Ondas de uma vida roubada escrita por Maresia


Capítulo 95
Pétalas de tristeza




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/670836/chapter/95

— A madrugada caminha silenciosamente pelas bermas solitárias da noite, personificando em cada passada insegura e triste a melancolia atroz do sofrimento, a brisa amuada e caprichosa avança determinada pelas florestas da perda e da saudade, os assobios do futuro voam para longe do meu coração, atirando-o num lago negro e parado onde os raios de sol e felicidade nunca chegarão. - Reflectia a jovem Diana de forma triste, sentindo a solidão da noite e a nostalgia da madrugada percorrerem insolentemente a sua mente. - Durante diversos meses fugi do passado, escondi-me da dor, afugentei a luz do futuro, esqueci os sonhos, lutei por não me encontrar no meu interior, porém o destino traiu-me, trazendo-me de volta à tona do mundo, pensei que abraçaria de novo a vontade e a alegria que estupidamente atirei no lixo, pensei que as sementes de tristeza que há demasiado tempo me acompanham ficariam trancadas nas profundezas do meu passado, no entanto voltaram a brotar com uma intensidade brutal nunca antes sentida pelo meu espírito, e aqui estou eu, arrastando-me novamente pelas estradas da amargura e do sofrimento, sentindo que não pertenço a lugar nenhum, nem a pessoa alguma, simplesmente vagueio à deriva entre a luz azul do mar e o carvão negro da noite. - Debatia-se angustiada, enterrando o rosto bonito nas entranhas macias da sua almofada. - O sono abandonou-me, adormecendo nos muros rugosos e sibilantes da noite, as dores provocadas pelo treino com o Tony arrastam-se insolentes pelo meu corpo, a minha alma plana sobre uma cama fria e deserta, desprovida de calor ou paixão, o Clint quis dormir no seu quarto, longe de mim, longe do meu coração, sinto, apesar de poder estar enganada, que nos últimos meses floresceu uma enorme parede de sal entre nós, uma parede salgada que conseguiu secar as marés polidas do nosso amor. - Pensava tristemente, tacteando a ausência do Arqueiro na floresta desprotegida dos seus lençóis. - As folhas dos jornais voavam silenciosamente pelas pontas dos meus dedos, segurando com força aquela missão inabalável de encontrar o meu pai, todavia essa luz sumiu injustamente na vidraça chorosa do meu ser, evaporou-se naquelas ilusórias noites de primavera, desapareceu num deserto de caos, desilusão e procura como um oásis de neve desaparece perante a miragem fumegante do fogo, agora somente passas de uma memória indefinida e de um sonho que jamais alcançarei, provavelmente permanecerás escondido nas milhares de páginas que se passeiam arrogantemente pelo mundo, longe das pontas frias dos meus dedos. - Cismou desesperada, lançando um olhar de esguelha à janela pela qual os primeiros e tímidos raios de sol entravam, reflectindo os seus pesadelos numa tela espelhada e partida, venerada pela noite e pelo destino. - Algures entre o jardim de água e o oceano das flores existe o arbusto mais majestoso e incrível de todos, um arbusto nascido sobre a areia da coragem e brisa da honra, um arbusto cuja luz da esperança rivaliza com a luz do próprio astro maior, porém esse arbusto agora tomba murcho sobre a terra molhada pelas minhas lágrimas, levando no seu triste tombar os devaneios silenciosos do meu jovem coração. - Pensava angustiada, abrindo devagar uma pequena caixa que guardava a sua inspiradora colecção de cromos dos heróis mais poderosos da terra, retirou um do organizado monte e fitou com curiosidade e tristeza os olhos incrivelmente azuis e sonhadores de Steve Rogers. - O escudo que tudo e todos protege neste momento fere o meu espírito, aquela missão era tudo o que eu queria para mostrar que estou de volta, para mostrar que ainda sou a mesma, para mostrar que o sangue que corre nas minhas veias é o sangue de um Vingador, porém tudo se desvanece e o meu lugar no mundo pinta-se de branco, vazio e gelado. - Reflectiu de forma melancólica, passando os olhos fechados e doces pelas figurinhas que criaram o seu destino.

Algures na imensidão da perfeita linha do horizonte, alguém agitava os passos leves e seguros pelos recantos adormecidos e silenciosos, alguém cujo encanto do sono também não o tocou, deixando-o à mercê dos seus pensamentos, inseguranças e erros. Uma silhueta indefinida e calma emergia nos primeiros raios de sol, alimentando aquela fresca madrugada com o perfume ardente do seu passado, caminhou rapidamente pelo espelho escuro e partido da sua paralela existência, sem se dar conta patrulhava habilmente as ruas em seu redor, não precisava de ver para saber onde o seu destroçado coração pretendia ir, bastava seguir o aroma que o levaria ao inicio do perfeito encontro e união entre o mar e o mundo, o reencontro que reescreveria a sua vida dali em diante.

As ruas e a madrugada arrastavam-se pelos caminhos talhados pelos tímidos raios de sol, levando nas suas asas aquele sujeito sonhador e triste, pousando-o suavemente nas escadas sujas e sangrentas do abandonado orfanato Spring, o berço da morte e da raiva.

Sentou-se na base dos degraus, encarando com repulsa e tristeza a flor da morte que brotava em cada negra molécula daquele lugar, anulando a fraca flor da vida com apenas um leve e pútrido sopro. Olhou em volta, a sua expressão demonstrava uma enorme perplexidade ao avistar um pequeno pássaro de telhado que alimentava feliz os seus pequenos filhos, algumas lágrimas rolaram do seu rosto fechado e rígido, caindo no abismo sem fim do futuro.

As janelas abriam-se pela mão suave da alegria, a porta do humilde orfanato escancarou-se para deixar os primeiros raios de sol entrar pelas íris sonhadoras das dezenas de crianças que tomavam um delicioso e pobre pequeno-almoço, um homem bem-parecido, sentado num berço de tristeza e solidão, observava pensativo o bonito cenário, tacteando desesperado nas hastes negras do seu presente passado.

— Tem cuidado com os carros Diana! - Gritou a encarregada do orfanato em tom doce, vendo uma das suas borboletas deslizar divertida para a rua, segurando entre as pequenas mãos uma bola de esponja.

— Sim Madame Lisa, eu sei. - Respondeu a delicada menina, cumprimentando o sol com o seu doce e contagiante sorriso.

O sujeito olhou a menina com profunda admiração e orgulho, um orgulho tão puro e honesto que faziam os seus olhos incrivelmente azuis faiscarem ao sabor das correntes da liberdade, aquela menina era o erro mais bonito e mais perfumado da sua vida, um erro que o acompanharia para sempre.

— Aquela pequena e suave bola de esponja saltita alegremente em cada pedaço partido do meu coração, dança divertida em cada partícula envenenada do meu espírito, brinca entusiasmada em cada angustiado pensamento, palpita em cada nobre e prateada palavra do mar, esta menina dará para sempre a força pura e digna ao escudo de esperança e humildade que protege a paz na terra. - Pensava o homem de forma nostálgica, vendo o infinito desenhar-se no olhar inocente da pequena Diana, vendo a perfeita união do sal e do mel caminhar pelos simples e leves gestos da sua brincadeira. - Cuidado!

— Anda cá bola malandra! - Exclamou a doce Diana em tom divertido, correndo atrás da sua macia bola que rolara suavemente para a estrada.

Vindo desenfreado de uma esquina caprichosa e suja apareceu um carro vermelho escarlate, trazendo ao volante a morte e o demónio, a pequena bola voou tristemente nos ventos do desalento e do medo, os travões do carro guincharam de dor empurrados pelo grito agonizante do estranho espectador, uma enorme nuvem de pó saltou do sol inundando os olhos dos curiosos que espreitavam pelas pequenas janelas do prédio.

— Estás bem? - Perguntou o homem em tom ofegante, pegando a menina a escassos milímetros dos faróis dianteiros da viatura. - Tem calma, eu estou aqui. - O olhar preocupado do homem mudou radicalmente, outrora preocupado e assustado passara a ostentar uma expressão radiante e admirado ao reparar que a menina refugiada nos seus fortes braços lhe sorria alegremente.

— Obrigada, aquela bola marota está sempre a fazer isto! - Disse Diana em tom doce, afagando os cabelos de palha do seu salvador, observando a sua bola inerte do outro lado da estrada. - Podemos ir lá buscá-la?

— Claro, aqui a tens. - Assentiu o sujeito completamente perplexo com a indefinida inocência daquela criança, cruzando a passada larga a estrada, devolvendo a bola a Diana. - Agora talvez devas ir para dentro do orfanato, já chega de aventuras por hoje, não achas?

— Sim acho, um dia se quiser pode voltar para brincar comigo! - Exclamou a doce Diana entusiasmada, agarrando-se com força ao pescoço do homem que a livrara das garras da morte.

Os dois adentraram divertidos pela porta aberta do orfanato, recebendo as boas vindas por um corredor pobre e solitário, fortemente patrulhado pela competente e amorosa madame Lisa.

— Jamais esperei ver o senhor no meu orfanato, não imaginava que viria visitar a casa da pequena Diana. - Atirou a delicada encarregada em tom de desaprovação, retirando a doce e leve borboleta dos braços do sujeito, olhando-o com a mais pura das desilusões.

— As ruas de Brooklyn sempre foram a minha casa, cravaram no meu peito a minha identidade, honra e dignidade, os seus maus tratos, humilhações, privações e pancadas fizeram de mim o homem que hoje sou. - Respondeu o sujeito em tom triste e desapontado, olhando em redor com a culpa a brilhar triunfantemente nos seus olhos azuis e sonhadores.

— Brooklyn criou um homem cobarde egoísta e ingrato, não vejo nada mais diante dos meus olhos, és uma sombra indefinida do que outrora foste. - Atirou Elisabeth de forma arrogante e ressentida, olhando com carinho a pequena Diana que deambulava divertida em redor, escutando atentamente a melodia dos anjos da primavera que trouxeram injustamente até às suas mãos o aroma do futuro.

Uma enorme baforada de fumo tóxico arrancou o estranho homem do seu melancólico devaneio, trazendo-o de volta a uma realidade mais crua e cortante do que a ilusão onde estava prisioneiro, um mendigo nauseabundo fumava um cachimbo manchado pelo tempo, trajava umas vestes rotas, sujas e malcheirosas, o seu rosto ostentava uma expressão parada, consumida pelas ruas e pela própria e ingrata vida, na palma da sua mão escrevia um futuro confuso e pouco ilustrado, onde não existiria lugar para sorrisos nem perfume de esperança, um futuro humilhado e traído pelo passado de cada habitante do planeta terra.

— Desculpe, pode lançar o fumo para outra direcção? - Questionou o homem sentado nos degraus do velho e desprotegido orfanato Spring em tom aborrecido, tapando o nariz com uma das mãos, pintadas pela luminosidade ardente da noite.

— Quem está mal que se mude, mas na minha opinião um prisioneiro do passado não poderá mudar de vida enquanto continuar a alimentar a conspiração do universo, pense nisto meu amigo. - Afirmou o mendigo em voz baixa e fria, fitando o homem com cara de poucos amigos, desaparecendo por fim, envolto no fumo negro das suas sábias e duras palavras.

A vida é uma constante prisão da condição humana, alimentando e fortalecendo esta miragem ilusória do nosso coração e da nossa mente jamais alcançaremos o futuro, pois a disponibilidade para tal acção ficou perdida e amordaçada em memórias retorcidas que adocicam as amargas algemas das lembranças agonizantes e injustas que somente fomentam rios de lágrimas e noites de solidão, onde não existe lugar nem tempo para o arrependimento ou rendição.

Conseguirá este homem transformar os seus fantasmas em reais momentos de felicidade? Será Diana capaz de reencontrar o seu lugar no mundo? O que reserva a ampulheta do tempo para os heróis mais poderosos da terra?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Ondas de uma vida roubada" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.