As Desventuras do Caos escrita por Reet


Capítulo 13
CAPÍTULO XIII — JOGO FRIO


Notas iniciais do capítulo

Quero agradecer por todos os comentários do capítulo anterior ♥

Esse capítulo é dedicado à Moony (672065) e Doreen (468445) que fizeram lindas recomendações ♥ vocês são maravilhosas!!! Muito obrigada!

Betagem feita por Ladybug (ID: 693356).

I Don't Trust Myself (With Loving You): https://youtu.be/Zr7aPhPGbIc | https://www.letras.mus.br/john-mayer/777912/traducao.html

~*~*~AVISO~*~*~
Eu editei TODOS os capítulos da história. Adicionei cenas, diálogos, etc, etc. Não vai interferir em nada no decorrer da história, é só para quem quiser dar uma olhada mesmo ou se achar alguma informação que você não tinha pegado antes, provavelmente é porque dela foi adicionada recente (ex.: Cold é alérgico à proteínas do leite, Dawn foi expulsa numa quarta-feira, tem medo de altura e NÃO quebrou a janela do Shannon!). Para quem é Time Shannon, se quiser ler cenas novas tem uma no final do capítulo 4, 5, 8, 10, 11 (essa tá fofa +++) , e no 12, do meio pro final.

Esse capítulo começa fofo, terá algumas revelações dramáticas e um beijo inesperado no final. E provavelmente não é do casal que você esperava.



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Eu não confio em mim amando você

I DON'T TRUST MYSELF, JOHN MAYER

Meu celular começou a vibrar. Eu tentei ignorar, sabendo que se tratava de Gail e, sendo sincera, Gail podia esperar. Eu estava há horas lendo o livro que Shannon me emprestou, rolando na cama e trocando de posição quando ficava desconfortável demais. Acontece que o barulho que ele fazia ao bater contra a mesa de madeira era irritante. Eu agarrei o telefone, acabando por não ser Gail. Era um número desconhecido.

— Srta. Firewood? — disse uma voz feminina e entusiasmada do outro lado da linha.

— Sou eu — respondi, franzindo a testa. — Quem está falando?

— Eu me chamo Aubree, nós ainda não nos conhecemos. Sou a nova secretária do Sr. Firewood. — A nova secretária, porque a antiga deve se encontrar na cama dele nesse momento. Eu trinquei os dentes com a menção do meu pai, mas, por um instante, fiquei curiosa em saber o motivo de a secretária dele estar ao telefone. Ele não havia sequer ligado para saber se eu estava viva. — O seu pai gostaria de convidá-la para comparecer à celebração do casamento.

— Casamento? — eu repeti, um pouco incrédula. O que estava acontecendo? Balancei a cabeça. É claro. Casamento. Ele estava se casando com aquela vagabunda. Eu já imaginava que isso iria acontecer, mas me convidar? Depois de tudo o que aconteceu? — Por que raios ele está me convidando para isso?

— Ah. — A secretária soltou uma risada embaraçada e pigarreou. — De fato, foi uma sugestão da Sra. Firewood. — Sra. Firewood. — Ela deixou o recado em nome do seu pai. A festa será no sábado, na...

Meu ouvido estava ecoando e eu senti meu pulso acelerado. Eu estava com raiva. Fechei a mão em punho. Ela estava usando o sobrenome da minha mãe. Ela estava tomando o lugar da minha mãe. Não era como se as outras mulheres do meu pai já não tivessem feito isso, mas Lindsay Cook havia me expulsado de casa, manipulado meu pai, falado coisas horríveis de mim e para mim. Eu a detestava. Ela não era menos culpada que William naquele ponto, William nunca movera um dedo para agir como um pai para mim, mas ela havia sido o pontapé de tudo aquilo. E ela tinha a coragem de mandar a secretária me avisar sobre o casamento.

Eu apertava minha mão com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos.

— ... E eles realmente esperam que você possa compare-

— Obrigada pelo convite, Aubree, eu gostaria de deixar um recado para Lindsay e meu pai. — Eu não o chamava de pai em voz alta há muitos anos, parecia uma engrenagem enferrujada ou algo difícil de engolir.

— Pode falar, estou anotando.

— Bem. — Pigarreei. — Vão se foder.

Pressionei o botão de encerrar a chamada com força e senti um impulso extremo de extravasar a raiva de qualquer forma. Ele não ligou para perguntar se eu estava bem, se eu estava viva ou se precisava de algo. Ele não ligou para pedir desculpas ou para me chamar para casa. Ele não se importava. Mas ele iria se casar com aquela grande vagabunda. Quando percebi, o livro de Shannon havia sido arremessado até a outra parede do quarto. Eu deixei um grunhido de raiva escapar.

— Não desconte no livro.

Virei-me. Hans estava no batente da porta com os braços cruzados. Seu cabelo estava levemente desgrenhado, como quem teve todo o trabalho de arrumá-lo daquela forma; ele estava perfumado com um aroma fresco. Eu esfreguei meu rosto por um momento e peguei o livro do chão, devolvendo-o à cama.

— Eu sei, eu só... argh.

— É algo relacionado à sua família?

Eu balancei a cabeça em resposta. Não queria falar sobre aquilo.

— E então? — Mudei de assunto, pressionando os lábios em um sorriso reto. — Como vão as coisas? Akira está bem?

— Ele está bem, eu suponho — respondeu com um tom de voz levemente caído, como se ele não quisesse entrar nesse assunto também. — Ele acha que não vai conseguir o visto para se mudar para Bournemouth, e tudo isso está um pouco... complicado entre nós. — Hans suspirou e balançou a cabeça. — Eu vim checar as coisas, não encontrei Cold. Shannon está cozinhando. Ele está estranho.

Quando eu acordei, Shannon não estava mais na cama — ele não estava nem em casa —, mas havia uma bandeja de café da manhã na mesa de cabeceira e o cheiro dele estava por todo o lado, impregnado nas minhas roupas e no meu cabelo. Meu rosto estava fervendo e eu agradeci mentalmente por ele não estar lá.

O problema foi quando ele voltou poucas horas depois com sacos de compras do supermercado, parecendo muito mais quieto do que nos outros dias. Eu diria que ele estava reagindo em silêncio, de novo, mas a quê? Era como se estivesse me ignorando e evitando olhar diretamente no meu rosto.

— Aconteceu alguma coisa? — Hans perguntou.

— Eu acho que ele está de mau-humor. — Dei de ombros. Eu não podia contar para o ex-namorado de Shannon que eu e ele havíamos dormido juntos na noite anterior. Não parecia certo. Seria estranho demais e não era exatamente a resposta que ele queria. Afinal, ninguém precisava saber disso.

— Como se algo desse tipo fosse novidade — resmungou Hans em retorno. — Ele sabe cozinhar, mas ele não costuma... fazer isso. — Ele não costuma fazer um monte de coisas, pensei, mas ainda assim ele está fazendo. — Ele parece distraído. Isso tem algo a ver com Cold?

— Eles brigaram ontem. Eu não vi o Cold desde então.

— Ele também não respondeu minhas mensagens, mas ele sempre faz isso. — Hans revirou os olhos. — Enfim. Acho que estou indo. Se você precisar de qualquer coisa ou quiser reclamar de assuntos familiares, pode falar comigo. Eu acho que posso entender, você sabe.

— Obrigada, Hans — eu disse com um pequeno sorriso no rosto. — Eu acompanho você até a porta, já estava ficando com fome. — Olhei-me no espelho e tentei ajeitar meu cabelo preso com vários fios soltos por causa das horas rolando na cama. Não deu certo, mas não parecia de todo mal.

Shannon virou o rosto na minha direção, a primeira vez, alheio, e imediatamente uma segunda vez, agora com os olhos arregalados e a expressão surpresa. Ele grunhiu e soltou a faca, puxando as mãos para rente do corpo.

Hans pulou para cima dele com uma velocidade impressionante.

— O que aconteceu? — ele questionou, preocupado.

O que aconteceu?! — Shannon deu um tapa na torneira e enfiou o dedo machucado debaixo da água corrente, parecendo de súbito furioso. — Aconteceu que eu não consigo me concentrar no que estou fazendo, porque não importa o que eu faça ou tente fazer, para onde eu olhe, eu não consigo parar de... — Shannon interrompeu a si mesmo abruptamente. Ele recolheu o dedo machucado, soltou um suspiro e apoiou as mãos na bancada.

— Você precisa de ajuda com alguma coisa? — Hans perguntou. Eu estava surpresa que Hans e Shannon estivessem mantendo um diálogo sem que Shannon disparasse qualquer ironia de que o ex dele estava enchendo o saco.

Claro — Shannon debochou. — Se você souber o que fazer quando não consegue piscar os olhos sem se lembrar estupidamente de alguém que não sai da sua casa e da sua cabeça.

Shannon desviou-se de Hans e entrou no corredor, seguindo em direção ao banheiro e batendo a porta.

Eu prendi a respiração, meus olhos iam do corredor vazio até Hans e vice-versa. Puta merda, aquilo foi...? Hans estava de olhos arregalados e ele levou a mão até o peito, uma coloração avermelhada tomou conta de seu rosto. E então tudo fez sentido. Shannon estava falando sobre Hans, era isso. Não havia nenhum outro motivo para ele ficar tão desconcentrado, ele disse sobre alguém que não saía da casa dele e esse alguém era Hans. Ele havia falado a mesma coisa milhares de vezes.

Eu tentei ignorar a dor aguda no meu estômago que tentava me dizer que não era bem aquilo. Shannon era gay e talvez, um muito-provavelmente-talvez ele ainda gostasse... do ex.

— Uau — deixei escapar.

— Eu estou ficando louco ou ele acabou de...? — Ele ficou mudo. — Merda. Primeiro Akira e depois isso. Eu estou tão ferrado.

Hans me deixou parada e foi em direção ao hall de entrada.

— Está tudo bem? — perguntei.

— Sim, eu só preciso... fazer uma coisa.

Meneei a cabeça como uma afirmação e Hans deixou o apartamento em seguida.

Eu segui para o sofá da sala e liguei a TV na intenção de me distrair, mas Shannon voltou do banheiro logo em seguida e a distração se tornou ele. Shannon estava prendendo uma bandagem adesiva no seu dedo machucado. Ele olhou para mim, puxou o pano dos ombros e esfregou as mãos. Eu jurava que poderia morrer naquele instante com aquela visão. Seu cabelo um pouco bagunçado, o suor em seu rosto tomado por um rubor, a calça de moletom escuro levemente frouxa em sua cintura e a tatuagem de seu peito aparecendo algumas letras por baixo da camiseta. Eu não conseguia prestar atenção em mais nada. E aquilo era tão errado.

— Você gosta de macarrão e queijo? — indagou.

— Gosto, eu acho.

— Ótimo. — Ele abaixou o rosto e sorriu, um sorriso curto que sumiu tão rápido quanto apareceu. Shannon voltou-se para a cozinha. — Teremos Käsespätzle para o almoço. — Eu não fazia a menor ideia do que era aquilo, mas seu tom de voz dava a entender que ele estava orgulhoso. Podia jurar que ele havia forçado um sotaque alemão, mas era tão convincente que me fez lembrar, de súbito, que Shannon tinha um sobrenome alemão.

Nós comemos sentados nas banquetas acompanhado de um vinho com nome complicado. Levou duas taças de vinho para Shannon explicar que Käse-alguma-coisa era um prato típico da culinária alemã que ele comia quando era criança, escrever a grafia correta em um guardanapo e rir das minhas tentativas de repetir o nome. Era estranho. Eu nunca havia imaginado que aquela versão do Shannon sequer existia. Ele piscava devagar, o álcool afetando os nossos sentidos, e eu só conseguia fixar minha atenção no formato afiado de seu maxilar e no som melódico e gostoso de sua risada.

Nós escutamos o barulho da porta do hall de entrada e subitamente paramos de rir. Eu abaixei o olhar, escondendo um sorriso, e Shannon levou a taça de vinho à boca quando Cold passou pela cozinha lançando um olhar irritadiço em nossa direção.

***

O dia passou rápido — mais rápido do que eu desejava. Eu já estava deitada na minha cama esperando o sono chegar, depois de ter adiantado mais alguns capítulos de Laranja Mecânica, e ainda não havia conseguido dormir.

O gosto da comida do Shannon estava na minha boca. A voz da secretária do meu pai estava na minha orelha. A aproximação da minha entrevista de estágio estava nas horas e nos minutos. Olhar para o visor do meu celular me deixava ansiosa, rolar na cama tinha o mesmo efeito e tentar dormir não funcionava. Eu estava mais acordada do que nunca, era madrugada.

Caminhei pelo quarto, arrumando algumas coisas fora do lugar, dobrando algumas roupas no closet e desdobrando outras para dobrá-las novamente. Aquilo estava me deixando irritada. Eu saí do quarto e peguei a vassoura no corredor. Comecei a varrer. Não tinha muito o que fazer, eu já havia feito tudo durante a tarde, mas nada parecia suficiente.

Foi quando eu ouvi um barulho de... cordas. De violão. Cordas sendo dedilhadas sem ritmo e, depois, engatando em uma melodia. Eu congelei. Uma voz áspera passou a acompanhar a melodia com uma letra. Era Shannon.

Não, eu não sou o homem que costumava ser ultimamente. — Eu não conhecia a música, mas era calma, gostosa de escutar e não estava vindo do quarto de Shannon, vinha da sala. — Veja, você me conheceu numa hora interessante, e se meu passado for qualquer sinal de seu futuro, você deve ser avisada antes que eu te deixe entrar.

Eu larguei a vassoura — é claro que eu larguei a vassoura, seria ridículo se eu aparecesse com ela, que tipo de pessoa varria a casa de madrugada? Segui pelo corredor escuro, não havia nenhuma luz acesa, nem mesmo na sala. Shannon continuava a tocar a música e sua voz arranhava a letra, e talvez ele não fosse tão bom cantor como era bom na cozinha, nos livros ou no violão, mas me deixava em um tipo de transe e era a única coisa que eu conseguia prestar atenção no momento.

Ele estava sentado no sofá com as pernas cruzadas e eu podia ver que não vestia nenhuma blusa, seu cabelo cobria seu rosto. Sua concentração estava inteiramente no instrumento que tocava. E ele estava lindo. Eu me encostei no batente da entrada do corredor, de forma mais silenciosa possível, assistindo. Ele continuou cantando por mais alguns minutos até eu perceber que havia algo na letra daquela música.

Segure-se a qualquer coisa que encontre — continuou. — Segure-se a qualquer coisa que te fará ir até o final. Segure-se a qualquer coisa que encontre... Eu não confio em mim amando você.

Sua tatuagem. A primeira parte da letra era exatamente o que estava escrito em sua tatuagem e agora eu conseguia me lembrar de achar que a frase estava incompleta — porque havia várias formas de completar.

Shannon parou de tocar, a música acabou. Ele ergueu o olhar e me encarou, eu achei que tivesse congelado de novo.

— Você descobriu meu segredinho — murmurou.

— Eu achei que você não tocasse mais — admiti e dei de ombros, ainda de pé no corredor.

— Não tocava — respondeu Shannon. — E eu achei que todo mundo aqui estivesse dormindo.

— Não consegui dormir.

— Por quê?

— Muita coisa na cabeça. Eu tenho uma entrevista de estágio amanhã que eu morro se não conseguir — resmunguei, levando minha atenção ao carpete do chão. — E mais alguns dramas típicos de famílias problemáticas. — Eu tentei rir, mas não saiu do jeito que eu planejei.

— Eu acho que entendo um pouco sobre famílias problemáticas. — Shannon deu de ombros. — Quer tentar?

— É, eu acho que sim — eu disse, seguindo por um suspiro derrotado. — Então. Meu pai vai se casar com essa... — Tentei escolher as palavras, mas me dei conta de que educação não importava. — Vadia manipuladora. Ela o convenceu de que eu era uma delinquente e tinha que sair de casa. Eu não acho que meu pai sequer já se importou comigo como filha, mas é como se... fosse o limite. Foi a gota d’água.

Um silêncio se instalou no ambiente que me fez duvidar se eu estava falando demais ou se a situação comportava o meu desabafo. Eu acabei percebendo que não me importava com o que Shannon fosse pensar disso, eu já estava escondendo há muito tempo.

— Se for de algum consolo, eu acho que a vadia manipuladora e o seu pai não te merecem — murmurou Shannon. Meu olhar se voltou para ele com um pouco de surpresa estampada no meu rosto. — Você é melhor que eles.

Senti uma pontada de euforia atingir meu peito. Eu exalei, um pouco chocada. Nunca achei que Shannon diria uma coisa dessas. Tentei lutar contra um sorriso que se formava em meu rosto, mas a única saída foi virar a cabeça.

— Eu acho que você está certo. — Meu rosto estava em chamas. Shannon não poderia ver aquilo por causa do escuro. — E você? Por que não está dormindo?

— Pesadelos. Eles são recorrentes. — Shannon apontou para a própria cabeça.

— Então... Quer falar sobre isso? — Arqueei uma sobrancelha.

— É a minha cabeça. Ela continua repetindo lembranças que... — Shannon respirou fundo. Ele prendeu o lábio entre os dentes por um momento. — Momentos traumatizantes. Às vezes eu consigo dormir. Às vezes eu não consigo lembrar onde estou. Acho que meu cérebro está com defeito. — Ele riu baixinho.

— Todo mundo tem problemas. Você não está com defeito porque tem momentos difíceis.

— Estou com defeito porque não consigo sair deles, quero dizer, eu tenho medo de piscinas e praias. Eu nem tenho um motivo para isso, é patético, Cold diz isso o tempo inteiro.

— É a minha vez de dizer que eu acho que Cold está errado e você é melhor que isso.

Shannon me encarou em silêncio por uns instantes.

— Você acha? — ele perguntou, quebrando o silêncio. De repente, senti meu rosto esquentar.

— Por acaso estamos falando coisas que nunca diríamos durante o dia?

— Por quê? Tem algo você queira falar? — Shannon indagou.

— Eu não sei. — Foi você que me beijou? Por que voltou a tocar violão? Por que sequer parou? O que te fez terminar com Hans? Ele realmente te traiu? Por que Cold tentou te afogar? Por que você e Cold se odeiam? Por que você age como se me detestasse e depois muda completamente? — Você tem?

— Eu não sei — ele repetiu, abaixando a cabeça com um sorrisinho. — Quer ouvir outra música?

— Eu provavelmente vou dormir se você tocar outra música.

— Vai dormir em pé? — Shannon sentou-se mais no canto do sofá, abrindo espaço para eu me acomodar ao seu lado. Eu me sentei no outro canto, aconchegando-me com a cabeça no braço do sofá e as pernas encolhidas, quase encostando-as em Shannon. Ele começou a tocar outra música, dessa vez ainda mais calma.

Shannon terminou aquela música e começou outra. Eventualmente eu adormeci. Ele adormeceu também.

***

O ônibus me deixou na Hawkwood Road. Parecia parte de um bairro inteiramente empresarial. Todos os prédios que cercavam a rua tinham um quê de moderno e pequenas placas de identificação, apenas homens e mulheres saindo e entrando com vestes sociais, bem produzidos. Minhas mãos estavam trêmulas e eu estava nervosa.

Entrei no edifício 632, o que não me foi surpresa que o nome estivesse em uma plaquinha acima do portão giratório de entrada, informando que lá era a sede do Saturday Mirror. O térreo era um típico saguão bem arrumado, com chão polido de pedras lisas, paredes em tons de marrom, elevadores mais modernos e seguros que o do prédio onde eu morava, colunas revestidas de algo que parecia gesso, só que mais duro, um pequeno conjunto de sofás em volta de um suntuoso tapete felpudo com estampa felina. No centro, havia o largo balcão arredondado com várias mulheres uniformizadas de cinza atrás de seus computadores de monitoramento. Aproximei-me do balcão e coloquei em cima a folha recebida pelo professor Robert.

— No que posso ajudá-la? — perguntou a mulher sorridente, com o mesmo padrão odontológico de todas as outras atendentes, inclusive a mesma cor de batom, roxo.

— Eu sou Dawn Firewood, da Universidade de Bournemouth. Tenho uma análise de perfil para o estágio marcada.

— Só um instante.

A atendente que não parava de sorrir abaixou os olhos para a tela do computador e após alguns segundos, pareceu satisfeita com o resultado da busca.

— Terceiro andar, no escritório C. A. Lane. Assine aqui, por favor.

Com o meu garrancho maravilhoso, assinei qualquer coisa que se parecesse com meu nome e fui. O elevador era grande, cheio de espelhos e tinha um ascensorista, deslizando com graciosidade. Uma sensação de sorte me atingiu, como se eu finalmente estivesse no lugar certo.

Puff. O que eu estava pensando? A sensação foi embora com a mesma velocidade que chegou. As portas do elevador se abriram e eu avistei o escritório: C. A. Lane.

Franzi a testa, de repente, sentindo algo estalar dentro da minha cabeça. Não, pensei, não pode ser. O que o sobrenome e as iniciais dele estavam fazendo ali? Respirei fundo, contendo a vontade de bater em retirada. Aquele imbecil. Ele sabia, é claro que sabia.

Bati à porta e esperei qualquer confirmação, mas ao contrário disso, a porta se abriu. E a sensual fragrância que Cold Lane usava inundou minhas narinas, porque, é claro, ele estava lá.

Que merda está fazendo aqui?, eu queria gritar, mas ao contrário disso, minha voz parecia ter se perdido, estava em completo estado de letargia. Eu só conseguia encarar Cold Lane com meu maxilar pendurado, em parte por indignação e outra por incredulidade. Que raios está fazendo aqui? Não podia ser real. O que Cold Lane, veterano em Jornalismo, estava fazendo em um prédio como aquele, a sede do Saturday Mirror, em uma sala com suas próprias iniciais na porta?

— Cold? — gaguejei.

Minhas experiências prévias com os Lane me garantiam a certeza de que aquilo não iria dar certo. Nada relacionado a Cold ou Shannon Lane dava certo.

Cold, ao contrário de mim, não parecia nem um pouco perplexo. Eu considerei a possibilidade de aquilo ser uma pegadinha e olhei em volta à procura das câmeras.

— O quê... Que merda você está fazendo aqui?!

— Eu trabalho aqui.

— Como assim, você trabalha aqui? — retruquei um pouco chocada. E agora eu também estava irritada. Ele estava rindo da minha cara?

Cold fechou a porta atrás de mim e caminhou pela sala, fazendo com que eu o acompanhasse como um reflexo. Ele foi até sua mesa e ajeitou um bloco de madeira com uma placa exibindo seu nome inteiro em letras douradas.

— O Saturday Mirror é a empresa dos meus pais. Eu disse que cursava Jornalismo.

— É, mas você esqueceu talvez a parte mais importante, a que você trabalha com eles e na empresa deles! — grunhi enquanto gesticulava sentindo uma pontada de indignação. Sentindo-me enganada. — Se bem que não é a primeira vez que você esquece detalhes importantes.

— Eu também disse que não gostava de falar de assuntos familiares.

— Certo — debochei, revirando os olhos —, como se falar da sua família não fosse o que a gente faz o tempo inteiro.

— Não é o meu assunto favorito por motivos óbvios — respondeu com um tom de escárnio na voz. Cold estreitou o olhar.

— Porque você é rico? Porque você tem tudo o que quer na hora que quer? Mulheres, dinheiro, uma puta BMW... — É claro que ele era rico. Tudo fazia sentido na minha cabeça... Quase tudo. — Você sequer precisa dividir o aluguel com alguém, não é?

— Não. Mas se eu não colocasse alguém imediatamente, a coordenação da Vila dos Estudantes colocaria. Eu não estava a fim de dividir quarto com qualquer idiota da faculdade.

— Mas você poderia ter escolhido alguém que pudesse pagar. Então por que eu? — Cruzei os braços.

Cold tirou do bolso da calça um maço de cigarros e acendeu um, eu o encarei incrédula, como se dissesse: “você vai mesmo fumar aqui dentro?”, mas ele ignorou minha expressão.

— Porque o problemático do meu irmão fez questão de expulsar todas as outras garotas que eu coloquei lá.

Minha visão ficou mais ampla enquanto eu me lembrava das exatas palavras que Shannon havia dito na noite em que nos conhecemos. “Quantas vezes eu já disse que não quero que traga suas garotas, diga-se de passagem, gostosas, para o apartamento?” Então não era a primeira vez. É claro que não era.

— Você comia todas elas. — Não era uma pergunta.

— É claro que sim.

— Mas você não namorava nenhuma — continuei, Cold balançou a cabeça concordando com a afirmação.

— E eu devia? — perguntou retoricamente dando de ombros. De fato, não devia, mas se todas as outras saíram de lá, deveria haver um motivo para isso. Cold continuou com o rosto sem nenhuma expressão: — Todas ficavam inconformadas depois de um tempo, de qualquer forma, eu tinha que me livrar delas. Shannon só dificultava as coisas com aquele complexo de fazer tudo certo e contar toda a verdade. Eventualmente eu tinha que o fazer calar a boca.

“Você não está comendo, você não se importa.”

Agora fazia sentido. Shannon não odiava as garotas de Cold. Ele odiava o que Cold fazia com elas, bem debaixo do nariz dele. E Cold provavelmente fazia-as detestarem o irmão da mesma forma que ele havia feito comigo. E eu acreditei nele. Eu seria a próxima. Cold era um idiota machista e eu acreditei quando ele disse que Shannon era...

— Shannon não é o problema — afirmei, desviando o olhar para o chão de carpete enquanto as informações na minha mente se organizavam como um quebra-cabeça. — Você leva qualquer pessoa para a cama, seu quarto parece uma sala de tortura, você manipula as pessoas e você tentou matar seu próprio irmão afogado. Me parece que você é quem tem um arsenal de problemas.

— Parece que estamos falando da minha família de novo — Cold concluiu revirando os olhos.

— Também parece que você se esquiva dela porque é onde está a fonte de todos os seus problemas. Você está escondendo mais, não está?

— Essa é a sua entrevista, não a minha.

— Como se essa entrevista fosse nos levar a algum lugar. — Bufei. Ajeitei a bolsa nos ombros e dei as costas para Cold, seguindo na direção da porta. Eu estava decidida a ir embora. Aquilo não iria dar certo. Não com Cold. Não depois de todas as coisas que eu escutei.

Cold era nojento e eu me sentia enganada. Eu estava começando a também sentir raiva. Queria ir embora daquele lugar, ir embora da casa dos gêmeos, mesmo sem ter para onde ir. Talvez Gail pudesse me ajudar dessa vez, se ela soubesse de tudo o que o Cold disse. Ela já não gostava dele de qualquer forma e talvez tivesse algum motivo significativo para isso.

Antes de encostar a mão na maçaneta, a voz rouca de Cold me chamou.

— Você está certa. Eu estou escondendo mais. — Virei o rosto. Cold tragava o seu cigarro com bastante paciência. — Eu não disse que te coloquei no apartamento porque você era um alvo fácil. E depois que Shannon quase estragou tudo, vi em você uma possibilidade de provar que eu não sou o gêmeo ruim. Afinal, você é pobre e estava na rua. Poderia arrumar a casa, de qualquer forma. — Cold deu de ombros para ninguém em especial. — Mas você não era tão fácil quanto eu achei. Então Shannon estava por um fio de estragar tudo de novo, mas você estava lá e era tudo que eu precisava para dar o troco.

Repentinamente me senti ofendida. Cold estava falando de mim como se eu fosse descartável e não passasse de um servente.  Um evidente objeto de sua caridade.

— Para quem você quer provar tudo isso?

— Meus pais. — Cold me olhou de cima, com um ar de superioridade. Ele era muito bom em parecer que não estava pensando em absolutamente nada, e no fundo, eu não desconfiava de que fosse isso mesmo. — Eu também não contei que eles mimam o Shannon e o encobertam em todas as merdas que ele faz. Que ele vem sendo o filho favorito, o prodígio. Não contei que afoguei o Shannon porque eu queria acabar com a competição, e aquela vez que ele me empurrou da escada? Foi porque eu quebrei os troféus do show de talentos que ele ganhou na escola. Eu repeti, dia após dia, o quanto ele era um fracasso, até ele parar completamente de tocar violão. Eu fiz ele se passar por um idiota até não ter mais coragem de sair do próprio quarto. Por incrível que pareça, Shannon consegue me surpreender por deixar todas essas coisas acontecerem. Ele é fraco. — A cada palavra que Cold dizia com o tom de deboche e superioridade, minha raiva se expandia. — E eu continuo fazendo de tudo para infernizar a vida dele, porque ele inferniza a minha só por existir.

— Então é isso que você faz? — perguntei, percebendo que estava elevando o tom de voz. — Foder com a vida do seu irmão por conta de uma rivalidade idiota? Você é retardado?

— Olha, Dawn, você não entende. É o Shannon. Ele fode com a minha vida também. — Ele apagou o cigarro e encurtou os últimos passos que distanciam seu corpo do meu. — Eu só quero te fazer uma pergunta. Você acha aconteceria algo entre nós dois se você não estivesse completamente apaixonada pelo meu irmão?

— O quê? — O gêmeo de cabelos soltos riu, revirando os olhos como se me chamasse de "boba".

— É um jogo perdido se eu pego uma garota que tem interesse pelo meu irmão.

— Isso é uma competição?

— É — concluiu. — E eu estou ganhando.

— Cold — murmurei. Meus olhos corriam pela sala tentando estabilizar tudo o que eu estava sentindo. Eu queria socá-lo. Cold era o maior idiota. Eu era algum tipo de troféu? Era isso que ele pensava de mim? Meu peito subia e descia rapidamente com minha respiração desestabilizada. — Você...

— O quê? Eu não sou o que você esperava? — indagou, arqueando as sobrancelhas. Eu sentia a raiva tomando conta de mim. Ele era um imbecil. Um enorme imbecil. O maior imbecil de todos! — Está com raiva porque acreditou em mim? Não se preocupe, você não é a primeira. Ou está irritada porque eu falei a verdade? Que você gosta dele. Eu não sei como você conseguiu fazer isso, é sério, ele é tão fraco e idiota, e eu estou bem aqui! — Cold revirou os olhos e eu me odiei por ele estar debochando de Shannon, por todas as coisas que eu já havia pensado dele. Pelas vezes que eu achei que ele estava errado. Eu estava mordendo meu lábio inferior com tanta raiva que podia sentir gosto de sangue. Raiva de mim. Raiva demais para ser descontada. — Eu sou melhor que ele, Dawn.

Eu acertei um tapa na cara de Cold antes que pudesse pensar no que estava fazendo. Seu rosto moveu-se para o lado brevemente e a surpresa tomou conta de sua expressão. Eu olhei para minha mão, um pouco avermelhada, chocada com o que eu tinha acabado de fazer.

— Ao menos ele bate mais forte que você. — Eu tentei acertar um segundo tapa em seu rosto, mas Cold me bloqueou, segurando meus dois pulsos. Ele soltou uma risada escarnecedora. — Não achei que você fosse tão interessante, você sabe que eu gosto disso.

Cold acabou com o espaço entre nossos rostos tomando minha boca com a sua.

Senti-me paralisada pelo seu toque, não exatamente pelo seu toque, mas por estar assustada com sua repentina ação. Estática, surpresa, estuporada, mas acima de tudo, com raiva.  Ele escorregou a língua pelos meus lábios e eu senti minha respiração travar. O que ele pensa que está fazendo? Minha mente gritava de volta. Eu dei alguns passos para trás na intenção de me esquivar, mas nada adiantou.

A repentina excitação, o cheiro, o gosto, a necessidade do toque... não vieram. Aquele beijo era rude e de nada tinha a ver com a sensação dos lábios de almofada confortando os meus. Esperava pelo som rouco vindo do fundo da garganta como que por alívio ou excitação, esperava por... Aquele ruído, pensei, eu já havia ouvido outras vezes, embora nunca da parte de Cold. Eu sabia bem de quem vinha, quem já havia feito milhares de vezes em diferentes situações. E, definitivamente, não vinha de Cold.

Aquele não era o mesmo beijo, era automático, seco e não me causava absolutamente nada. E ainda por cima não passava de um assédio físico.

Então ouvimos uma batida na porta. Não uma batida posso entrar?, nem opa, estou interrompendo, desculpa. Era mais uma batida com raiva e frustração, forte e alta. Cold afrouxou as mãos em meus pulsos e eu pude me soltar, dando vários passos para longe dele. Respirava pela boca, assustada, encarando-o em busca de explicações, mas Cold apenas expressava um sorriso de satisfação diante do que havia acontecido.

— Cold! — grunhi, passando a mão pelos cabelos nervosa. — Droga. Droga.

— O que foi? — indagou, sarcástico. — Não era o beijo que estava esperando?

Senti meu estômago despencar.

Eu estava enjoada. Olhei em volta em busca do que fazer e como reagir, mas meu coração estava disparado e eu não conseguia pensar de forma clara. Não apenas pelo beijo, mas porque eu tinha quase certeza de que a batida na porta não era uma mera coincidência.

— Eu acho que deveria ser sincero com você. — Cold suspirou e revirou os olhos rapidamente. — No domingo, eu vi vocês dois na cozinha. — Engasguei. Sabia que a aflição estava estampada em meu rosto. — E eu sei que você achou que fosse eu. Foi fofo da sua parte, eu poderia me aproveitar disso.

Cold riu da minha cara, mas eu não estava achando graça. Senti minha cabeça rodar ainda mais, fazendo um bolo de ansiedade subir pela minha garganta. Shannon havia me beijado. Shannon havia me beijado.

— Levando em consideração que Shannon tem uma capacidade abaixo de zero de se relacionar com as pessoas, ele nunca iria contar que te beijou.

 — Você fez isso de propósito — murmurei. Eu soltei o ar que estava guardando no peito. Cold deu de ombros, deixando um leve sorriso escapar.

Ele era o canalha.

— Não é a primeira vez que faço isso. — Cold balançou a cabeça na direção da porta, fazendo com que aquele simples aceno significasse muito mais do que deveria. Ele estava indicando a batida na porta. A batida que não parecia ser mera coincidência, porque simplesmente não era! Era Shannon.

— O que você fez? — sussurrei, incrédula, me dando conta de que Shannon poderia ter visto Cold me agarrando. Ele poderia pensar qualquer coisa a partir daquilo, e seria tudo uma mentira.

Eu me afastei com passos arrastados até a porta, pressentindo que algo péssimo estava para acontecer. Estava acontecendo. Cold era um monstro. Ele era nojento e perverso. Eu arregacei a porta, deixando-a bater contra a parede com um ruído alto.

Tudo bem, eu não sabia o que estava fazendo. Não deveria estar dando tanta importância para aquilo. Para Shannon. Mas eu me encontrava correndo para fora do escritório e olhando o corredor de um lado a outro. Olhei o nome nas portas até encontrar a que estava escrito “Lane”.

Abri a porta, exaltada, e me deparei com outro escritório igualmente amplo, mas decorado de uma forma mais... feminina? Eu olhei em volta e vi que na mesa de escritório, uma mulher mais velha estava sentada, revirando alguns papéis em busca de algo. Ela ergueu o olhar. Seus cabelos eram loiros, mas as sobrancelhas eram escuras e contrastavam com sua pele de uma maneira absurdamente linda. Os olhos eram castanhos e sua feição, apesar de rígida, podia jurar ser uma versão feminina de Shannon e Cold.

— Desculpe — murmurei. — Achei que era a sala de outra pessoa.

A moça sorriu e eu fechei a porta, correndo para o elevador.

Apertei o botão seguidas vezes sentindo meu estômago se revirar, eu sabia que aquilo não iria adiantar em nada, já que quem controlava o elevador era aquele tipo de maquinista. Corri pelas escadas, meu corpo estava trêmulo por causa de toda a adrenalina.

Isso não pode acontecer. Shannon não pode pensar que eu tenho qualquer coisa com Cold. Algo dentro de mim gritava desesperadamente para que eu impedisse.

Eu tropecei. Meus pés se embolaram na saída do Saturday Mirror e eu senti meu corpo indo na direção da calçada enquanto uma dor aguda se instalava em meu tornozelo. Merda. Mordi minha boca para impedir que um gemido de dor escapasse. Shannon estava indo em direção a sua moto.

Os cabelos loiros escorridos eram inconfundíveis, estavam soltos, esvoaçando sobre seu rosto enquanto ele manejava de colocar alguns fios atrás da orelha. Ele passou uma perna para o outro lado do veículo, colocou o capacete e deu a partida. Eu senti meu coração falhar. O que estava acontecendo comigo?

Tentei me erguer, mas meu tornozelo estava me impossibilitando de andar. Ótimo. Aquele dia estava indo tão bem. Eu provavelmente não iria conseguir aquele estágio, o que significava que eu voltaria para a estaca zero. Sem casa, sem dinheiro.

Eu senti um braço forte ser passado pelas minhas costas, dando-me apoio. Virei meu rosto, era Cold. Tentei me desvencilhar dele, mas Cold apertou minha cintura e me interrompeu:

— Eu só estou tentando te ajudar. — Eu parei. Meu olhar de incredulidade fez um sorriso aparecer em seu rosto. — Eu posso te levar para casa.

— Sério? Me ajudar? É isso que você chama de ajuda? — Minha voz desceu algumas oitavas. — Eu não quero sua ajuda. Você me dá nojo.

— Qual é, Dawn — resmungou, desviando o olhar com um sorriso descrente. — Vai realmente ficar irritada comigo? Esse é o meu jeito, você apenas não me conhecia antes.

— Essa é a sua desculpa para ser um babaca? Que esse é o seu “jeito”? — Cold me encarou, sua expressão confiante sumindo de seu rosto. — Não é o seu jeito, é a sua escolha. Você escolheu ser babaca. Você acha que é um cara legal porque me ofereceu um quarto? Se eu soubesse de tudo isso, eu nunca teria aceitado. Você quer provar para seja lá quem for que você é um cara bom, mas isso nunca vai acontecer, porque você não é, você acabou de mostrar isso.

Esquivei-me de seu aperto e dei alguns passos, mancando, para longe dele. As cores do rosto de Cold sumiram, parecia que eu tinha tocado em um ponto sensível.

— Meus pais — murmurou, em seguida, balançando a cabeça em negação. — Isso não é inteiramente verdade, eu sou bom para você.

— Se você está escolhendo para quem você quer ser bom, não adianta. Eu vou embora e eu vou arrumar as minhas coisas. — Cold segurou meu braço, impedindo-me.

— Dawn, espera, foi mal, ok? — resmungou.

— Não encosta em mim. Eu não sou um troféu e não quero estar nessa competição.

— Ao menos me deixa te levar para casa — ele pediu. Eu o encarei, mas Cold desviou o olhar e seus lábios se contraíram em uma linha fina e desapontada. — Eu sei que você machucou o tornozelo.

— Eu estou bem — grunhi, tentando, mais uma vez, me afastar de Cold. Ele não deixou, ao invés disso me pegou no colo. Cold pegou a chave do carro no bolso e abriu a porta para mim, colocando-me no banco do passageiro.

Ele deu a partida. Não estava com cabeça para falar com ele, portanto liguei o rádio e deixei qualquer música tocando para acabar com o silêncio ensurdecedor. Abria e fechava o celular várias vezes tentando arranjar uma forma de falar com Shannon, até me lembrar de que eu já tinha seu contato, através de Hans, salvo como Quarto Disponível. Disquei várias vezes, mas ninguém atendia. Foi quando enviei a primeira mensagem. Talvez ele não tivesse meu número e não estivesse respondendo de propósito — ou talvez ele tivesse meu número e também não estava respondendo de propósito. Suspirei, cobrindo meus olhos com minhas mãos.

Cold abaixou o volume da música.

— Eu vou assinar seu estágio porque sei que o seu perfil se encaixa — disse casualmente. Eu tranquei o maxilar, sem a menor vontade de responder àquilo. Porque eu não me importava mais com o estágio àquela altura. Eu não queria mais saber de Cold. — Shannon está no setor de críticas literárias, ele é o seu supervisor.

Congelei, deixando aquela informação ser absorvida. Levei uma das mãos em direção ao volume do som, mas Cold me impediu de aumentá-lo.

— Eu conheço meu irmão. Eu sei o que ele queria e eu usei isso para irritá-lo. Sei que você não acha que foi uma coisa legal, você está certa, não foi. Eu nunca tentei consertar nada, mas eu posso tentar-

— O que você quer dizer com isso? — perguntei. — O que Shannon queria?

— Isso é ridiculamente óbvio — disse Cold, deixando uma risada escapar. Ele desviou o olhar da estrada para mim, um pouco incrédulo. — Você não sabe? Você não pode ser tão cega assim.

Virei o rosto para Cold, lançando um olhar irritado.

— Ok, foi mal de novo.

Levei as mãos ao meu cabelo, puxando-o, e me lembrando das coisas que Cold havia dito. Shannon havia me beijado. Eu ainda não conseguia acreditar, mas uma parte de mim já tinha certeza, talvez a mesma parte responsável por embrulhar meu estômago naquele momento. Shannon estava machucado e eu só conseguia pensar que a culpa era minha, ainda que eu soubesse que a culpa era do Cold. Minha mente estava cheia demais, preocupada demais.

Desci da BMW de Cold assim que chegamos ao bloco D. Bati a porta do carro com força e estava ignorando qualquer coisa que Cold tentasse falar comigo. Eu estava extremamente irritada com ele. Eu o chutaria, se fosse possível, na cara, até desfigurar o rostinho bonito que ele compartilhava com o irmão.

Meu tornozelo já não doía tanto. Subimos as escadas lentamente. Quando chegamos ao quarto andar, percebemos que a porta do apartamento de Hans se encontrava aberta, as luzes estavam todas acesas e os cômodos, vazios. Cold e eu nos entreolhamos e seguimos para o quinto andar. A porta também estava aberta e eu achei por um momento que aquilo significava que Shannon estava em casa. Entretanto, não era Shannon.

Deitado no sofá de moletom e meias, Hans segurava uma garrafa de cerveja e assistia à TV. Havia mais quatro garrafas vazias na mesa do centro. Ele também estava fumando. Eu nunca havia visto Hans fumar, mas eu não estava surpresa com isso. Estava surpresa com o seu estado em geral.

— Hans? — Cold o chamou, seguindo na minha frente como se dissesse “deixa isso comigo”. — Você está bem?

Claro, eu estou ótimo — Hans respondeu. Ele arrotou e depois deu de ombros.

— Tem certeza? — perguntei, passando os olhos por todas aquelas garrafas de cerveja com a intenção de que ele seguisse meu olhar. Hans pareceu ter notado minha presença. Ele se endireitou no sofá, sentando-se com as pernas afastadas. Seus olhos estavam vermelhos e ele piscava lentamente, estava bêbado.

— O que aconteceu? — Cold continuou.

— Eu terminei com Akira — respondeu, rápido e seco.

Cold parou por um momento. Ele abriu e fechou a boca várias vezes antes de decidir o que iria falar. Não parecia que Cold já havia passado por uma situação similar.

— Hans. Eu acho que te conheço. — Cold cruzou os braços. — Você tem certeza?

— Claro que tenho.

— E por que você fez isso? — Cold se aproximou do amigo e colocou uma das mãos na garrafa de cerveja que Hans segurava, impedindo-o que a levasse à boca novamente.

— Eu estava bêbado. — E ainda está, pensei. — E Akira não vai voltar. Não parecia ter motivo para continuar com aquilo, eu não gosto dele, eu... Eu gosto, mas Akira... Eu não... — Hans largou a cerveja e apoiou os cotovelos nos joelhos, enfiando o rosto nas mãos. Ele soluçou uma vez. — Eu não sei!

Escutei a porta de entrada abrindo. Eu congelei.

— Não me diga que-

— Quando eu estava no hospital — Hans cortou o loiro — e você perguntou se eu ainda sentia falta dele... Você estava certo. — Ele ergueu o rosto e encarou Cold. O rosto do Lane abriu uma expressão chocada. — Não me olha desse jeito, eu-

— Você é o cara mais estúpido do mundo — Cold despejou. — O que você estava pensando? Que você e ele-

— Eu não estava pensando! — Hans grunhiu.

— Você o conhece!

— Exatamente por isso! Eu o conheço e... Eu sei que o eu vi.

— E o que você viu? — Cold perguntou com um ar sarcástico, quase debochado.

— Que meu ex está montando um acampamento onde eu moro. — Todo mundo virou o rosto para o hall de entrada. Shannon estava parado, seus olhos estavam inchados e seu cabelo uma enorme bagunça. — Isso é simplesmente perfeito.

Hans desabou. Figurativamente. Seus ombros despencaram e ele tinha um ar estupefato, como se fosse começar a chorar. Eu tive a sensação de que algo péssimo estava prestes a acontecer.

— Que se dane — resmungou Hans, e deu alguns passos na direção de Shannon e então ele... o agarrou.

Shannon ficou estático e a boca de Hans foi de encontro à sua.


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Notas finais do capítulo

PARECE QUE A GALINHA SE VOLTOU CONTRA O MILHO

QUE O JOGO SE VOLTOU CONTRA O JOGADOR

QUE O FEITIÇO SE VOLTOU CONTRA O FEITICEIRO

Ou só que a Dawn era muito burra esse tempo inteiro.

(E não foi minha intenção rimar, mas srsly o que vocês acharam do capítulo? Da música do John Mayer?)