Até que a Morte nos Una escrita por Nuwandah


Capítulo 23
Trégua


Notas iniciais do capítulo

Saudações da quarentena! Espero que todos estejam bem e se cuidando o máximo que podem ♥ Eu queria ter terminado esse capítulo durante as férias, mas inventei que queria fazer pós (pois finalmente me formei! Yeeeey!), então passei boa parte da minha folga estudando pra prova de seleção, então fiquei com pouco tempo pra persuadir o meu cérebro a escrever :’D Mas aí veio essa pandemia e beeem, cá estou eu, presa em casa e em quarentena desde antes do início das aulas, o que significa que os professores nem tiveram chance de passar conteúdo para estudar em casa, soooo tempo livre de verdade!

~imaginem a autora que vos fala vendo vários vídeos sobre banheiros japoneses porque esse povo nunca se cansa de botões e eu, como uma boa brasileira, nunca nem tomei banho em banheira~
Isso me faz pensar em como era desesperador nos primeiros anos em que eu escrevia essa fanfic. O acesso à internet e a disseminação de informação estavam num nível muito abaixo do que temos hoje. Era um absoluto caos eu, adolescente de bairro de interior tentando falar sobre a vida de um garoto vítima de trauma na cabeça se mudando pro meio de Tokyo, pegando metrô pra escola etc, sendo que eu mal pegava um ônibus e nem pisava em hospital (continuo feliz e orgulhosa por ainda manter esse último haha). Gente, eu mal sabia o que era um apartamento! Os tempos mudaram, meus caros leitores, os tempos mudaram...



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Há certos momentos na vida em que o cérebro parece não conseguir seguir adiante com uma informação, parece rejeitá-la e, simplesmente, congela no ato. E você é deixado ali, parado, quase catatônico, esperando que aquele fato mude de alguma forma. Pergunto-me se aquela era uma dessas situações, mas o que queria acreditar mesmo era que o site de pesquisa não havia encontrado nada sobre Sakura e tivesse relacionado aquele monte de resultado a uma pessoa de nome semelhante, afinal, Sakura é um nome bem comum.

E era muito fácil confirmar aquele resultado inexato através de um simples toque no corpo de texto para ter acesso à matéria completa.

Exceto que, ao lado do título e subtítulo, havia uma foto, e era da adolescente encontrada no Sumida, tirada antes de sua história ter sido resumida a algumas frias palavras sobre sua morte precoce em um dos rios mais icônicos do Japão. Os orbes de cor idêntica à de uma esmeralda lapidada encaravam diretamente a lente da câmera, astutos e vivos, bem como seu sorriso, num total contraste com as palavras do título que a acompanhava ao lado.

Aqueles verdes eram inconfundíveis, e as madeixas róseas como a flor recém-desabrochada de uma cerejeira, caindo suavemente pelos lados, não me deixaram ter nem a chance de duvidar se aquela era realmente a Sakura.

Mas o que me garantia que aquele título - principalmente subtítulo - não passava de uma chamada pretensiosa e sensacionalista, construída acima da ética e empatia apenas para conseguir alguns cliques de curiosos e aumentar o número de visitas ao site?

E foi provavelmente graças a esse pensamento em mente que encontrei a coragem necessária para prosseguir com a leitura daquele primeiro resultado da pesquisa. Com uma profunda inspirada, como se estivesse prestes a mergulhar, abri a matéria por completo.

A imagem de uma Sakura sorridente e muito viva que antes era em miniatura me cumprimentou novamente, porém ocupando todo o espaço superior da página. Os infelizes título e subtítulo vinham logo em seguida, muito bem destacados com sua centralização e negrito. A data, ainda deste ano, apontava para a sua escrita como sendo do mês de junino.

Sem mais informações para me distrair do corpo do texto, senti minha traquéia tentando descer com o que quer que estava preso nela, enquanto meus olhos desciam para finalmente ler a matéria:

 

O corpo de Haruno Sakura, de 13 anos, foi encontrado na segunda-feira (15) no Rio Sumida, na altura do Parque Shinkiba, na cidade de Koto, Tokyo. As buscas pela adolescente já duravam quase uma semana.

 

Apesar de serem apenas dados básicos, que preenchem o mínimo de informação que se espera de uma matéria jornalística, aquela primeira parte, mesmo que de escrita atenta ao tecnicismo, fez meu estômago se dobrar. Tentei ao máximo afastar meus pensamentos da imagem do corpo sem vida de Sakura, provavelmente num estado avançado de decomposição, inchado e de cor anômala, sendo retirado da água por desconhecidos enfiados em uniformes imensos que cobrem dos pés à cabeça.

 

A garota estava desaparecida desde a última terça-feira, quando voltava de uma visita à sua avó, que se encontrava internada no Hospital Arakawa. Haruno Masami, após receber a notícia da morte da neta, não resistiu e também faleceu.

 

Algo dentro de mim pareceu cair naquele momento. A avó de Sakura não me era uma figura estranha. Eu lembrava dela do seu diário, lembrava que o estado no qual ela ficou após ter ficado viúva impactou Sakura a ponto de influenciá-la para ter aquele desejo, de fazer aquele pedido na tabuleta do templo, implorando aos deuses que ela morresse junto ao amor de sua vida.

Por causa daquela avó, que ficou doente e que precisou de tratamento especializado em Tokyo, que a alma de Sakura passou a ser ligada à minha, até mesmo após sua morte.

Não consegui deixar de sentir compaixão por aquela velha senhora que, após perder o próprio marido e ficar mal a ponto de ter sua saúde deteriorada por isso, teve seus últimos momentos de vida gastos com a mais profunda angústia pelo desaparecimento da neta e, ao final, o golpe que foi demais para aguentar: a notícia de que sua única neta estava morta.

Era um exercício de empatia muito fácil de se fazer, o de pensar no quanto essa família sofreu, com morte depois de morte assolando desde os membros mais velhos até a mais jovem. Pensando assim, o estado em que estava a mãe de Sakura - Mebuki, eu lembrava - quando a encontrei era muito melhor do que eu esperaria depois de saber um pouco melhor pelo quê ela havia passado num  espaço de tempo que sequer somava um ano.

 

De acordo com peritos que acompanharam o resgate do corpo, a adolescente não aparentava ter sinais de violência, o que reforça a suspeita de que Sakura tirou a própria vida.

 

Aí estava a parte que estava me preocupando. Aquela maldita causa da morte… Porém, a menção de estarem procurando por sinais de violência só pode significar que também estavam trabalhando a hipótese de homicídio; hipótese essa que, só de pensar na possibilidade, fazia uma espécie de calafrio percorrer toda a minha espinha. Imaginar Sakura, aquela garota alegre e inteligente à mercê de alguém mal intencionado o bastante para cometer a barbaridade que é o assassinato de uma menina de apenas treze anos era demais para processar, já era íntimo demais.

Por outro lado, pensar na opção considerada mais plausível, a de que Sakura em algum momento esteve sozinha, desesperada, inconsolável demais para não saber mais o que fazer com a própria vida a não ser acabar com ela... aquilo parecia ser pior de alguma maneira, pois pegava a imagem que tinha de Sakura - sorridente, teimosa, brilhante— e a quebrava em milhares de pedaços farpados, do tipo que penetra fácil na pele, mas que é quase impossível de retirar.

Esperava que, em matérias posteriores, tenham-se confirmado que Sakura havia apenas sofrido um infeliz acidente fatal, afinal, a mídia se atrai por possíveis histórias trágicas que com certeza causam comoção popular, mesmo que boa parte da tragédia seja construída apenas de especulações feitas antes de qualquer resultado conclusivo poder vir a público. Era ainda algo suficientemente ruim e trágico a ideia de que a morte de Sakura seja fruto de um forte revés, mas era a melhor entre as outras alternativas apresentadas até o momento por aquele link.

Precisei pegar mais fôlego para continuar aquela leitura aflitiva.

 

“Ela gostava muito do jovem Sasuke, e aquelas (…)"

 

Quê?! A aparição do meu nome me fez praticamente saltar na cama, a ponto de ficar sentado, agora encurvado sobre a tela do celular, mais atento à leitura, o que já parecia impossível àquela altura. Por que o meu nome estava sendo citado numa matéria sobre a morte de Sakura?

 

(...) primeiras notícias, elas divulgaram que ele tinha morrido também, sabe? Ela deve ter ficado desesperada”, relatou Haruno Mebuki,  mãe da adolescente, para o Jornal Yomiuri. Segundo também ela, Sakura e Uchiha Sasuke estudaram na mesma escola por anos.

 

Em algum momento, a minha mão livre havia se fechado sobre minha boca. Sentia os dedos tremendo contra a pele sensível da bochecha em meio à dormência que o resto do meu corpo havia se afundado. Aquelas eram palavras da própria mãe da Sakura, não eram conjecturas de qualquer jornalista ou opinião de um policial, eram as palavras da mãe de Sakura sobre o porquê da filha dela ter se matado. E esse motivo era eu. Ela achava que era eu. Minha nossa, era eu.

 

Nenhum bilhete foi deixado, porém, a família suspeita de que a adolescente tenha se suicidado por impulso logo após os primeiros noticiamentos do Caso Uchiha, que divulgaram equivocadamente a morte do filho caçula do casal assassinado. Teria o caso uma terceira vítima fatal indiretamente?

 

Eu… meio que sabia desse detalhe do caso (enfermeiros não são exatamente as pessoas mais discretas a se encontrar em um hospital). Aparentemente, me encontraram em um estado tão crítico que precisei ser reanimado ou algo assim em algum momento. Quem viu a cena de fora, juntamente com todo o sangue e sabe-se mais o quê, deve ter pensado que minha luta era uma já perdida, e a notícia inicial que circulou foi a de que toda a família que estava naquele carro abandonado havia morrido.

E foi essa notícia precipitada que circulou de início que transformou o corriqueiro retorno de Sakura do hospital da avó à sua casa na última coisa que ela fez na vida. Foi a notícia espalhada na sangria desatada da mídia e do público diante de uma barbaridade que acabava em tragédia em família. E Sakura, inocente e apegada à sua paixão nutrida por mim desde criança, foi pega sozinha de surpresa nesse redemoinho catastrófico.

(Imagino como deve ter sido para Itachi primeiro receber a notícia de que, de uma hora para outra, havia perdido toda a família, e logo depois descobrir que o irmão, na verdade, havia sobrevivido - porém sem grandes garantias de que continuaria vivo ou de que acordaria de um provável estado vegetativo. E então, a decepção ao descobrir que tudo aquilo havia sido culpa do único sobrevivente.)

Mas nem tudo estava perdido. Ainda não estava confirmada a causa da morte de Sakura. Não que alguma das opções fossem boas, afinal, era uma causa de morte de uma garota de treze anos, de uma amiga. Mas, no fundo, mesmo que de forma egoísta, eu desejava que a mãe de Sakura estivesse errada e que, ao menos, esse peso não estivesse sobre os meus ombros.

Retornei ao buscador. Notícias alguns dias posteriores à essa já deveriam apresentar os resultados conclusivos da perícia. Bastava rolar um pouco pelos títulos ali apresentados que logo encontraria...

 

Romantismo ou só egoísmo: por que tantas adolescentes se suicidam em nome do amor?

Blog do Y

 

Apenas o título sozinho me fez vacilar. O caso de Sakura virou estopim para discussões como essa? O nome dela estava sendo associado a um ato de egoísmo por pessoas que sequer a conheceram?

… Malditos tabloides. Malditos escritores de tabloides e sua sede por cliques em seus sites, não importa o meio. Devia tê-los removido no filtro de pesquisa.

Mas a irritação logo se transformou em algo gelado dentro de mim, pois o título que vinha sendo oferecido a seguir era direto, direto demais:

 

Laudo aponta suicídio como causa da morte em caso de corpo de adolescente encontrado em Koto, Tokyo

O laudo foi divulgado hoje e confirma as suspeitas da polícia e da família

 

Não. Não, não. Não podia ser. A Sakura não… Ela não faria isso. Não a Sakura que eu conheço. Não a garota que praticamente só sabe sorrir. Não a garota que consegue me fazer sorrir.

Meu dedo parecia mexer-se em câmera lenta enquanto se movia para abrir a matéria completa, mas sua tremedeira era quase imperceptível, eu acho.

 

A polícia concluiu nesta quarta-feira (17) a perícia no corpo de Haruno Sakura, 13. A adolescente foi encontrada por volta das seis da manhã no dia 15 por uma arquiteta que praticava corrida no Parque Shinkiba. Seu corpo estava preso às raízes da vegetação da orla, já em avançado estado de decomposição.

 

Não dava, foi preciso desviar o olhar para o teto - para qualquer lugar, menos para aquela tela. Era muito detalhe, e foi preciso uma grande batalha contra a minha mente para barrar a cena que ela construiu a partir das poucas e pesadas palavras. Cada minuciosidade sórdida descrita no texto para satisfazer a curiosidade mórbida dos leitores parecia estar prestes a me deixar enjoado.

Apenas depois de um tempo, de algumas goladas de ar e muitas piscadas, consegui juntar alguma coragem para retornar à leitura:

 

De acordo com o delegado do distrito de Koto, em Tokyo, Sarutobi Yume, o resultado do laudo cadavérico apontou como causa da morte por afogamento. Nenhum sinal de agressão foi encontrado, o que leva a crer que a morte foi de fato por suicídio, a principal hipótese seguida pela polícia até então.

Relembre o caso (...)

 

Num ato de misericórdia para comigo mesmo, minhas mãos impediram meus olhos de continuarem a leitura ao virarem a frente do celular contra o colchão sobre o qual estava sentado. Elas ficaram por cima dele, pressionando forte, como se fossem fazer aquilo tudo se fundir ao outro material e desaparecer para sempre. O som pesado da minha respiração parecendo alto demais em contraste com o silêncio do quarto (não totalmente silencioso, a crescente tempestade do lado de fora se fazia ouvir através dos estalos do vidro da janela), porém perfeitamente compatível com o rebuliço dentro da minha cabeça.

A Sakura se matou. Ela se matou. Ela tirou a própria vida e foi isso. A garota que conheci, cheia de alegria e vontade de conhecer o mundo a sua volta, tirou a própria vida.

 

“Seu corpo estava preso às raízes da vegetação da orla, já em avançado estado de decomposição”.

 

Em algum momento que não registrei, minhas mãos subiram para o meu rosto, os cotovelos apoiados nas pernas cruzadas. Os dedos foram deslizando pelo escalpo à medida que a cabeça pendia mais e mais para baixo, até pararem na nuca, onde se tensionaram ao ponto de puxarem as mechas. Com força.

“Em avançado estado de decomposição”.

Com bastante força.

Ela deve ter sofrido tanto.

Sozinha, abandonada no escuro, apenas com a dor e o desespero para lhe fazerem companhia. Foi assim que ela morreu.

Os pulmões queimando, o corpo na sua fútil batalha final em espasmos.

Sakura tirou a própria vida e ninguém estava lá para impedi-la de se jogar naquele rio, ninguém estava lá para consolá-la.

Naquele rio tem peixe? Eles se alimentaram da sua carne morta? Por isso que a decomposição já estava em um estado avançado?

Ninguém estava lá. Eu não estava lá.

Ou era porque estava no auge de verão?

Sakura cometeu suicídio. E por minha causa.

Ou será que foram as duas coisas?

Não bastava sua alma estar presa no mundo dos vivos por minha causa, mas a culpa de sua morte também recaia sobre mim.

Os cabelos ainda eram róseos ou estavam escurecidos pela lama?

Meu ombro latejava dolorosamente, minha cabeça pulsava. Não foi apenas Sakura quem eu matei.

Os olhos verdes ganharam um tom acinzentado? Ao menos ainda havia olhos?

Seria melhor se eu realmente tivesse morrido naquela noite, ao menos Sakura não continuaria sendo atormentada até depois de sua morte.

“Seu corpo estava preso às raízes da vegetação da orla, já em avançado estado de decomposição”.

Verdade seja dita, teria sido melhor se eu nem tivesse nascido.

Será que ela se arrependeu e tentou nadar? Será que a correnteza a puxou para dentro da água?

Assim, não conheceria Sakura quando éramos crianças, e ela não teria sua vida resumida aos treze, podendo, então, viver a brilhante vida que o futuro lhe guardava de verdade.

Sakura, angustiada e desamparada, vendo sua única solução jazir no fundo de um grande rio.

Teria tudo sido tão melhor se eu não tivesse nascido…

Sakura se jogou para a morte por minha causa.

 

Minha mente deve ter ficado aérea depois de tanta conturbação, pois a próxima coisa da qual estava verdadeiramente ciente era do rosto de Sakura. Vagamente, registrei preocupação em seu olhar, o que não fazia o menor sentido, até que vi que seus lábios mexiam, porém emitiam apenas um som abafado e distante.

Isso… era estranho. Meu cérebro estava estranho, coberto por uma névoa esquisita, que deixava a realidade longe do toque. As pálpebras desceram muito mais lentas do que deveriam ao tentar se livrar da confusão.

— … kun, você está bem? Parece com dor. - E a voz de Sakura voltou. Meio estática, mas voltou.

Pisquei mais algumas vezes para tentar entender melhor o que estava acontecendo. Olhei melhor para Sakura, agachada à minha frente, olhei ao redor e- por que meus pés estavam para o lado da cabeceira da cama?

Meus joelhos ainda estavam puxados para cima, colados ao tronco, denunciando que havia apagado - ou seja lá o que tenha sido isso - em posição fetal, algo totalmente contrario ao meu modo habitual de dormir. O cobertor estava enroscado em apenas algumas partes do corpo, o que explicaria a rigidez dos dedos do pé que senti aos tentar contraí-los.

Aparentemente, eu havia ficado na postura contorcida assumida após as leituras a respeito de Sakura e ficado até meu corpo pender todo para o colchão e lá permanecer, completamente aturdido.

Que grande idiota.

— Sasuke-kun? - Sakura me chamou novamente, apressando o final definitivo de meus devaneios.

Virei a cabeça um pouco rápido demais, visto que, graças ao clima e à noite mal aquecida, minhas cicatrizes latejavam ainda mais forte que no dia anterior. Tal constatação foi o bastante para eu não conseguir segurar a careta que se formou em meu rosto.

— Aconteceu algo? O que foi?

“Seu corpo estava preso às raízes da vegetação da orla, já em avançado estado de decomposição”.

Não deu para evitar de engolir em seco antes murmurar uma resposta que era parcialmente verdade. A voz passou áspera pela garganta.

— Dor de cabeça. - E minhas mãos já estavam entre os fios de cabelo, massageando o tecido tencionado. Meu ombro esquerdo ressoou em descontentamento ao ter sido deixado com todo o peso que estava sendo apoiado nos braços. - E no ombro também. - Admiti logo, era inútil esconder algo tão óbvio de Sakura.

Ela ficou encarando, praticamente escaneando meu corpo. Seus olhos pensativos vibravam, mesmo com a luz natural estando fraca devido às nuvens pesadas de neve tapando o sol.

Os olhos verdes ganharam um tom acinzentado? Ao menos ainda havia olhos?

— Oh. - Ela soltou em compreensão, agora me olhando com mais empatia.

O quanto ela sabe? O quanto ela lembra?

— Compressa ou um banho quente deve fazer milagres nessa dor chata, o que acha?

Bocejando forte enquanto arrastava as pernas fora fora da cama, dei conta de que meu celular não estava disposto no seu canto usual do criado mudo. Teria caído?

— Acho que não vai dar tempo pra banho agora, tenho que ir pra escola logo. - Disse enquanto esticava o pescoço para ter uma melhor visão dos cantos do chão. Nada. Será que dormi em cima?

— Escola? - Confusa, ela olhou para a janela, contra a qual consideráveis porções de  neve batiam impiedosamente. Ainda bem que o aquecedor estava ligado. - E, hm, mesmo se o mundo não estivesse caindo lá fora, você já teria perdido várias aulas.

Várias aulas? Ah, logo ali estava meu celular, metido entre as dobras da coberta.

— Como assim? - Perguntei enquanto alcançava o dispositivo.

— Você passou um tanto do horário, Sasuke-kun. - Ela respondeu ao mesmo tempo em que eu clicava nos botões para tentar trazer a tela à vida, mas nada acontecia. Eu tinha deixado o celular aberto tanto tempo a ponto dele consumir toda a bateria restante?

— Que horas são? - Desisti do aparelho, agora já jogado-o de volta à sua inutilidade na cama e voltando toda minha atenção (grogue) à Sakura.

— Que horas foi dormir ontem? Parece que você nem dormiu nada de ontem pra hoje. - E era exatamente assim que me sentia. Talvez tenha sido isso que aconteceu, e apenas me afundei na turbulência da minha cabeça durante a noite toda sem ao menos notar.

Ignorando a pergunta de Sakura, cacei minha própria resposta no criado mudo: o relógio digital marcava 10:47 AM.

Minha cabeça podia estar anuviada - pelo visto, por causa do cansaço - e quase todos os meus sentidos estarem funcionando de forma anormal, mas aqueles números foram grandes o bastante para me fazer quase saltar da cama. Eu sempre fui uma pessoa da manhã, com relógio biológico muito bem estabelecido e regular. Aquele horário era uma aberração. A única vez que dormi até tão tarde foi quando passei dias a fio confinado em uma cama mas, fora isso, nunca.

E outra coisa, podia estar nevando forte lá fora, mas isso não significava que as aulas estavam canceladas, não é? Mas Itachi teria me acordado se não fosse o caso, a não ser que ele tenha achado que eu sairia um pouco mais tarde que ele ou que até mesmo tivesse saído antes dele preparar o café da manhã.

Então praticamente me arrastei para fora do quarto. A luz da sala bateu forte contra minhas retinas e o barulho de um acalorado diálogo que não estava acontecendo ali me atacou os ouvidos. O súbito assalto aos sentidos fez com que me encolhesse contra o portal, usando uma mão de escudo para o rosto.

— Ei, bom dia. - Um montueiro de cabelos não tão negros quanto os meus surgiu do encosto do sofá. - Aproveitou bem as horas extras de sono?

— Hm… aula? - Foi tudo que minha débil mente conseguiu produzir.

Uma breve risada pelo nariz veio antes de qualquer outra resposta. Eu recém-acordado (ou algo do tipo) - com o cabelo e rosto sabe-se lá em qual estado e meu corpo mal se mantendo direito ali - devia ser uma visão e tanto para o divertimento dele. Babaca.

— As estações estão completamente paradas e as aulas foram suspensas por tempo indeterminado, até mesmo nas faculdades. Praticamente não há uma alma viva lá fora. - Ele falou como se estivesse passando um relatório, provavelmente os jornais devem estar só falando dos transtornos da tempestade o dia todo. - Até para sair de carro deve estar bem difícil.

Itachi quase que estava se justificando demais do porquê estar em casa hoje. Até falou do carro quase inutilizado que está largado na garagem do prédio. Depois que fui morar ali, ele comprou esse carro "para emergências" (lê-se "para caso o irmão cuja bala alojada na cabeça comece a lhe causar convulsões ou outras complicações").

E estávamos os dois sem aula, com o mundo lá fora transformado num caos branco congelante nada convidativo, ou seja, estávamos encarcerados juntos naquelas dezenas de metros quadrados que era o apartamento do Itachi. Senti ansiedade começar a borbulhar em meu estômago; eu tinha prometido a mim mesmo que iria me esforçar melhor enquanto ao Itachi, mas entre falar e fazer há um abismo imenso e sem ponte.

— Está com alguma dor? - Ouvi Itachi perguntar. O diálogo na TV morreu abruptamente quando ele pausou o filme que assistia.

Quando olhei novamente para Itachi, ele já havia circulado o sofá e estava a apenas alguns passos de distância. Não consegui evitar de recuar um pouco por reflexo, o que o fez parar de andar imediatamente.

O ar subitamente pareceu mais pesado, desconforto passou a formigar pela pele. Como chegamos a esse ponto?

— É só um incômodo por causa do tempo. - Apesar da quase certeza do quê havia chamado a atenção de Itachi naquele instante não havia sido causado pelo insistente latejar no meu corpo, aquele era o assunto menos pior para se levar a conversa.

— Quer que eu prepare uma compressa para você? - Ele nem terminou a pergunta e já estava andando para a cozinha.

— Não, não. - Itachi parou para me encarar e precisei pigarrear quando a voz prendeu na garganta ao final, talvez pelo incômodo no órgão ou pelo constrangimento por ter negado a oferta de Itachi tão rápido e deixar tudo tão óbvio. Mas claro que era a primeira opção, certeza. Precisava beber água logo para suavizar a sensação de lixa na garganta. - Eu vou tomar banho. - Qualquer coisa para sair logo dali.

— Oh, ok. Deve ser até melhor, mesmo. - Ele concordou, mas continuou parado, olhando para mim, sem dar qualquer indício de que retornaria para o sofá e voltaria a se entreter com o filme.

A sensação ruim voltou a cair sobre o ambiente - talvez ela nunca tivesse saído. Ele queria falar alguma coisa? Eu tinha que sair dali antes que ele começasse, não aguentava mais um segundo daquele clima. Porém, Itachi foi mais rápido, e logo que comecei a girar o meu corpo para voltar para dentro do quarto, ele começou:

— Sobre ontem, não leve a mal o que falei, ok? Não quero te botar mais nenhuma pressão, só preciso que tome mais cuidado consigo mesmo.

Aí estava. O confronto sobre a conversa de ontem, que sequer virou discussão como em outras vezes, mas terminou tão mal quanto. E eu não queria falar sobre aquilo, não queria falar sobre nada, mas Itachi continuava empurrando e empurrando. Engoli em seco, com a boca agora ainda mais enxuta. Eu só queria sumir dali e não falar com ninguém, por que isso era tão difícil? Por que tinha que ter essa tempestade logo hoje? Por que eu tinha que fazer aquela maldita pesquisa ontem à noite? Por que eu só faço merda com tudo? Por que eu…

O dente canino afundou forte na parte interna do lábio e me ajudou a escapar daquela sequência de perguntas que, com toda certeza, não iriam terminar nada bem. Foco. Eu só precisava sair dali.

— Eu vou tomar banho. - Acabei me repetindo sem querer ao murmurar a única resposta que Itachi teria naquele momento, mas procurei não me preocupar em pensar quantas engrenagens aquilo moveria na cabeça de Itachi. Eu só queria sair dali.

Terminei de girar meu corpo para trás e fechei a porta logo que tive espaço para isso. O barulho da tranca girando era um detalhe importante para Itachi entender que queria ficar sozinho, apesar dos pedidos dele para evitar que trancasse a porta, pelos mesmos motivos que ele tem um carro na cidade com maior aglomeração populacional do mundo.

Do outro lado, não ouvi nenhum protesto, apenas um leve suspiro - de que ou pelo quê, eu não sabia. E nem queria saber.

— Hm… - O som veio de trás de mim.

E Sakura estava no quarto ainda. Por um momento, havia esquecido que ela estava comigo. Tendo presenciado toda a cena constrangedora anterior, até ela parecia desconfortável pelo clima. Seus braços estavam para trás do corpo e os olhos corriam de um canto ao outro, à procura de algo.

— Ahn… Quer conversar sobre isso? - Ela soltou uma das mãos para colocar a franja para trás da orelha.

Os cabelos ainda eram róseos ou estavam escurecidos pela lama?

— Sobre o quê? - Perguntei meio exasperado. Ela não sabia o que eu sabia, certo?

— Sobre o Itachi…? - Sakura respondeu incerta porque qual outra opção seria?

Ah, era isso. Devia estar ficando paranoico, não tinha como Sakura saber que eu li aquelas matérias, que ideia idiota.

Foi minha vez de desviar o olhar. Era difícil encarar ela agora sem ser presenteado pelo meu cérebro com diversas imagens mórbidas de Sakura. O que deixava tudo mais insuportável era ela querendo falar sobre a outra parte ruim de toda essa história. Não dava, não dava. E desde quando Sakura pergunta se eu quero conversar sobre algo? Ela estava agindo e soava mais cautelosa. Eu estava agindo tão fora do meu normal assim?

— Eu… vou tomar banho. - Respondi ao assoalho, esperando que aquela fosse a única resposta necessária a se dar a Sakura, já que ela parecia se sentir estar pisando em ovos.

Algo de estranho passou pelo rosto dela, mas minha visão periférica não conseguiu detectar o quê. 

— Ah, sim, claro. Só tome cuidado para não deixar a água muito quente, sim?

E foi praticamente só por causa do aviso que lembrei de ligar o aquecimento do banheiro antes de me trancar dentro dele e largar uma Sakura cheia de milhares de perguntas para trás.

Enfim, só. Tentei deixar meu corpo no piloto automático, apenas desenrolar o protetor da banheira e ajustar as configurações no painel de controle para a banheira encher, mas não foi o bastante para eu conseguir evitar de registrar de relance minha imagem no espelho: o cabelo estava quase todo voltado para um único lado, a pele um tanto mais pálida que o normal e os olhos sem vida. É, eu precisava de um banho.

Sakura disse para tomar cuidado com a temperatura da água, mas meu corpo doía, minha cabeça estava uma droga e eu precisava de algo que me distraísse. 42°C não era lá esse absurdo todo, havia termais com essa mesma temperatura, então estava tudo bem.

Água quente começou a encher a banheira logo que acertei os comandos. Vapor subiu quase imediatamente, me atingindo e já funcionando como um alívio para o cômodo que ainda se aquecia. O líquido corria rápido para dentro do aparelho de porcelana, produzindo um barulho familiar e confortável.

Naquele rio tem peixe?

Merda.

Talvez não tão confortável assim. Desviei minha atenção da banheira, dando-lhe as costas e sentando na borda. O que eu precisava fazer para tirar isso da minha mente? Minhas mãos foram ao rosto, pressionando um pouco antes de se dirigirem ao cabelo. Contraí-me contra o toque imediatamente quando os dedos encontraram uma parte particularmente inchada e dolorida na nuca. Mas o quê…?

A noite anterior. Eu devo ter colocado muita força de verdade quando achei que seria uma boa ideia descontar tudo na porcaria do cabelo. Que ótimo, mais um lugar para sentir dor.

Suspirei forte, nada parecia dar mais certo. Forcei meu corpo a agir, nem que fosse na base da memória muscular. Despi-me e comecei a lavar o corpo na ducha enquanto a banheira terminava de encher. Os movimentos foram tão automáticos que mal os registrei e, quando me dei conta, já estava mergulhando uma perna na água quente - pelando. Sibilei de leve enquanto obrigava o resto do corpo para dentro da água e me deitava até submergir os ombros. Era questão de tempo até me acostumar com a temperatura.

As cicatrizes já pareciam atenuar com a dor, primeira boa sensação que tive naquele dia. E eu…

Não merecia isso.

Aquelas cicatrizes eram as únicas consequências que eu precisava carregar daquela noite. Os incômodos, as dores, os check-ups e remédios não significavam nada perto do que meus pais perderam, do que Sakura perdeu. E foi tudo por minha causa, porque fui egoísta e irresponsável. E eu sequer era capaz de ajudar a encontrar os homens que apertaram o gatilho para eles, eu estava lá.

Será que a correnteza a puxou para dentro da água?

Meus pais não deviam ter morrido e deixado Itachi sozinho com o fardo que eu era. Sakura não devia ter morrido pela ilusão do que havia acontecido e de quem eu era. Aquilo tudo estava errado. Era para ser eu naquele rio.

Sakura, angustiada e desamparada...

Era para ser eu. Eu.

… vendo sua única solução jazir no fundo de um grande rio.

Meus pés se separaram da porcelana, permitindo que todo o resto do corpo deslizasse para debaixo d’água. A pele sensível do rosto ardeu e sequer me atrevi a tentar abrir os olhos. Doía, mas era aquilo que eu merecia.

Por isso que a decomposição já estava em um estado avançado?

Por outro lado, pouco desconforto senti na boca quando permiti que a água a invadisse ao liberar o resto de ar que ainda restava em meus pulmões.

As extremidades do corpo logo se tensionaram com a falta de oxigênio. Foi isso o que ela sentiu? Não, muito longe disso. A água devia ser gélida, a correnteza devia desnortear, o escuro da noite devia apavorar. Comparado ao que Sakura passou, eu estava confortável.

Os músculos do corpo começaram a se contrair com mais e mais frequência. Fechei as mãos em punho, tentando resistir à vontade do corpo de emergir. Não, eu merecia isso; Sakura passou por algo muito pior do que aquilo e era para ser eu no lugar dela.

Os pulmões queimando, o corpo na sua fútil batalha final em espasmos.

O peito parecia que ia explodir. Os dedos se desenrolaram, tensos demais para fazer qualquer coisa além de caçar um apoio para me devolver à superfície. Resisti teimosamente, socando os cotovelos contra as costelas na urgência de me manter parado.

Sakura se jogou para a morte por minha causa.

Tudo ardia, tudo se contraía, tudo era insuportável.

“Seu corpo estava preso às raízes da vegetação da orla, já em avançado estado de decomposição”.

E então, deixei de lutar contra meus instintos e permiti que meu corpo praticamente pulasse para a superfície, já dando uma grande golada de ar na mínima oportunidade. Meus pulmões lutavam para se encher de ar novamente, forçando violentas e dolorosas sequências de tosse a passar por todo o sistema, chacoalhando minha estrutura inteira e agitando a água ao meu redor, que derramava para o chão a cada pequena onda formada.

 Como se não pudesse piorar, minha mão precisou voar até a boca para selá-la quando senti a queimação de bile na garganta, subindo a ponto de me fazer provar o gosto amargo e quente. Só descolei a mão do rosto quando tive certeza de que não havia mais chances de vomitar. Seria um desperdício e tanto sujar aquela água toda. Além do mais, nojento.

O que mais incomodava talvez era que não sabia se aquela reação vinha do tanto que tossi ou das imagens formadas na minha cabeça.

Corpo inchado e acinzentado, não completamente inteiro, movendo-se com a correnteza contra raízes, que se enroscavam com os membros sem vida.

Minha mão tremia, e nem fechá-la em punho e mergulhá-la de volta para ajudar a me apoiar sentado na banheira ajudou. Não ajudou nem para o resto do corpo, que se encontrava no mesmo estado. Ainda arfava, e as pernas se dobraram até colarem no peito e as abracei, permitindo esconder o meu rosto ali. Que estado miserável.

Será que cheguei um pouco perto do que Sakura sentiu em sua morte?

 

— Sasuke, almoço! - A voz de Itachi veio distante mas me pegou de sobressalto.

Soltei minhas pernas e os joelhos estalaram dolorosamente ao se esticarem de volta para dentro da água… fria? Quando foi que… Quanto tempo fiquei no banho?

Se o almoço já estava pronto, isso significava que já fazia mais de uma hora, no mínimo. Para onde minha cabeça foi esse tempo todo?

Foi difícil levantar com o corpo tendo estado parado por tanto tempo. As juntas estalavam audivelmente e precisei me apoiar para sair da banheira em segurança.

— Sasuke. - Ouvi a voz de Itachi de novo, a duas portas de distância. Era medida de segurança adotada por nós que eu tinha que respondê-lo sempre que ele falasse comigo e eu estivesse trancado em algum cômodo, como era o caso.

Meu estômago roncou só de pensar em almoçar, mas também se embrulhou com a ideia de comer com Itachi. Ele devia forçar a imagem de irmão mais velho de sempre para fingir que estava tudo bem, mas eu sabia que minha presença o devia incomodar, não tinha como não.

— Depois eu vou. - Respondi a ele.

— Ok, só não demore muito ou vai esfriar. - Fácil assim para fazer ele desistir de uma das raras chances de almoçarmos juntos.

 

Minha mente parecia presa em um looping nada confortável de imagens de Sakura boiando em um rio e sacos pretos ao redor de um carro. Não importava o quanto eu afundasse o rosto contra o travesseiro, apertasse bem fechado os olhos e tentasse pensar em qualquer outra coisa, não conseguia fugir da minha própria cabeça perturbada. Ainda tinha a acrescentar a confusão pelo tanto de tempo que eu nem parecia ter vivido naquele dia. Primeiro, a noite em claro que não lembrava; depois, a hora dentro do banheiro que também passou em branco. Eu estava dissociando? A ideia que eu estava apagando enquanto acordado por um longo período de tempo já era assustadora por si só, eu não precisava de mais isso na minha lista de desassossegos.

— Não vai almoçar, não? - Sakura perguntou da janela, onde estava sentada observando a neve cair ainda forte. Cada metade de seu corpo espectral dividido entre o lado de fora e dentro pela janela fechada.

A pergunta foi um gatilho para meu estômago, que roncou alto em descontentamento. Não havia comido nada ainda, estava difícil não acatar uma ordem tão clara. Além do mais, já fazia bastante tempo desde quando Itachi me chamou para almoçar, ele já devia ter acabado a parte dele. Era ser seguro sair e comer sem muita interação.

Levantar da cama foi complicado, parecia pesar mais e os braços balançaram ao me empurrar para fora da cama.

— Finalmente! - Sakura comemorou do seu canto, para o qual não me dei ao trabalho de olhar.

Os pés arrastaram de leve no chão enquanto me levavam até a porta. Antes mesmo de abri-la, já era possível distinguir os sons de algum outro filme que Itachi assistia. Provavelmente, outro de ação, considerando o conteúdo das falas, que gradualmente escalonavam. Ele nunca mudava de gênero?

Destranquei a porta devagar para tentar não chamar a atenção, mas Itachi havia mudado sua posição no sofá para sentado com as pernas para cima do móvel, de modo que ele estava virado para a parede do meu quarto enquanto via TV, o que tornou impossível a minha tentativa de passar despercebido.

— Está tudo na mesa. - Ele apontou em direção à cozinha, sem desgrudar os olhos da tela.

Mesmo sabendo que ele não estava olhando diretamente para mim, confirmei com a cabeça e deslizei os pés para a frente no intento de ir até a cozinha. Meus olhos moveram-se casualmente para a tela para descobrir o que havia de tão interessante ali.

Aquela era, provavelmente, uma cena de clímax, na qual estava sendo feito o confronto final, pois um personagem - flanqueado por homens em terno padronizado - acusava o outro - rodeado por ainda mais homens uniformizados - de ter assassinado alguém. O provável assassino apontava um revólver para seu acusador, e sorriu em deleite quando assumiu o crime.

O outro personagem explodiu em fúria, tentando jogar-se contra o homem armado, mas os capangas ao seu lado lhe agarraram forte pelos braços enquanto o outro homem destravava sua arma e bradava:

— Segura ele!

Segura ele!

A imagem da TV piscou por um instante, sendo substituída por uma confusa e escura; algumas imagens humanas sendo distinguidas em meio ao movimento rápido.

— Segura ele! - A figura da frente gritou, mas a voz soou abafada aos meus ouvidos por algum motivo. Ela olhava, olhava… em minha direção...?

O quê...?

Minha cabeça pulsava forte naquele maldito canto esquerdo e ouvi um sibilo de dor quando levei uma mão à cabeça. A TV estava ali, bem na minha frente novamente, de volta à cena de ação. Quando que...?

Foi então que notei, com horror, que aquilo não havia sido um problema da transmissão. Meus olhos piscaram e Itachi estava à minha frente, dizendo palavras mudas aos meus ouvidos, mas, antes que eu pudesse ao menos pensar no motivo daquilo, o mundo enegreceu.

 

Com a visão embaçada, os olhos quentes, o movimento rápido demais da minha cabeça e a iluminação fraca e fracionada, era difícil de identificar o meu derredor. Era frustrante, até porque minha cabeça não parava justamente por minha causa: balançava-a de um lado para o outro freneticamente, desesperado para negar... algo? O que eu estava fazendo?

O que estava acontecendo?

Ansiedade borbulhava dolorosamente em meu estômago e demorou um pouco até que minha visão estabelecesse algum ponto de foco com a tontura que o balançar de cabeça causou.

Era melhor ter continuado sem entender a situação.

Estava em um carro. O homem no carona empunhava uma arma em direção a outro atrás do volante, que erguia as mãos em sinal de passividade, mas isso não parecia acalmar o semblante do homem armado, que gesticulava para trás, para onde eu estava e para meus lados.

Senti mãos me puxando pelos ombros quase imediatamente, fazendo com que me sobressaltasse com o contato repentido, mas logo voltei a respirar quando reconheci o afago de minha mãe. No entando, ele não parecia carinhoso e calmo como sempre, era firme, imeditista e protetor. A mandíbula dela roçava contra o meu cabelo quando ela soltou palavras prementes, mas destas, nada eu conseguia identificar com o alto zumbido dentro de meus ouvidos.

Sentia meus olhos arregalados, incapazes de desgrudar da arma apontada para o homem sentado bem à minha frente, apontada para o meu pai. O coração batia forte demais contra o peito, ele ia atirar, pude ver nos olhos dele e no rosto, descoberto de máscara, que ele não apresentava sequer um pouco de hesitação ou compaixão. Ele ia atirar, ele ia matar o meu pai.

— Sasuke, não! - A voz da minha mãe veio                                          penetrante perto de meu ouvido, ela parecia desesperada, apesar de tentar manter a voz baixa.

— Segura ele! - O homem da frente falou, apontando o cano da arma agora em minha direção. - Segura ele senão ele vai primeiro!

Os braços de minha mãe apertaram mais ainda ao meu redor, e foi quando percebi que estava me debatendo para me livrar do aperto dela e... e fazer o quê? No que eu estava pensando? Aqueles homens estavam armados, não havia coisa alguma que eu pudesse fazer além de assistir.

O sentimento de impotência caiu forte sobre mim, e me forcei a parar, restando apenas tremer contra o corpo pressionado ao meu lado.

— Por favor, meu filho n... - O som do tiro foi abafado pelo silenciador na ponta do cano, mas não houve barulho mais claro e marcante naquela noite.

Quase que concomitante ao sonido, uma nuvem se formou ao redor do meu pai e manchou a janela ao seu lado, já se acumulando em grande quantidade e escorrendo junto a fragmentos de... E havia algo de molhado no meu rosto. Cheiro metálico infestou o ambiente, forte e penetrante, fazendo meu estômago dobrar além do que achava que seria possível.

Meu pulmões pararam, os músculos travaram, o cérebro congelou. O que era aquilo? O que isso significava? Eu não entendia, não entendia.

Eu provavelmente teria permanecido em choque, não fosse a cabeça do meu pai rolando mole para o lado, sem força alguma, batendo contra o vidro sujo da janela.

Sujo com o seu próprio sangue. Seu sangue e pedaços destroçados do seu próprio cérebro, que escorriam lentamente sobre o líquido vermelho, porque… Porque ele levou um tiro, e na cabeça. E não havia como ter esperança de que ele ficaria bem, porque os tecidos, miolos, o que ele precisava para ao menos sobreviver, estavam jogados pela janela, painel, e sobre mim mesmo.

Meu pai levou um tiro na cabeça. Meu pai estava morto. Ele acabou de ser assassinado bem na minha frente. Isso não podia ser, não estava acontecendo. Não, não podia.

Não, não, não.

— Tou-san!!

         Estavam me segurando tão forte, era difícil respirar direito. Eu não queria ser restringido, não queria estar ali ou em nenhum lugar. Só queria que tudo acabasse, por favor.

— Vai ficar tudo bem, vai dar tudo certo. - Uma voz soou baixa, porém, perto o bastante para que pudesse ouvi-la com clareza.

Meus braços se moveram minimamente no espaço em que eram permitidos, a pele roçou contra a familiar textura do suede.

Itachi…?

Os olhos se abriram para encontrar um branco ofuscante. As pálpebras se espremeram contra a luz excessiva, até que notei uma mancha negra à margem. A cabeça angulou para baixo, algo fez cócegas ao longo do maxilar com o movimento. Tudo era preto, e precisei piscar os olhos algumas vezes até entender que aquilo era cabelo, e um tom que eu conhecia muito bem.

— Ita… - A voz saiu estranha até para os meus ouvidos. Era fraca, áspera, e foi interrompida por Itachi, que não levantou a cabeça de cima de mim para falar.

— Shh, eu tô aqui, Sasuke. - As mãos dele deslizaram um pouco por onde me seguravam, numa espécie de carinho.

Engoli em seco. Itachi estava me abraçando e não mostrava nenhum indício de que pretendia me soltar tão cedo. Olhei em volta, estávamos na sala ainda, mas eu estava deitado... sobre o sofá? Itachi estava ajoelhado ao lado no chão, com a metade do corpo sobre mim. Ele ainda falava baixinho as mesmas palavras de conforto.

Notei que meu peito subia e descia acelerado, num estado semelhante às batidas do coração. Tirei um braço de entre nós dois, ele estava trêmulo, tal como todo o resto do corpo parecia estar com tanta adrenalina ainda circulando.

Mas meu irmão estava ali, firme, como um bote salva-vidas em meio à tempestade. Seu corpo era quente contra o meu, era algo sólido que eu conseguia ter certeza de era real em meio a tantas imagens dolorosas que cruzavam minha visão. Ele estava ali, me abraçando e dizendo que tudo ficaria bem.

Ainda tentando engolir algo além de ar, fui hesitante com a mão até tocar de leve contra a lateral de Itachi, quase alcançando suas costas. E ele não me empurrou ou afrouxou os braços de mim, como eu temia. Esperava que aquilo fosse um sinal verde para que eu continuasse, pois meus dedos, mesmo que fracos pelo tremor que ainda me acometia, se fecharam surpreendentemente forte ao redor da blusa de Itachi. Como uma criança, me segurei vigorosamente nele, como se todas as soluções jazissem naquele único ser. Em resposta, Itachi aumentou por um instante o seu aperto em mim, num modo que parecia querer me reassegurar.

Eu não o merecia e sabia disso, mas eu estava tão, tão cansado que me permiti ter aquele pequeno momento de egoísmo para buscar algum alívio. E parecia funcionar, Itachi era quente, seguro e familiar: a junção de tudo que eu não experimentava há tanto tempo que nem lembrava mais que existia.

A cabeça rolando mole para o lado, sem força alguma, batendo contra o vidro sujo da janela.

Cheiro característico do sangue invadiu até meus pulmões e precisei de toda minha força para me desvencilhar de Itachi e me jogar para fora do sofá.

A intenção toda era correr até o sanitário mais próximo, mas o tempo que tinha acabou ainda quando meus joelhos batiam contra a madeira, uma mão apoiada no chão e a outra com um agarre visceral ao sofá para tentar evitar que me espatifasse no chão; porque, dessa vez, o estômago não teve piedade alguma e empurrou seu conteúdo com toda a força.

Mal tive como me importar com o ácido na língua ou até mesmo com ele sendo despejado pelo assoalho. A imagem tão recente e vívida da cabeça de meu pai sendo estourada e pendendo sem vida estava grudada em minhas córneas. Mesmo se eu fechasse os olhos, mesmo que eu piscasse, aquela cena estava lá novamente para eu testemunhá-la.

Uma mão demasiadamente quente repousou sobre minha testa, dando apoio para que minha cabeça não descesse mais com as ondas que meus músculos forçavam em todo o corpo com as intensas ânsias. Distante, senti uma outra mão sobre minhas costas, desenhando suaves círculos. Pouco aqueles gestos de consolo surtiram algum efeito, se a visão que tinha da minha mão e braço excessivamente trêmulos significava algo.

Como em misericórdia, os ataques foram cessando e, com isso, a noção do que eu havia feito me invadiu com a mais absoluta vergonha. Lá estava eu, novamente sendo um estorvo para Itachi, apenas dando trabalho e dor de cabeça. Era sempre assim, desde aquela noite. Não, era assim desde quando nasci. Itachi sempre teve de se anular em prol de mim. Eu era só um peso morto, um transtorno para o meu irmão.

— Desculpa… - Foi a primeira coisa que saiu dos meus lábios quando retomei algum controle sobre a minha respiração.

— Ei, ei, tá tudo bem. - Ele respondeu prontamente, o afeto muito evidente em seu tom. Por que ele continuava se forçando? Não, não estava nada bem.

Minha garganta se fechou e mordi meus lábios enquanto balançava a cabeça em negação. Não estava nada bem, eu matei todos eles, eu era culpado pela morte dos meus pais e de Sakura e só ficava no caminho de Itachi.

— D-desculpa. - Era tudo que eu tinha a oferecer. Se pudesse voltar no passado, teria dado um fim em mim mesmo antes que minha existência findasse a de todos ao meu redor. Um soluço alto e doloroso escapou do fundo de minha garganta. - Desculpa, desculpa… - Saiu num baixo sussurro, mas eu não conseguia forçar mais do que aquilo, e esperava que Itachi conseguisse me ouvir mesmo assim.

Tão patético, nem me desculpar eu conseguia direito.

Sabia que aquilo era pouco, mas eu queria que ele entendesse que eu sentia muito e que não foi de propósito. Precisava que ele me perdoasse, apesar de eu não merecer, precisava que eles me perdoassem.

A mão que estava sobre minha testa desceu para a lateral do rosto; a que estava sobre as costas, deslizou para a cintura e ganhou uma maior firmeza quando começou a me puxar para o lado.

— Ei, shh, vem cá. - Sua voz e seu toque esbanjavam ternura e cuidado.

Não tive forças para resistir a isso. Permiti ser levado para longe da sujeira que eu mesmo fizera, para dentro dos braços de meu irmão, que me apertavam firme contra seu peito. Minhas mãos voltaram a agarrar o tecido de sua blusa, os dedos, a mão inteira, ainda tremiam sem nenhum controle.

— Desculpa, desculpa. - Eu continuava a sussurrar, quase como um mantra, tantas vezes que eu nem tinha mais certeza do pelo quê exatamente eu estava me desculpando.

— Vai ficar tudo bem, eu prometo. - O rosto de Itachi estava apoiado contra minha cabeça, e fazia meus cabelos se moverem para cima e para baixo conforme ele falava. As pontas de seus dedos passeavam pelo meu escalpo, enrolando-se nas mechas úmidas ora ou outra.

— É minha culpa, foi por minha causa… - As palavras escorregaram da boca, sem eu ao menos notar que as estava sonorizando.

Itachi parou imediatamente, suas ministrações interrompidas e os músculos congelados como se ele momentaneamente tivesse virado uma estátua. Ah, não...

— Quê? Não, Sasuke. - As mãos dele foram aos meus ombros, mas encontraram resistência na minha postura encolhida. Mais uma vez, eu tinha falado besteira, queria tanto sumir dali. - Ei, ei, olha pra mim. - As mãos agora se dirigiram para as laterais do meu rosto, muito mais fácil de ser manipulado para a posição que Itachi queria, a qual eu o encarava diretamente. Tentei puxar a cabeça para trás, para os lados, mas as mãos de Itachi estavam firmes. Quando a inútil tentativa de fugir do seu toque falhou, desviei o olhar para um canto qualquer, como o bom covarde que era. - Eu sabia que você estava planejando vir pro meu aniversário naquele dia. - Foi minha vez de congelar. Os olhos logo voltaram-se para Itachi, ele era a expressão máxima da seriedade. Não ousei nem piscar. - Você queria vir sozinho de trem, mas nossos pais não deixaram, lembra? - Ele não continuou, apenas monitorava cada parte do meu rosto, provavelmente esperando alguma reação. Minha cabeça subiu e desceu devagar em algo que esperava ser interpretado como uma afirmação. Era impossível colocar as cordas vocais para trabalhar naquele instante. - Foi por minha causa. Eu queria vê-los também e pedi para que eles viessem junto.

Foi como se mil mecanismos começassem a trabalhar simultaneamente em minha cabeça. As pernas esfriaram, apesar do coração claramente disparar. Era como se o aquecedor tivesse parado.

— Quê…? - Aquilo foi, definitivamente, abaixo de um sussurro. Mesmo estando muito perto, duvidava que Itachi tivesse conseguido ouvir aquilo, porém, a expressão corporal e labial foram óbvias demais.

Itachi me empurrou pelos ombros novamente, desta vez, com êxito, e fez com que eu sentasse direito de frente para ele, com as costas quase encostando no sofá. Ele ajeitou um pouco a postura, mas não ficou ereto, ao invés disso, permaneceu encurvado, quase no mesmo nível dos meus olhos. Seu peito subiu e desceu visivelmente quando ele suspirou uma grande quantidade de ar, seus olhos voltados momentaneamente para as próprias mãos enquanto ele parecia tomar coragem para me encarar novamente. Meu coração palpitava em antecipação, Itachi parecia tão sério e abatido, como se o mundo inteiro pesasse em suas costas naquele instante. Mas, ao voltarem-se para mim, seus olhos eram francos.

— Essa culpa que você sente eu também carrego. - Suas palavras eram declaradas com cuidado, cada sílaba sendo pronunciada com clareza, ao ponto do meu cérebro alarmado conseguir entender isso. - Eu me arrependo de ter feito esse pedido pra eles, me arrependo de absolutamente tudo que fiz e não fiz naquele dia.

Era tudo tão difícil processar. Como assim o Itachi também se sentia culpado pela morte dos nossos pais? Mas ele sequer estava lá. Não foi ele quem inventou de despencar de uma extremidade para outra do país, não foi ele quem quis parar só para comprar uns lanches, não foi ele quem viu uma arma apontada para a cabeça do próprio pai e não fez nada para impedir. Ele… ele apenas queria ver os pais no dia de seu aniversário. Como ele podia se sentir culpado por isso? Isso não fazia sentido, nada fazia sentido. Não tinha por que dele se sentir mal pelo que fez.

— Eu… não entendo. - Foi tudo que consegui expressar.

Itachi me ofereceu um sorriso triste antes de voltar a falar.

— Eu sinto essas coisas negativas, mas isso tudo é o trauma falando: eu penso e repenso o que poderia ter feito para impedir que as coisas terminassem daquela forma, são mil e uma situações absurdas que imagino para tentar me convencer de que era possível evitar o que aconteceu. Mas, Sasuke, eu entendo que esses sentimentos são irracionais. - Ele bateu o indicador contra a própria têmpora.

Aquilo tudo era tão absurdo, Itachi estava descrevendo a mim também. Era surreal pensar que Itachi, o inabalável Itachi se sentia daquela forma, tão semelhante ao meu deplorável estado.

— Por que você se sente assim também? - As sobrancelhas dele se ergueram levemente na última palavra, notando minha sutil confissão no pequeno deslize. Mesmo falando pouco, eu falava demais. -  Você nem estava lá.

— Eu perdi quase minha família inteira para um ato covarde de violência. Isso já é suficientemente traumático por si só.

Fazia sentido - e bateu em uma ferida -, mesmo que não entendesse muito. Eu mesmo não me recordava muito do que aconteceu - até poucos minutos atrás -, mas o rescaldo era dolorosamente vívido em mim. Então, era verdade que compartilhávamos do mesmo sentimento? Como ele lidava com isso tão bem?

— Como faço pra parar? - Perguntei num sussurro aflito, talvez temeroso demais por uma resposta negativa.

Recebi outro sorriso, mas com um pouco menos de tristeza desta vez.

— Admito que parece impossível, mas, sempre que sinto que esses pensamentos estão voltando, eu repito pra mim mesmo sem parar que aquilo não é real até que minha cabeça se convença e volte ao lugar. Porque essa é a verdade dos fatos: não havia como prever o que ia acontecer. Vocês… - Itachi se interrompeu, inspirando profundamente. - A gente só deu muito azar.

Mas era óbvio que aquilo não foi apenas azar. Eu os coloquei lá, eu estava lá, podia ter feito algo para impedir aqueles homens de colocarem a porra de uma bala na cabeça dos meus pais. Eu podia fazer algo, eu devia ter feito algo, mas não fiz. Porque eu sou um covarde, com medo demais pela própria vida apenas, ao ponto de conseguir só ficar parado e ver os que ama morrerem.

Covarde, covarde, covarde.

— Sasuke. - Itachi me chamou, servindo, mais uma vez, como um freio para o meu descarrilamento mental. - Você foi a maior vítima aqui, não o culpado. - Arregalei os olhos com aquilo. Era como se ele soubesse cada pensamento que se passava dentro de mim com a mesma facilidade que lia um livro aberto à sua frente. - Não foi você quem apertou o gatilho.

Algo estalou dentro de mim. Ele realmente acreditava nisso? O Itachi não me culpava? Eu busquei qualquer indício de instabilidade no rosto dele que indicasse a mínima dúvida, negação ou até mesmo mentira, mas era isso: ele estava sendo genuinamente sincero. Aquele era o rosto do irmão do qual cresci ao lado, aquele era o rosto do irmão que me ensinou quase tudo que sei, o irmão que nunca mentiu para mim e sempre me protegeu. Aquele era o Itachi à minha frente, sendo ninguém menos ou além do que apenas o meu irmão mais velho. Era verdade que ele não me culpava e, de repente, aquilo me doeu, doeu demais.

A verdade é que eu sentia falta dele, sentia a falta do meu irmão ao meu lado. Era tão, mas tão cansativo e desgastante empurrá-lo para longe de mim com minhas próprias mãos. Depois do quê ele disse e eu pude ver a mais pura sinceridade em seus olhos, não tive mais forças para nada. Eu só queria o meu irmão, só isso. Era tudo que eu precisava naquele momento, talvez nos anteriores também, mas tive muito medo de admitir.

Era como se um peso digno do próprio Atlas saísse de minhas costas: Itachi não me culpava pela morte de nossos pais, ele não me odiava por isso. Mais um soluço se espremeu para fora de minha garganta e a visão embaçou com  alívio esmagador que me invadiu. Itachi não me odiava.

Quando me dei conta, meu irmão já estava ao meu lado, nossos corpos se apoiando um no outro. Seu braço veio por cima dos meus ombros e me puxou para mais próximo dele, fazendo minha cabeça se apoiar no seu peito. O aconchego foi recebido de bom grado, e me deixei afundar no familiar cheiro que sua blusa exalava. Era como nos velhos tempos, e aquilo era bom, tão bom.

— Eu me expressei mal. - Itachi voltou a falar após um confortável período de silêncio. - Tem uma coisa daquele dia pela qual sou grato. - O quê? Como ele poderia tirar algo de bom daquilo? Levantei minha cabeça para olhá-lo diretamente e aguardar a aposição com curiosidade e uma certa indignação. - Você sobreviveu.

Mesmo depois de tudo, eu não esperava por isso. O que havia entalado antes terminou de quebrar de vez. Voltei a me encolher contra Itachi quando mais e mais ondas de soluço chacoalharam meu corpo.

— Obrigado… - Disse num último sussurro.

 

Não sei dizer ao certo quanto tempo permanecemos daquele jeito, um se abraçado ao outro, mas devem ter se passado uns bons minutos, pois, quando Itachi sugeriu que me sentasse no sofá, estalos audíveis saíram das juntas de nós dois. Itachi riu levemente do meu desconforto, o que contribuiu para que ele rapidamente se dissipasse.

— Vou fazer uma sopa de missô pra você. Deve ser melhor do que aquela comida fria. - Não consegui nem me sentir culpado por ter deixado o almoço todo esfriar. Estava mental e fisicamente exausto, e a promessa de uma sopa naquele frio era tentador demais para o meu estômago judiado pela falta de comida e pelo vômito.

— Pode botar tomate? - Não resisti de pedir, a combinação era simplesmente uma maravilha que devia ser tombada como patrimônio cultural.

Itachi riu-se mais uma vez. Aquele pedido remetia a tempos de quando éramos menores e Itachi teve que se acostumar à mistura peculiar, que eu havia inventado de que seria boa e acabou se tornando uma exigência minha para qualquer missô feito em casa.

— Infelizmente, estamos sem. - Ele se encurvou na minha frente, ainda sorrindo, e levou dois dedos à minha testa. - Fica para a próxima vez.

Minha mão automaticamente foi ao ponto de contato, tentando processar e guardar aquela sensação da qual eu quase havia me esquecido. A sopa sequer estava pronta, mas já sentia todo o meu corpo aquecido de dentro para fora. Eu poderia facilmente me acostumar a isso e à trégua implícita que se instaurou entre nós dois.

Itachi voltou à postura normal, um sorriso satisfeito ainda estampava seu rosto quando ele se virava para contornar o sofá. Eu até gostaria de tê-lo acompanhado para ajudar no preparo mas, após todos os acontecimentos, sentia-me finalmente autorizado a deixar o esgotamento me tomar dos pés a cabeça. Aconcheguei-me mais contra o sofá enquanto acompanhava a caminhada de Itachi à cozinha, meus olhos pegando de relance numa figura rósea atrás do balcão. O calor confortável dentro de mim minguou de imediato.

Nem tudo estava resolvido.

Continua...


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Notas finais do capítulo

Eu espero que vocês tenham gostado! Não levo jeito com diálogos, imagina um momento-chave como o desse capítulo aaaaa Mas eu acho que estou bem satisfeita com essa cena final! Na verdade, eu particularmente gostei de todo o capítulo huahua Mas me digam vocês: conseguiram pegar bem a desgraceira mental pela qual o Sasuke passou no capítulo até quebrar?
Eu juro que esse confinamento dos dois em casa não foi de propósito para esse período. Isso já tava planejado há anos, literalmente :’D Foi tudo uma coincidência que notei quando, já com uma semana de quarentena, tava relendo o que já havia sido produzido do capítulo e fiquei ué??? huahuahua apesar de que a “quarentena” deles é mil vezes mais branda que a nossa, não é mesmo?



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