Julgamento de uma Ilusão escrita por Mirai


Capítulo 9
Adaptação à realidade




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Estava inquieta. Esperava que aquilo tudo fosse apenas um pesadelo e que eu acordaria em breve, mas, enquanto o “em breve” não chegava, teria que lidar com essa situação.

Espiava Vicente na fila masculina com dificuldade. O fato de a letra inicial do seu nome ser uma das últimas do alfabeto fazia com que ele fosse um dos últimos da fila. Por outro lado, Alexandre estava bem do meu lado, olhando fixamente para cada centímetro de minha pessoa.

Eu estava começando a entrar em desespero.

Para meu alívio, assim que o último aluno foi chamado, a professora Helena, de História, nos guiou até nossa sala, no terceiro andar. Prestava atenção nas pequenas reformas feitas na escola, embora fizessem uma grande diferença. As portas, antes de ferro, foram substituídas por portas de vidro. As paredes, antes com um tom entre azul e verde, estavam com pisos cinza. Aquilo, por algum motivo, me lembrava o futuro.

A professora abriu a porta delicadamente e entrou, dando passagem para os outros alunos fazerem o mesmo. Entrei e, em um gesto rápido, coloquei minha mochila em uma carteira próxima à mesa dos professores. Vicente se sentou ao meu lado. Apenas o lugar de Karol estava vazio.

Alexandre ia se sentar atrás de mim, mas ouvi a voz de Mariana o incentivar a se sentar com ela nas últimas carteiras, o famoso “fundão da sala”. Pensei em me virar para ver em qual cadeira ele ia se sentar, mas preferi respirar fundo e repetir as palavras “a vida dele não me importa” várias vezes em minha cabeça.

— Bom, pessoal… — a voz da professora se fundiu aos ruídos das conversas dos alunos — … pessoal…? — ela tentou novamente, um pouco mais alto — Podem fazer o favor de pararem de falar por um minuto!? — ela gritou, por fim. Todos ficaram em silêncio. — Meu nome é Helena, vou dar aulas de História e Filosofia para vocês esse ano. Espero que nossas aulas sejam tranquilas. Agora, sem mais delongas, peguem seus cadernos, por favor.

Ouvi o som dos cadernos se chocarem contra as mesas, como de costume. Alguns resmungos sobre a professora, sobre as matérias, até que olhei para Vicente, que resmungava tentando tirar a longa franja da frente dos olhos. No ano que o conheci, sua franja já era um pouco longa, mas agora estava começando a incomodá-lo. Ri discretamente, atraindo sua atenção, e fiz um gesto para que ele tentasse prender uma parte do cabelo atrás da orelha. Uma parte ficou presa, mas a outra ainda insistiu em se prender a seus óculos. Ele balançou a cabeça em negativa e fez um sinal com a mão de “deixa para lá”, rindo delicadamente.

As aulas passaram tranquilamente. O sinal do recreio tocou, fazendo os alunos saírem apressadamente das salas. Peguei meu celular e o pouco de dinheiro que tinha para comprar algo de comer na cantina. Vicente já havia feito o mesmo, logo saímos juntos.

Conversávamos sobre algumas coisas aleatórias. No começo, foi difícil prestar atenção no que ele estava falando, mas depois consegui me adaptar às mudanças, como a saída de Karol e a entrada de Alexandre. Vicente dava seu melhor para me manter bem, e isso me fazia me sentir feliz.

As outras aulas do dia foram tranquilas, assim como o resto do mês. Embora as matérias estivessem ficando mais difíceis, eu sentia que podia ficar calma, aliás, com um pouco de estudo eu superaria as dificuldades. O que mais me preocupava era os comentários que surgiam na sala. Comentários sobre mim.

Muitos não me reconheciam como “a Beatriz do ano passado”. Por várias vezes, ouvi comentários grotescos sobre mim mesma, depois notavam que éramos a mesma pessoa. Vicente tentava fazê-los parar algumas vezes, mas as “brincadeiras” viravam contra ele.

Após o primeiro bimestre, todos conseguiram recordar quem eu realmente era. Uma lista dos melhores alunos foi posta na quadra e meu nome estava em primeiro lugar. Ao contrário do que imaginei, um grupo de alunos veio me parabenizar, sendo a maioria rapazes. Agradecia e os incentivava a estudar, também. Em meio àquela multidão pouco conhecida estava Alexandre, que esperou a multidão dispersar um pouco para falar comigo.

— Parabéns, criança! — ele colocou uma mecha minha de cabelo atrás de minha orelha. Eu não apreciei seu gesto, mas preferi não reclamar — Sabe, você me lembra outra garota…

— Ah, sério? — fiz-me de desentendida. Era quase óbvio que ele estava falando de mim — Como ela era? É tão raro encontrar gente esforçada, né?

— Nem fala! Como ela era? É até engraçado falar… — ele abaixou a cabeça, rindo — ela se parecia bastante com você, inclusive tinham o mesmo nome! Ela também era bem gentil, nós éramos bons amigos, mas… — o sinal tocou, interrompendo-o.

— Droga… — sussurrei.

— É, parece que vai ter que ficar para outro dia… — ele disse — Bem, provavelmente a gente não vai se falar na aula de Biologia agora, então, já te dou “Até amanhã”…

— É, a professora é bem rígida, ela já advertiu vários por chegar até um minuto atrasado, e ela não brinca… — respondi, enquanto subia as escadas — falando nisso, cadê o Vicente?

— Eu, inclusive, já levei advertência dela! — ele disse, como quem não se importasse — O cão de guarda, você pergunta? É estranho que ele não esteja protegendo a dona…

— Hã? Como assim?

— Ele fugiu quando o grupo chegou para falar contigo, mas nem vi para onde ele foi. Deveria comprar uma corrente melhor, viu, Bia?

— Não fala assim dele! — protestei.

— Como se fosse apenas eu! Vai dizer que, com aquela franja enorme, ele não parece aqueles cachorrinhos com o pelo da cara comprido?

Foi quase inevitável não querer rir, mas não podia fazer isso. Tinha uma ponta de graça, mas não poderia deixar isso barato.

— Ao menos não é vira-lata como você, né? — respondi.

— Ai, isso dói, princesa. — ele deu um sorriso de canto — Mas pode ter certeza que, por ser “vira-lata”, eu tenho experiência em roubar… e isso inclui seu coração.

Assim que terminou seu discurso clichê, tive que conter a vontade de tecer algum comentário maldoso e me dirigir sozinha para a sala de aula. Para meu alívio, a professora ainda não estava na sala quando entrei. Sentei-me em minha carteira, ao lado de Vicente, que parecia já estar lá por um bom tempo.

— Sem querer ser possessivo nem nada, mas qual a desse tal de Alexandre aí, hein? — ele protestou, com leve irritação na voz.

— Como assim?

— Só porque aparentemente vocês já se conheciam ele acha que tem o direito de levar um grupo de treze meninos para te parabenizar pelas suas notas contando que eles sequer se importam com isso! Ele acha que me engana! Ele só queria uma desculpa para falar com você sem ninguém por perto! — ele disse, até um pouco alto demais, embora a turma toda estivesse conversando.

— Ainda teve o trabalho de contar, cão de guarda? Parece que sua dona é uma boa treinadora, hein? — Alexandre se intrometeu — Se estava tão incomodado, me pergunto o porquê de você ter fugido…?

— Seu…! — foi a única coisa que Vicente conseguiu dizer. Eu confesso, nunca havia o visto ficar tão irritado assim por um motivo tão simples.

— Alexandre, por favor… — eu disse, tentando aliviar a tensão — … não faça isso novamente, tá? É desconfortável. Pra mim e pra ele.

— Se a verdade dói, não há nada que eu possa fazer. — ele comentou, me fazendo fuzilá-lo apenas com o olhar — Tá bom, tá bom, quer que eu peça desculpa?

— Exato!

Alexandre chamou Vicente e pediu desculpas formalmente, mas logo sussurrou algo para o de íris bicolores a qual eu não pude entender. Vicente apenas disse um “Tá legal” e Alexandre foi embora, rindo.

— Eu peço desculpas para você, pois eu… — Vicente abaixou a cabeça, levemente envergonhado — não acho que tinha o direito de falar assim com você. Eu acho que passei dos limites. Até demais.

— Tudo bem, Vicente, às vezes isso acontece! Mas eu não acho que você precise se preocupar tanto comigo. Eu vou ficar bem, até mesmo porque… — fui interrompida pelo “bom dia” da professora — depois eu conto…

— Não se preocupe. — ele respondeu, sua feição preocupada — Vou estar sempre aqui para ouvir o que você tem a dizer.

Depois dessa aula, não conseguimos conversar sobre o assunto. Nos dias seguintes, também. Os professores passavam inúmeros trabalhos, me impedindo de falar com Vicente. No ônibus, nunca conseguíamos sentar juntos, e nem na sala de aula. Passamos duas semanas sem nos falar direito, mas, ainda assim, conseguia notar que algo estava o deixando triste.

Assim que a semana de trabalhos terminou, eu me senti decidida a conversar com Vicente. Era uma segunda-feira, assim que resolvi começar essa semana de consciência limpa. Entrei no ônibus e me sentei mais para trás, na esperança de que conseguíssemos, por fim, falar sobre esse assunto.

Senti o ônibus dar uma freada um tanto brusca. Olhei pela janela, estava próximo do ponto onde Vicente subia. Confusa, aproveitei que o banco ao meu lado estava vazio para dar uma espiada no que estava acontecendo. Um rapaz de feições conhecidas havia entrado no ônibus. Não era Alexandre, disso eu tinha certeza.

Perdida em meus pensamentos, ouvi uma voz conhecida.

— Parece que hoje está vazio do seu lado, hein?


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Notas finais do capítulo

Espero que gostem!



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