Julgamento de uma Ilusão escrita por Mirai


Capítulo 10
Velhos sentimentos




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Assustei-me. Não era quem eu estava pensando, era?

— Tudo bem, eu não vou ficar magoado se você não me reconhecer de imediato. — ele coçou a cabeça, meio sem graça.

Encarei-o, tentando identificar. Os traços de seu rosto me eram muito familiares, mas precisava de outro fator para saber quem era esse rapaz. Olhei suas mãos, com pequenas cicatrizes.

As mesmas cicatrizes de Vicente.

Dei um meio sorriso e foquei em seus olhos, já que a franja estava mais curta: um castanho e o outro verde.

— Vicente…

— Eu achei que você ia demorar mais para me identificar. — ele disse — Você é bem melhor do que eu, que demorei uma eternidade para te reconhecer no começo do ano.

— Mas é impossível não te reconhecer! Você tem características únicas, Vicente. — disse, sorrindo, arrancando uma risada tímida dele — Você ficou bem melhor assim, mas… está usando lentes?

— Meu grau diminuiu um pouco nesse período, meus óculos estavam me dando dor de cabeça. Eu consigo te enxergar quase nitidamente, bem diferente de quando eu tirava os óculos. Mas pode ficar tranquila, em breve vou fazer outros.

— Tem certeza que vai conseguir copiar a matéria? Se não conseguir eu te empresto meu caderno e…

— É tão engraçado te ver preocupada… — ele sorriu — obrigado, mas eu prometo que vou ficar bem.

— Se você diz…

Começamos a conversar sobre várias coisas, mas nenhum de nós dois tocou no assunto Alexandre. Devido a alguns problemas durante o trajeto, chegamos um pouco atrasados na aula. Cumprimentamos a professora de Química e sentamos em uma das poucas cadeiras que restavam. Embora eu tenha insistido, ele deu preferência que eu sentasse em uma das cadeiras mais para a frente. Assenti, já tínhamos chegado atrasados, não queria atrapalhar a aula por causa de uma simples carteira.

Durante a aula, podia ouvir algumas garotas fazendo perguntas para Vicente como “você tem namorada?”, “a Beatriz não é nada sua não, né?”, “no intervalo, quer ficar no nosso grupo? A gente te trata bem!”, entre outras. Um grupo de meninos riam das respostas tímidas dele. Eu preferi continuar aonde estava, sem me intrometer, aliás, uma das meninas “atiradas” era Mariana e o clima na sala estava tão agitado que elas dificilmente ouviriam minha voz.

Continuei me concentrando em meus exercícios, ao menos, tentando. A junção de todos os ruídos na sala já estava começando a me dar dor de cabeça. Eu nunca esperei tanto que o intervalo chegasse logo.

Ou será que já?

Para minha sorte, o sinal bateu antes que eu piorasse. Levantei calmamente, peguei apenas meu celular, já que estava sem fome, e me preparei para sair da sala sozinha, pois as meninas já tinham arrastado Vicente junto delas.

— Eu não o culpo. — uma voz conhecida ressoou ao meu lado — Eu confesso que elas são bonitas, mas, cara, largar a dona assim é vacilo.

— Bom dia para você também, Alexandre…

— Você não parece bem. — ele abaixou um pouco para conseguir ver meu rosto — O que você tem, hein? Não gosto de te ver desanimada.

— Só um pouco de dor de cabeça. Nada de mais.

— Quer ajuda para descer as escadas?

— Não precisa, afinal, é só uma dor de cabeça. Mas você está muito prestativo hoje… — disse, levemente desconfiada — O que aconteceu?

— É que… bem… — ele disse, sem graça — parece que as meninas abandonaram o vira-lata aqui e, quem sabe, sendo um bom cachorrinho eu consigo alguém para cuidar de mim?

— Você está apelando, então. — soltei uma leve risada, o que fez a dor dar uma leve fortalecida — Tudo bem, provavelmente vamos ser dois sozinhos hoje…

Saímos da sala conversando sobre coisas comuns. Ele falava mais sobre ele, o que me fazia lembrar os velhos tempos. Aquilo me fazia querer chorar, mas eu consegui driblar esse sentimento.

Nos dirigimos à cantina, pois ele queria comprar seu lanche, e nos sentamos juntos, como no passado. Dei uma rápida olhada, mas parecia que o grupo de Mariana e seu refém, Vicente, estavam longe.

— Provavelmente estão na outra quadra, se é eles que está procurando. Quer ir lá dar uma olhada? Ou prefere que eu vá?

— Vamos nós dois. Que tal?

— Por mim, tá ótimo! — ele deu um meio sorriso.

Fomos juntos em direção à outra quadra. Vicente nos encontrou primeiro, saindo do grupo das garotas para falar conosco.

— Bia! Eu pensei que não conseguiria sair de lá nunca e… espera aí, ele veio contigo? — Vicente perguntou, com desconfiança.

— Sim, eu acompanhei ela porque parece que “alguém” — Alexandre fez aspas com os dedos — não sabe dizer não, né?

— Que nem certo “alguém” que conheço! — o de íris bicolores revidou.

— Gente, por favor… — eu tentei separá-los sem muito sucesso, já que a dor de cabeça estava aumentando — … não tem porque vocês discutirem aqui.

— É, Alexandre, ótima recepção pro novato! — uma das meninas do grupo se aproximou e falou, batendo palmas irônicas.

— Novato? Que novato? Tá maluca? — ele perguntou, com um ar debochado — Esse menino é o…!

— É, o Vicente, e daí? — Mariana disse, levemente impaciente, ao lado de sua colega.

O sinal tocou, indicando o fim do intervalo. Mariana e seu grupo foram em direção ao corredor, me deixando sozinha com Alexandre e Vicente. O clima entre os dois estava péssimo.

— Gente…? Vamos para a sala agora ou preferem esperar um pouco mais? — perguntei, tentando quebrar o silêncio.

— Eu não me importo. Subimos quando você quiser. — Alexandre disse, ajeitando sua franja apenas com o indicador — O que eu quero saber é se você está bem, depois desse escândalo.

— Hã? O que você estava sentindo, Bia? — Vicente perguntou, preocupado — Está com febre? — ele encostou as costas da mão em minha testa.

— Um pouco de dor de cabeça, mas acho que já vai passar…

— Você está mentindo. — os dois disseram, em coro.

— Quando você diz que vai ficar tudo bem, você piora! Lembra daquela vez que você ficou com um pouco de febre na escola e depois teve que faltar uma semana porque não conseguia sequer levantar da cama? Você disse a mesma coisa! — Vicente exclamou, preocupado, mas eu não me lembrava das coisas terem ocorrido exatamente assim — Tem certeza que não quer falar com algum inspetor?

— Tenho, tá tudo bem, sim. — respondi.

— Então… vamos antes que a professora dê uma advertência daquelas pra mim e um sermão em vocês. Se bem que a gente pode até dar uma volta, é só falar que a criança aqui estava se sentindo mal. — Alexandre disse, rindo.

— Ei, é feio usar os outros de escudo! — protestei — Vamos logo.

Subimos as escadas calmamente, a pedido de Alexandre. De vez em quando, eu quase perdia o equilíbrio. Com certeza eu não estava apenas com dor de cabeça.

— Vão na frente. Eu vou procurar um inspetor. Não quero que levem advertência por minha causa. — disse, com dificuldade. Estava começando a suar frio.

— Nem brincando, criança! — Alexandre disse, me pegando no colo, o que me fez sentir um pouco de medo — Você tá quase morrendo aí e a gente te deixa pra trás? Não vou na frente droga nenhuma! Vicente, você vai na frente, eu busco ajuda. Qualquer coisa que a professora reclamar, fala que salvar sua amiga é mais importante.

Sem nem mesmo esperar uma resposta, Alexandre subiu as escadas, com todo o meu peso em seus braços. Assim que chegou no segundo andar, uma inspetora o impediu.

— Mas o que tá acontecendo aqui, garoto? — ela perguntou, autoritária, — E o que aconteceu com ela? Ela tá tão pálida!

— Eu não sei, ela falou que estava sentindo dor de cabeça, ela parecia meio tonta, também… — ele disse, com um tom preocupado, mas sua expressão fazia parecer que ele estava tirando sarro da cara da inspetora — Eu fiquei com medo de ela cair da escada, por isso tive que carregá-la nos braços.

— Caramba… — a mulher coçou a cabeça, sem graça — Vamos, me segue.

Alexandre obedeceu, acompanhando a mulher até uma sala com remédios, uma espécie de cama e um banco ao lado.

— Coloca ela sentada aqui. Eu cuido do resto. Você pode ir para a sala, rapaz.

— Já perdi quase que a aula toda. Vou ficar aqui mesmo. — ele respondeu, após me colocar delicadamente no banco.

A mulher soltou uma risada suave e se aproximou de Alexandre, sussurrando algo para ele, que respondeu com um “fico com a segunda opção”.

— Vou precisar sair agora, criança. — Alexandre disse, desanimado — Vou voltar para a sala e avisar pro Vicente que você está bem. Melhoras, tá, princesa. — ele se aproximou e fez uma leve carícia em meus cabelos.

Assim que o rapaz saiu, a inspetora tirou meu casaco, desabotoou uma parte de minha blusa e prendeu meu cabelo. Depois, pediu que eu abaixasse a cabeça “abaixo dos joelhos”. Embora ela estivesse tentando me ajudar, eu acabei perdendo a consciência.

Abri os olhos, lentamente. Estava deitada na cama, as pernas um pouco mais elevadas que o resto do corpo.

— Que bom que você acordou, moça. — uma outra inspetora disse, parecia aliviada — Quer ajuda para se levantar? Ou consegue fazê-lo sozinha?

Com um pouco de dificuldade, consegui me por de pé. A mulher me ofereceu água, perguntou como eu estava, entre outras coisas.

— Estou me sentindo bem, senhora. — respondi, calmamente — Obrigada.

— Abotoe um pouco mais sua blusa, tem dois rapazes querendo te ver.

Alexandre e Vicente, com certeza.

Ajustei minha roupa rapidamente, agradeci mais uma vez e saí do cômodo. Como eu imaginava, os dois estavam do lado de fora.

— Está melhor agora? — Vicente me perguntou, colocando as costas da mão em minha testa — Bom, sua temperatura está normal, mas… só para conferir, mesmo.

— Bem melhor. Mas… o que você está fazendo aqui? A professora liberou mais cedo?

— Foi. Ela encerrou o conteúdo de hoje um pouco mais cedo do que esperava, então liberou os alunos para a quadra. Eu saí correndo para ver como você estava, já que Alexandre disse que você tinha desmaiado…

— Eu fiquei muito preocupado, criança! Por um momento, eu pensei até que você poderia morrer! — Alexandre me deu um abraço não muito apertado, mas que fez meu rosto ficar um pouco avermelhado — Tudo bem mesmo? Não fala que está tudo bem se não estiver, entendido?

— Entendi… — respondi, sem graça — só me desculpem por isso.

O sinal de saída tocou, fazendo com que Alexandre me soltasse e pegasse sua mochila no fim do corredor. Vicente já estava com a dele nas costas e a minha em uma das mãos, assim que permaneceu do meu lado.

— É, parece que, por hoje, é só… até amanhã, gente. E se cuida, princesa! — Alexandre disse, como quem quisesse provocar alguém, e logo desceu as escadas.

— Então, vamos? — perguntei a Vicente, que apenas assentiu com um gesto.

Fomos quase os primeiros a entrar no ônibus, assim que conseguimos sentar juntos, ao contrário das outras semanas.

— Finalmente conseguimos! — ri, discretamente.

— É, faz um tempo que a gente não senta junto na volta… — Vicente falou, com a cabeça levemente baixa.

— Vicente? Tudo bem?

— E-Eu queria… fazer uma pergunta… — ele gaguejou, parecia nervoso.

— Tudo bem. O que é?

— Qual a sua relação com o Alexandre?


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Notas finais do capítulo

Então, curiosos para saber a resposta?
Espero que tenham gostado do capítulo! ♥



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