas não se esforçavam para puxar assunto, já que isso exigiria, teoricamente, falar de si próprios, coisa que eles detestavam.

Estava indo em direção ao refeitório quando vi duas garotas discutindo. Uma era da Franqueza; a outra, da Audácia. Eu deveria ter ignorado e seguido para a mesa com os meus amigos, mas isso não era algo que alguém da Amizade, que prezava a paz, deveria fazer.

Elas aumentaram o volume da voz, chamando a atenção dos que estavam indo para o mesmo caminho que eu e, até mesmo, dos que já estavam lá dentro.

― Ei! ― aproximei-me, tocando no ombro da garota da Audácia. Péssima ideia.

― Não me toque ― a garota deu um tapa forte na minha mão, afastando-a de onde estava.

Outro motivo pelo qual não me identifico com minha facção: falta de paciência.

― O que houve? ― perguntei, respirando fundo para ignorar a grosseria da garota.

― Acho que você não deveria se intrometer no que não é da sua conta ― disse a garota da Franqueza. Seu olhar não demonstrava repúdio ou raiva, era apenas a forma de sua facção agir: dizer sempre a verdade, não importa o quanto magoe. E, confesso, era uma qualidade que eu admirava.

― É, garota! Vai lá com o pessoal da sua laia, se drogar e cantar musiquinhas de ciranda ― disse a outra, dando um sorriso debochado.

Naquele momento, senti meu sangue ferver por baixo de minha pele.

― O que você disse? ― perguntei, tentando manter minha expressão calma.

― Acho que a maconha afetou a sua mente ― voltou a debochar, esquecendo completamente da menina com a qual brigava até pouco tempo.

Harmonia pacífica. Entendimento mútuo. Relacionamento pacífico.

― O que foi? Perdeu a língua?

Paz. Acordo. Cordialidade. Confiança. Auto-suficiência.

― Já chega, Elspeth ― a garota da Franqueza disse, desviando o foco dela.

Perdão. Bondade...

Eu não pensei em nada disso quando acertei minha mão aberta na cara dela.

Não precisava me virar para saber que tinha vários olhares incrédulos sobre as minhas costas, mas eu não me importei nem um pouco com isso. Eu estava cansada de ter que aturar as pessoas debochando de mim, de ter que aturar grosserias sem poder dizer qualquer coisa, tendo que aguentar tudo calada.

Senti uma mão me puxando para o outro lado e agradeci silenciosamente a ela, pois não queria ver quando Elspeth se recuperasse do choque e partisse para cima de mim.

***

Estava sentada no sofá de casa, olhando atentamente para as minhas mãos, tentando ignorar o olhar de decepção que minha mãe desprendia.

― O que foi aquilo? ― meu pai perguntou, por fim.

― Ela falou da nossa facção... ― murmurei.

― Acho que o colégio deveria dar mais importância aos manifestos ― interrompeu minha mãe ― Lembra da auto-suficiência?

― Mãe, eu... ― tentei falar.

― “A opinião dos outros não podem te fazer mal” ― recitou.

― Não é tão simples assim, ok?

― Eu sei que não é, mas você precisa se esforçar.

Meu pai finalmente me olhou, pela primeira vez desde que voltei do colégio.

― Você não comeu o pão ― lembrou-se, como se isso importasse no momento.

Minha mãe desviou o olhar de mim para ele, e eu esperei que ela surtasse com ele por um comentário tão besta, mas ela manteve o rosto impassível.

― O que a droga desse pão tem a ver? ― perguntei, sem me estressar, de fato.

― Não seja grosseira ― bronqueou minha mãe.

― Soro da paz ― disse meu pai ― O pão tem um soro para impedir que vocês briguem, e você não o comeu hoje.

― Eu não o comi várias vezes ― defendi-me.

― Mas hoje você bateu em uma garota ― retrucou minha mãe.

― Eu estava defendendo a uma pessoa. A Amizade deveria ser sobre isso ― disse.

― Defenda sem agredir... ― disse meu pai, desta vez ― Nosso lema também é a paz.

― Impossível defender sendo gentil ― murmurei.

Meus pais não disseram mais nada, mas seus olhares já diziam tudo. Finalmente, estavam começando a entender que eu não pertencia àquela facção.

― A Amizade também se trata de perdoar ― disse minha mãe, agachando-se perto de mim ― Embora muitas vezes seja difícil. Eu te perdoo, mas não deixe de comer o pão, está bem?

Eu concordei com a cabeça e o olhar dela pareceu se transformar completamente, como se nada tivesse acontecido. Queria ter essa habilidade de perdão... De esquecer.

― Eu também te perdoo ― secundou meu pai, mas soou como obrigação ― Vá ajudar a sua avó!

“É só isso?” perguntei-me. Eles deveriam seguir o protocolo e me darem o soro da paz. Talvez não o fizessem porque já tinha se passado bastante tempo desde o acontecido.

― Onde ela está? ― perguntei, por fim.

― Na horta ― respondeu minha mãe, pegando sua bolsa de costura.

Eu passei o resto da tarde com um ancinho ou enxada em minhas mãos. Não encontrei minha avó, então resolvi tirar as folhas caídas das árvores de cima das plantações.

Quando estava revirando a terra vazia, vislumbrei um casal correndo para dentro do pomar. Eles pareciam felizes, embora as roupas da Amizade ajudassem nisso. O verde camuflando-se no meio das plantações altas, um ótimo lugar para dar uns amassos, ou isso suponho.

O único quesito para namorar na Amizade era que os pais aceitassem. Assim, ninguém teria que se estressar. Prestei atenção neles por mais alguns momentos, antes de desaparecerem pelo caminho. Eles pareciam jovens, mas não com 16 anos. Se tivessem essa idade, sofreriam com a incerteza de um futuro juntos. Não conhecemos sequer nossos melhores amigos quando se trata da escolha de nossas facções.

O pensamento das facções me lembrou de quando era pequena, e a opção de deixar a fazenda nem passava por minha cabeça. Dentre as profissões que tínhamos disponíveis, ser música ou pintora eram as opções que sempre me chamaram a atenção. Pintora foi até os meus 6 anos, depois veio minha paixão pelos instrumentos musicais. Lembro-me de que meus pais prometeram que iriam me dar um violão, depois da Cerimônia de Escolha. Agora, mesmo que eles se lembrassem disto, eu duvidava que seria como, um dia, eu sonhei.

― Troque esta roupa, querida ― minha tia apareceu, passando a mão por minha testa suada ― Já está quase na hora do culto.

Larguei a enxada encostada na parede, do lado de fora da minha casa. Entrei sem dar de cara com alguém, e fui até meu quarto, trocar de roupa. As minhas roupas eram todas do mesmo estilo: regata e saia longa. Às vezes, um casaco simples por cima da regata. A única coisa que mudava era a cor das peças.

Perguntava-me o que Deus pensava sobre a minha dúvida, sobre a minha vontade de ir para outra facção, sobre eu não me encaixar ali. Quem sabe toda aquela história de facções fosse algo contra ao que Deus acreditava, sobre todos sermos iguais.

― Aeryn! ― ouvi o grito de minha mãe tirar-me de meus pensamentos.

“Que Ele me perdoe” pensei, antes de sair do quarto.


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