Julgamento de uma Ilusão escrita por Mirai


Capítulo 25
Confiança




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Sem saber o que responder, eu apenas falei a verdade:

Fui barrada pelo Alex antes de sair e acabei perdendo o ônibus da escola. Voltei com ele no transporte coletivo, estou bem, inclusive cheguei mais cedo.”

Após digitar e parar várias vezes, recebi uma resposta:

O Alexandre? Ele te barrou pra quê? A cada dia eu acho esse moleque mais estranho.”

“Não acho que ele seja estranho”, respondi, num ato inexplicável de defender o de cabelos claros. Infelizmente Vicente fez a pergunta que eu mais temia:

E por que não?”

— E por que não…? — eu repeti sua pergunta em voz alta, tentando entender o motivo. Antes de digitar algo, ele enviou mais uma mensagem:

Se quiser desabafar com alguém… você sabe que eu não me incomodo em te ajudar. Você já fez muito por mim e eu não estou nada contente com o que eu fiz antes: virei as costas e parei de falar com você. Pode contar comigo, eu vou te ajudar. Quer que eu te ligue?”

“Por mim tudo bem.”, enviei, um pouco nervosa.

Assim que recebi a chamada, eu atendi e pude ouvir a voz de Vicente do outro lado da linha.

— E então, já sabe por onde começar?

— Na verdade não… — eu ri, um tanto envergonhada.

— Eu imaginei… — ele deu uma leve risada — Então vamos por partes. Tem certeza que não o acha estranho? Por que, assim, ele é estranho, ao menos pra mim. — ele disse, como se estivesse falando a maior verdade do mundo.

— Bom… eu acho estranho o fato de ele sempre estar com a Mariana e… — senti meu rosto ferver. Por algum motivo era estranho falar isso com um menino.

— E depois voltar pra falar com você como se fosse totalmente normal ele dar em cima das duas ao mesmo tempo? — ele perguntou, com o tom levemente entediado — Isso não é estranho, é errado. É nessas horas que eu tenho vontade de perguntar se ele está assistindo alguma série que tenha algum personagem assim, porque olha…

— Espera, você assiste esse tipo de série? — eu perguntei, surpresa.

Ficamos um momento em silêncio, mas logo depois a voz do rapaz com heterocromia ressoou:

— Não conta pra ninguém… por favor… — ele disse, com a voz um pouco trêmula — Eu gosto, sempre assisto quando tenho tempo, mas não quero que ninguém ria de mim.

— Pode deixar, eu não conto. Também não acho que seja um motivo para rir de você. — eu disse, tentando acalmá-lo.

— E-Então vamos voltar ao assunto Alexandre. — ele disse, após respirar fundo — Esse fato de ele ficar dando em cima das duas é errado, mas parece que a Mariana não liga… mas eu acho que você não deve aceitar esse tipo de coisa. — ele disse, com um tom levemente chateado.

Fiquei em silêncio por alguns minutos. Embora eu soubesse que isso fosse errado e já tivesse ouvido muitos sermões da Karol, ouvir dele era diferente.

— Por outro lado… eu imagino que você veja alguma qualidade nele. Mas qual? Ou quais, não sei… — ele perguntou, passando uma certa curiosidade além do normal na voz.

— Bom… como eu posso dizer… — eu comecei a falar, lembrando de todos os momentos, bons e ruins, que passei com Alexandre — Acho que ele se importa se estamos muito quietos, sempre tenta estar com a gente… no fim das contas, ele se importa sim com as pessoas, tenta sempre fazer todos felizes.

Vicente ficou por um bom tempo sem responder nada.

— É o que eu acho… — eu quebrei o silêncio.

— É, eu não posso discordar. — ele disse, respirando fundo em seguida — Só que isso volta no que eu falei. Ele ajuda todo mundo, mas parece que ele… como eu digo…? — ele deu uma risada forçada — Não liga pra você de verdade.

— Hã? — eu disse, totalmente surpresa.

— Bia, por favor… ele passou o intervalo todo com a Mariana, depois foi barrar você… é quase um “Olha, eu fiquei consolando ela porque ela ficou sem cabelo por causa da festa, mas é só pra garantir que você não vai ter ninguém além de mim. Porque eu posso ter quantas amigas, namoradas, ‘peguetes’, sei lá mais o que, eu quiser, mas você só pode ter a mim.”

— Ela cortou o cabelo por causa da festa? Como assim? — eu perguntei, não controlando a curiosidade — Desculpa por trocar de assunto assim do nada, mas realmente eu fiquei curiosa agora.

— Ah, eu esqueci que você não está no grupo… — ele disse, com um tom um pouco desanimado — Ninguém sabe a história toda, mas parece que a Mariana fez a festa escondida dos pais. Já dá pra imaginar o resto… — ele disse, soltando uma leve risada — O pai dela ficou muito irritado quando descobriu e cortou, literalmente, o que ela mais gostava: o cabelo. Legal, não?

— Muito… agora eu entendi o porquê do drama todo de hoje cedo. — eu respondi, lembrando de como Alex e Mariana estavam conversando no corredor e no intervalo.

Dava até nojo.

— Mas, no final das contas, pra que ele te barrou na saída? Pra falar da Mariana? — ele perguntou, como quem estivesse esperado tempo demais para tirar a dúvida.

— Eu não sei. Foi muito estranho… — eu disse, abaixando levemente a cabeça — Ele perguntou por que ele era o único que eu não perdoava, mas, honestamente, não entendi. Quando pedi explicação, ele não disse nada. Quando tentei fugir, ele me encurralou na parede. Depois, quando eu acabei perguntando se era por causa da Mariana, ele… começou a chorar.

— Bia… você já parou pra pensar se, no fim das contas ele… gosta de você? Assim, de verdade? — ele questionou, mas, por algum motivo, eu senti tristeza em sua voz — Eu estava achando que ele era só um idiota, mas, para alguém orgulhoso que nem ele chorar… — ele disse, como quem não tivesse certeza de mais nada — Eu lembro de como ele te pegou no colo quando você estava mal, de como ele te defendeu da Lara, de como ele te tratava com carinho… se ele é o menino daquela história da piscina, isso deve magoá-lo.

— Mas ele tentou me afogar! Por que isso doeria nele? — eu quase gritei, um pouco confusa. — No fim das contas, eu sou a vilã da história?

— E por que você tem tanta certeza de que a história é assim?

Engoli em seco. Teria uma possibilidade de Alexandre ser inocente?

Eu já tinha chegado a pensar nisso.

— Sem chance… — eu murmurei, tentando pensar em como a história poderia ser diferente da que eu acreditava há anos.

— Ainda que não tenha chance de ele ser inocente… você não acha que poderia dar uma oportunidade de ele falar tudo sem desviar o assunto? — ele perguntou, com um tom doce, quase igual ao daquele Vicente de óculos, franja comprida e timidez inigualável — Vai ser bom pra vocês dois.

— Não sei se consigo… — murmurei, lembrando daquele jovem garoto do oitavo ano, que usava um casaco azul e me fazia companhia. E, naquele tempo, eu gostava da companhia dele — Ele era meu melhor, quer dizer, meu único amigo daquela época.

— Bia… — ele disse e respirou fundo, como quem estivesse se preparando para dizer algo realmente importante ou, quem sabe, doloroso — Todo mundo erra. Eu já errei com você só porque achei que tinha escondido alguma coisa de mim. Ele, talvez, esteja errando por não contar o que realmente aconteceu para você. Você pode estar errando por não tentar ouvi-lo.

É, provavelmente eu esteja.

— Já está quase na hora de eu ir trabalhar, mas ainda dá tempo de te fazer uma pergunta: você tem certeza que ele nunca quis te falar algo que talvez tenha relação com a história da piscina?

— Eu… — comecei a dizer, mas parei em seguida.

Ele havia tentado dizer alguma coisa.

— Vou deixar pra você me responder essa depois. Até amanhã, Bia! Já estão me chamando… — ele disse, com um tom um pouco mais animado.

— Até… — respondi com um desânimo enorme e encerrei a chamada.

Encostei a cabeça no colchão e comecei a pensar em uma maneira de tentar conversar com Alexandre sobre isso. Parecia difícil na teoria e impossível na prática.

Rolei de um lado para o outro, imaginando as milhares de reações que Alexandre poderia ter se, depois de tanto tempo, eu trouxesse essa história de volta à tona.

Isso já está me deixando louca.

Desistindo de pensar nisso, fui procurar alguma coisa mais importante para fazer. Afinal, não tinha nada que eu pudesse fazer em relação a isso, ao menos nada por agora.

Depois de ter conferido minhas lições e relaxado um pouco, fui procurar algo para assistir na televisão. As horas foram passando e nem percebi quando minha mãe chegou.

— Está distraída mesmo, hein? — minha mãe disse, colocando seus pertences sobre a mesa da cozinha e se dirigindo à sala rapidamente — Como foi seu dia, filha?

— Foi bom. Conversei com um amigo… — eu comentei, sem imaginar que ela se interessaria no assunto.

— Amigo, hein? — ela comentou, rindo — Sei…

— Mãe! — eu exclamei, caindo na risada — É só um amigo.

— Então tá bom… — ela disse, enquanto se sentava perto de mim — Preciso te contar uma coisa, garanto que é interessante.

— Tô dentro! — respondi com um sorriso no rosto e desliguei a TV — O que aconteceu?

— Sabia que a Mariana fez a festa sem os pais saberem? Gastou uma grana… só que eles estavam guardando o dinheiro para usar durante a viagem pra Alemanha, sabe como é, negócios… quando eles iam voltar, cadê o dinheiro? Eles estão devendo muito.

— Nossa! — quase gritei — Coitados… o corte de cabelo foi uma lição, então?

— Foi. E ainda tem mais! — ela disse — Ela vai trabalhar em dobro, pra conseguir o dinheiro todinho que gastou na festa. Mas, na minha opinião, os pais dela tiveram o que mereciam. Mimaram a filha demais e olha no que deu…

— É, tem razão… — eu concordei com ela. Mariana sempre pareceu ter tudo o que queria, desde o primeiro dia em que a vi, ela tinha aquela postura de “sou superior aos demais” — Mas onde conseguiu tanta informação?

— Quem mais me diria tanta coisa além da mãe do Matheus? — ela caiu na risada — A gente não suporta a mãe da Mariana.

— Será que a chatice é genética? — eu comentei, caindo na risada também.

Conversamos sobre várias coisas, assistimos televisão juntas… nos divertimos bastante. No final do dia, assim que fui dormir, não pude deixar de lembrar a conversa que tive com Vicente.

Mas, no fundo, eu tinha confiança de que tudo terminaria bem.

Os dias que se passaram foram entediantes como qualquer outro. Professores dando milhares de conselhos para os alunos, conversas dominando a sala de aula… nessas conversas, a história da Mariana já havia sido espalhada para toda a escola, abalando ainda mais a reputação da loira.

E claro, seu herói de cabelos claros estava ali, para consolá-la.

Embora eu e Vicente não ficássemos juntos no intervalo, de vez em quando trocávamos algumas palavras. Ele ficava sozinho em um banco e eu, no outro. Patético mesmo era ver Alex e Mariana sempre juntos, sem sequer olhar em volta.

Quando me dei conta, Novembro havia chegado, trazendo com ele o clima tenso de final de ano e, para mim, ainda que fosse uma data para qual eu não ligasse tanto…

— Acorda, preguiçosa! — minha mãe exclamou, com um pouco mais de alegria que de costume — Feliz aniversário! Está fazendo dezesseis aninhos… — ela disse, me tratando como uma criança. — É seu dia, mas você tem que ir para a escola.

— Eu sei… — resmunguei — Já vou levantar…

Novembro era o mês do meu aniversário.

Eu nunca contava o dia pra ninguém, mas, devido às redes sociais, alguns acabavam descobrindo. Não que eles me dessem parabéns.

Assim que terminei minha rotina pré-escolar, entrei no ônibus e coloquei os fones. É, os anos iam passando, mas eu não perdia esse hábito.

Após uma série de aulas chatas, o intervalo finalmente chegou. Fui andando calmamente, descendo as escadas bem devagar. Quando alcancei a quadra e estava prestes a me sentar no banco de sempre, recebi uma mensagem da Karol.

FELIZ ANIVERSÁRIO, BIA! Pensou que eu tinha esquecido, é? Pode deixar que não, ainda tentei ser a primeira a mandar parabéns pra você!

Agora é sério, parabéns, amiga. Infelizmente não tenho presente nenhum, a distância é algo que boicota de vez em quando…

Quando você chegar em casa, eu queria colocar o papo em dia. Matei aula hoje, estou com um pouco de resfriado…

Beijos e feliz aniversário de novo, haha.

PS: tenho novidades, mas só conto quando você chegar em casa. Sou má!

Não pude deixar de sorrir como uma boba. Ela lembrou do meu aniversário mesmo estando distante. Ouvi passos se aproximando e, em seguida, alguém se agachou na minha frente.

Era Vicente.

— Achou que esse ano eu não faria nada? — ele disse, rindo — Feliz aniversário, Bia.

Antes que pudesse dizer alguma coisa, ele me entregou um pequeno presente: uma fina corrente com um pingente de coração.

— Q-Que lindo… — murmurei, enquanto sentia a corrente em minhas mãos — Muito obrigada, é a primeira vez que ganho um presente de um colega da escola.

— Sério? — o com heterocromia se surpreendeu, abaixando a cabeça em seguida.

— É, mas não tem problema. — eu disse e levantei — Coloca pra mim, por favor? — perguntei, com a corrente em mãos.

Sem hesitar, ele pegou a corrente em minhas mãos e me ajudou a colocá-la no pescoço.

— Pronto! — ele disse, com um meio sorriso.

Como que, por impulso, eu o abracei com toda a minha força, o que o deixou um pouco surpreso, mas logo ele retribuiu o gesto com a mesma intensidade.

Foi aí que eu percebi que um certo garoto de olhos e cabelos claros estava nos observando.

De propósito, fiz questão de pressionar ainda mais o coitado do Vicente contra o meu corpo.

— Isso tá doendo um pouco… — ele disse e riu, me fazendo perceber que talvez eu tenha exagerado um pouco — Você tá me usando, né? — ele continuou com o tom descontraído.

— Nunca faria isso. — brinquei e, em seguida, o soltei — E desculpa por quase quebrar suas costelas.

— Podia ter continuado… — ele disse — Eu não ligo muito, podia quebrar todas elas e estaria tudo bem.

— Até parece… — respondi, me sentando em seguida.

— É, realmente, seria péssimo. — ele falou, um pouco sem graça — Mas, por outro lado, não acho que você faria isso com um simples abraço! — ele deu um sorriso, como quem dissesse “lide com isso!”, que me fez rir.

Ficamos conversando sobre vários assuntos até o sinal bater. Nos levantamos e fomos caminhando até o corredor, mas, antes de cada um de nós ir para suas respectivas salas, ele sussurrou para mim:

— Acho que o Alex vai tentar te barrar de novo, como naquele dia… quer que eu espere você na porta da sua sala?

— Não precisa. — respondi, confiante — Se ele vier falar comigo… vou ser bem honesta com ele.

— É assim que eu gosto de te ver. Mas me conta se acontecer alguma coisa, por favor!

— Pode deixar! — eu disse, correndo para a minha sala em seguida.

O sinal de saída sempre foi um dos sons mais agradáveis da escola e hoje não foi diferente. Arrumei meu material lentamente, coloquei minha mochila nas costas e, assim que me levantei, ouvi alguém me chamar.

— Diga, Alex. — eu disse, assim que encarei o dono da voz.

— Eu vi você recebendo esse cordão do seu namoradinho… — o de olhos claros me fitou de um jeito um tanto assustador, mas não me acovardei, o que o fez parar de falar.

— Ele não é meu namorado e também não tem culpa de ter se lembrado do meu aniversário.

Por um momento, ele pareceu sem graça, mas logo voltou a falar.

— Você sequer veio falar comigo esses dias! — ele protestou — Ficou sozinha semanas e mais semanas, mas não olhou na minha cara!

— E você veio falar comigo? — eu perguntei, com um tom mais seco — Não. Não ia atrapalhar você e a Mariana, ela realmente deve estar triste com tudo o que aconteceu e parece que só você quer consolá-la, então por que eu atrapalharia?

Ele ficou em silêncio por um tempo, parecia pensar no que diria.

Eu acabei com a graça dele, bem feito!

Logo depois ele apenas respirou fundo e disse:

— Feliz aniversário, ainda que eu tenha esquecido.

— Obrigada. Agora preciso ir, não quero ir com você pra casa de novo.

Saí da sala o mais rápido que podia, correndo em direção ao ônibus. Dessa vez não estava trêmula, nem triste, nem nervosa. Estava apenas me sentindo confiante.

E foi com essa confiança que eu terminei meu ano letivo.


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