DeBrassio escrita por Lola Baudelaire


Capítulo 19
Capítulo 18 - Antes - Parte 1


Notas iniciais do capítulo

Oi,



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As roupas de Gwen me incomodam um pouco. Apertam um pouquinho aqui outro bocado nas coxas, mas é o que tem para usar enquanto a sra Whalen providencia novas roupas para mim. Sentada no mármore gelado, meus pés não encostam no chão; balanço as pernas para espantar o frio. Logo terei que voltar para casa dos Whalen. Já faz um mês ou quase desde que faço o papel de hospede prestativa e feliz, para tentar mascarar o desconforto. Todos os dias me levanto da cama de baixo do beliche sem fazer barulho. Caminho até o banheiro do quarto de Gwen e escovo os dentes com a escova comprada pela mãe dela. Visto as roupas de Gwen ainda no escuro, desembaraço os meus cabelos com a sua escova e saio do quarto sem fazer barulho. Todo os dias desço a escada direto para simulação, onde sou parte da família e não um incômodo. Pela maior parte do dia sigo anestesiada pela ocupação, só que quando chega a noite... droga! Eu odeio a noite.

Aprecio o céu vagarosamente vai sendo pintado de laranja. Logo terei que voltar, antes que alguém me descubra. Abraço meus joelhos junto ao peito; tenho mais medo de ser pega vindo ao cemitério do que do próprio cemitério. Não tenho muita certeza se é desrespeitoso me sentar em uma lápide, mas não acho que a tia Marla vá se importar muito. Um suspiro de saudade me escapa. Ah, como eu queria que ela estivesse aqui, ou que pelo menos a sua casa não tenha sido vendida anos atrás. Ela sim saberia o que fazer. Não eu.

Quando fui obrigada a voltar à escola na semana passada. Primeiro li seu nome escrito em uma placa de homenagem, e depois fui chamada na sala de orientação educacional e não havia mais o seu nome na porta assim como na sala da secretaria. Estar de volta, andar pelos corredores, depois sentada em uma sala pequena, encarar outra conselheira estudantil que claramente não era ela. Cara, isso me deu uma saudade desgraçada. Queria muito poder ouvir sua voz me ajudando a organizar toda essa bagunça. Estar aqui, acompanhada dos mortos me ajuda a pensar direito. É paz, eu acho.

Mas já é a hora de ir embora. Guardo a lanterna e o celular no bolso interno da parka, fechando-a depois. Já está claro o suficiente para dispensar a luz artificial; logo a mãe da Gwen terá levantado. Preciso estar pelo menos por perto quando ela abrir a porta. Me afasto do cemitério e começo a correr; são apenas dois quilômetros. Eu sei que deveria sentir medo de andar pela madrugada sozinha, deveria ter medo de ficar sozinha em um cemitério também. Mas sei lá, o que mais me pode acontecer agora? Deixa-me ver... Nada, pelo visto.

 Abro a porta devagar e sinto cheiro de pão assando. Minha mão congela na maçaneta por alguns segundos. Droga, fui pega! Respiro fundo e decido entrar. Não é que eu tenha muita escolha. Guardo minhas botas na sapateira em silencio. Posso ouvir o liquidificador funcionando na cozinha. Penduro a parka junto dos outros casacos e sigo andando entre as paredes pintadas de turquesa. Eu poderia dizer que estava só caminhando, não é? Não há nada de errado sair para caminhar de manhã cedo, mesmo que seja as seis da manhã. É o que eu acho, pelo menos.

Entro na cozinha cabisbaixa. Não consigo pensar em algo para dizer. Vejo a sra. Whalen tirar uma forma cheia de pãezinhos do forno. Ela não me viu ainda, está de costas para mim. Pelo menos não me viu entrar, se eu não falar nada vai ficar bem. Certeza. Sento-me em um banquinho de metal e apoio os cotovelos no balcão frio. Não digo nada. Qualquer coisa que sair da minha boca agora soará forçado.

— Bom dia, Erin! — ela fala ao me ver.

Espero pela bronca, mas ela não vem. Sua boca esboça um sorriso sincero, mas contido. As ruguinhas formadas nos cantos dos olhos me trazem alívio. Achei que ela iria gritar, sinceramente. Desejo-lhe um bom dia com um pouco mais de confiança. Ela não parece zangada, pelo menos.

— Caminhar ajuda a espairecer — sua voz é suave, enquanto derrama chá em uma xícara de porcelana.

Eu apenas concordo com a cabeça. De fato, tem me ajudado a clarear a cabeça. E a não acordar todos, gritando de madrugada. Eu não vou ter pesadelo se não estiver dormindo, não é mesmo?

Há um suspiro melancólico enquanto ela arrasta a xícara quente até mim. As coisas estão tão estranhas ultimamente; ontem me lembro de tê-la ouvido chorar ao telefone, enquanto eu passava pelo corredor. As coisas não andam bem, o Sr. Whalen serve como médico em algum lugar do oriente médio. Não temos notícias há algumas semanas. Dá para ver que todos parecem preocupados. Me sinto mal estando aqui complicando as coisas ainda mais.

Laurel tem ligado uma vez na semana para saber como eu estou, Blair liga as vezes. O incêndio criminoso que destruiu a casa da Jornalista Joy DeBrassio foi manchete no jornal há algumas semanas. Shawn ainda não foi encontrado, sendo o principal suspeito e com a acusação de agressão, acho bem pouco provável que ele vá voltar algum dia. É o melhor para nós dois, eu acho. Se houver algum julgamento eu teria que repetir toda a história; pelo menos a metade da história. Não é uma boa ideia.

Observo Alexandra despejar granola nas cinco tigelas enfileiradas no balcão. Logo ela vai colocar leite de soja em cima. Tento não fazer careta enquanto tomo o chá de hortelã. Meu Deus, como eu odeio leite de soja. Todos os dias. As vezes tenho vontade de contar a laurel sobre tudo o que aconteceu; o arquivo jogado no meio do mato, o corpo carbonizado no fundo do oceano. Eu poderia contar até à polícia, só para não precisar mais tomar leite de soja

Ah, mas se eu contar provavelmente serei presa. Aí não vai ter mais leite de soja, nem granola. Não vai ter nada. É em momentos como esse que eu sinto muita raiva da minha mãe. Eu duvido que ela esteja mesmo em algum congresso ou sei lá o que na Europa. Não consigo entender como todo mundo caiu nessa. É sério isso? Eu sei que toda semana a coluna financeira do jornal é atualizada e é assinada com o seu nome, mas não cola. Pelo amor de deus, que tipo de mãe deixa a filha sozinha com o marido escroto, leva todas as coisas — além da comida — e viaja para cobrir um evento estúpido? Eu não cheguei a mencionar o fato das roupas nem da comida. Mas que diferença faz agora que o fogo queimou tudo?

— A senhora teve notícias da minha mãe? — pergunto, após termina o chá.

Alexandra mantem o olhar vazio e distante. Ela balança a cabeça e bebe mais um pouco de chá. Não há respostas. Fico apenas olhando para a sua blusa azul turquesa de mangas compridas e gola rolê. Uma cor tão feliz para um rosto tão triste. Vejo seu corpo magro e bem vestido se movimentar pela cozinha pequena e preparar as coisas. Logo todos estão na cozinha, alguns acordados, outros nem tanto. Todo mundo compondo silenciosamente o seu lugar na dança da família.

Assim vai ser mais um dia sem respostas. E vai ser amanhã e depois, e depois e depois e depois.... Gwen me olha com a sua cara furiosa usual e senta bem longe de mim. Nem me esforço para prestar atenção na conversa que vai surgindo. Sei o necessário já. A Sra. Whalen vai trabalhar em Washington e só volta no fim de semana, Seth tem prova de calculo na quinta-feira e Gwen comprar bolo de baunilha para algum evento da turma de violino de Abraham. Até Ricky parece presente, quase pronto para sair com todo mundo. Rá! Todo mundo se comporta quando a capitã fica em casa. Só eu que não consigo me encaixar, só estou existindo e caminhando até o cemitério por enquanto. Na falta de gente viva, só tenho o túmulo da minha tia morta para me sentir em casa.

Cara, eu sou muito esquisita.

— É claro que a Erin consegue tudo! Oferecida do jeito que ela é. — a voz quase estridente de Gwen quebra meu vidro de isolamento.

Oi?

Tiro os olhos da xicara vazia na minha frente e tento focar na situação à minha frente.

— Como? — minha voz sai mais baixa que eu esperava.

A família Whalen me encara procurado respostas e eu encaro de volta porque não estou entendo nada. Ninguém fala nada. Gwen se inclina sobre o balcão e só não me incinera com os olhos porque não sou inflamável. Eu acho, pelo menos. Seth está vermelho e Ricky quase sorri enquanto mastiga a granola. Alexandra parece tão perplexa quanto eu.

— Mãe, o que é ser oferecida? — pergunta Abby inocentemente.

— Não seja sonsa, Erin — Gwen revira os olhos — você só consegue tudo o que quer porque sai se oferecendo para todo mundo.

Posso sentir meu rosto ficando vermelho.

Puta merda, Gwen!

— Mãe, como é ser oferecida? — Abby insiste.

— Abby, querido vá pegar sua mochila — ordena Alexandra — agora!

Ela se vira para Gwen, que agora mantêm as mãos apoiadas na cintura. Vejo o vazio ser preenchido por traços duros. Seus olhos cinzentos se tornarem rígidos feito aço. Gwen recua um pouco, mas o queixo continua erguido.

— Eu não vou admitir, Gwen — a capitã quase sussurra, com o rosto à centímetros do dela — que você destrate alguém sob o meu teto. Erin é nossa hospede e está passando por um momento ruim, ela precisa da gentileza que eu te ensinei usar. Se eu ouvir mais uma ofensa vinda de você, pode esquecer suas saídas depois da escola. Você está me entendendo, Gwen? Porque eu já estou cansada de ouvir reclamação sua.

Gwen se encolhe diante da advertência. Desvia os olhos para o chão e balança a cabeça. Ela parece intimidada. Quase sinto pena se ela não estivesse sendo uma vaca desde de que eu cheguei aqui. Apesar de não entender exatamente o que aconteceu, acho bem feito.

— Mãe... — Seth surge, pousando a mão no seu ombro — a gente que ir. Ainda tenho que ir para escola, lembra? Digo, depois de deixar a senhora na estação.

Alexandra relaxa, deixando a capitã ir embora. Alinha o corpo e olha para mim. Aceno para o que ela diz, mesmo sem saber exatamente o que se trata. E a vejo ir embora. Gwen parece pegar fogo com os braços cuidados. Não vou falar nada para não piorar as coisas, mas eu poderia gritar agora mesmo.

— Eu odeio você! — Gwen cospe antes de correr escada acima.

Dou de ombros e começo a recolher as tigelas vazias. Vai dar tempo de lavar tudo antes da aula. É o mínimo que eu posso fazer aqui. Vejo Ricky se aproximar e sinto vontade de gritar para ele se afastar. Primeiro que esse ódio que a Gwen decidiu nutrir por mim é toda culpa dele. Balanço a cabeça com desgosto enquanto coloco tudo na lava-louças. Meninas não deveriam brigar por causa de garotos. Principalmente por causa de Ricky Whalen que não vale um tostão.

— Ela não te odeia de verdade — ele diz se aproximando ainda mais.

— Ricky, por favor. Chega.

Mas ele não para e continua chegando mais perto. Me sinto desconfortável com isso tudo. Nós não conversamos desde o incêndio, e para ser sincera, nem estou interessada.

— A minha irmã não consegue não ser o centro das atenções — ele insiste — e não ajuda muito ter alguém que pela necessidade está sendo o foco de tudo.

Não acredito no que estou ouvindo. Era o que faltava na minha vida. Até porque não estava sendo suficiente toda a culpa. Abro a boca para manda-lo calar a dele, mas ele continua com um olhar presunçoso.

— Não estou dizendo que você gosta disso nem que é de propósito; mas Erin, a minha irmã é um pouco narcisista e não ajuda nada ter outra pessoa tomando seu lugar e ainda estar tendo que dividir o quarto. E o lance dos seus... é, dos seus gritos de madrugada, a minha irmã não está sabendo lidar.

Sinto meu corpo todo tremer de vergonha. Desvio o olhar da sua figura com as costas apoiada na pia ao meu lado. Respiro fundo e engulo a seco. Não dá para falar nada agora; não vou conseguir sem chorar. Enxugo as mãos na calça, evitando levantar a cabeça. Sei que seus olhos estão fixos em mim, curtindo o meu embaraço. Guardo o pote de granola no armário ao lado da geladeira. Eu deveria mesmo ir embora hoje. Ricky continua parado no mesmo lugar.

— E o que você sugere? — consigo perguntar depois de um tempo tentando não chorar — que eu vá embora?

— Venha dormir comigo. — Ele responde imediatamente — eu não ligaria de ouvir seus gritos.

Paro e olho para o interior da geladeira aberta. É sério isso que eu acabei de ouvir?

Ergo os olhos para afrontá-lo. Há um sorriso debochado no seu rosto e aquela velha sensação de estar sendo vista pelo avesso reaparece.

— Vai se foder, Ricky! — é o que eu consigo dizer.

É o que ele merece.


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Notas finais do capítulo

Olha, eu ia escrever mais coisas. Deveria ter mais uma cena aí. Mas depois dessa ultima parte aí eu não consegui encaixar uma coisa pra outra. Vai ficar para a próxima, ok?
Beijos



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