Ondas de uma vida roubada escrita por Maresia


Capítulo 84
Murmúrios azuis




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O beijo da lua e do mar encantava o céu nocturno, as lamparinas do destino acendiam-se em cada melódica palavra, os grãos de areia coloriam as ampulhetas dos primordiais sentimentos do coração, as ondas da sorte e da esperança descreviam nas auroras verdes do horizonte as esferas de um futuro quase perfeito. Diana agitava-se pensativa nas entranhas frias e solitárias do seu leito, fazia dois dias que a sua casa abrira os seus humildes braços para a receber no seu materno regaço, porém o seu espírito ainda vagueava pela solidão cálida da noite e pela clareza escura dos dias. Nas pontas geladas dos seus finos dedos brincavam os reluzentes cromos dos heróis mais poderosos da terra, as pequenas e sonhadoras figurinhas que escreveram as meras especulações do seu abstracto amanhã. A aceitação plena e inesperada dos factos transportaram a sua delicada e fresca alma até à paisagem campestre que deambulava sobre a ponte que unia as ardentes fendas do passado às frescas linhas do presente, desenhando em cada astro a pintura cinzenta do futuro.

A morena caminhava lentamente pelas margens ondulantes e relvadas do silencioso riacho que se perdia na calmaria azul do firmamento, marchando reluzente sobre o puro algodão da chuva prateada dos sorrisos e dos sonhos, desenhando nas suas profundas e misteriosas vagas o carinho de mil beijos de sal e maresia. Os seus doces e confusos olhos regavam o verde palpitante do mundo, enquanto a saudade brotava em cada leve pétala de vento fresco, voando sobre a imensidão azul do reencontro trepidante das almas num mundo onde jamais existira espaço para a mortal conspiração da vida.

— Fica tranquila, eu seguro-te. - Murmurou uma voz calma e familiar, vinda das profundezas flamejantes do verde-esmeralda, o misterioso caminhante das sombras recortava-se contra a cortina espessa de nevoeiro e tristeza que consumia o azul meloso e fresco do futuro. - Tens que ter mais cuidado, fiquei preocupado.

— Só vim dar um passeio, além disso estou completamente restabelecida. - Ripostou a Vingadora em voz amuada, foram meses repletos de dor e sofrimento, todavia os raios da saúde voltaram a bronzear o seu corajoso espírito.

— Pareces triste, o que se passa? - Inquiriu o caminhante das sombras em tom baixo, olhando aqueles olhos lindos e profundos onde a traição impiedosa do infortúnio gravara as suas tenebrosas garras, abrindo feridas que teimavam em não cessar o seu brilhante sangrar.

— Eu estou confusa, não sei o que fazer. - Confessou a jovem em tom triste, a saudade caminhava pelo seu corpo como uma bactéria incontrolável, porém o seu espírito estava prisioneiro daquela vereda e daquele homem. - Queria tanto encontrar o meu lugar, sinto que não pertenço a parte alguma.

— Por vezes também sinto o mesmo, eu compreendo, todavia essa descoberta cabe-te a ti fazê-la. - Afirmou o viajante do mistério de forma pensativa e ausente, recordando com nostalgia os tempos longe do tempo.

— Se eu voltar para junto dos Vingadores tu continuarás a fazer parte da minha vida? - Questionou a jovem em tom baixo e receoso, não que tivesse medo daquele homem, mas temia a resposta que tardava em chegar, continuando perdida e imersa naquele silêncio azulado e fresco, não conseguia aceitar aquela inesperada e triste separação, visto que a profetizada união entre os dois já fora tão conturbada e perigosa, era difícil deixar aqueles meses imersos e escondidos naquela vereda campestre.

Diana olhou esperançada para o céu estrelado, tecido pelas mãos comprometedoras do destino, os astros ocultavam-lhe a verdadeira e decisiva identidade daquele homem, porém isso deixara de ser importante, pois ela sabia que ele guardaria a sua vida com as adagas vindas dos céus, protegê-la-ia dos demónios do passado com a água abençoada do seu misterioso espírito, ele seria o escudo que declamaria lendas de honra, sonhos e liberdade.

— Apesar de eu não estar de acordo com o teu reencontro com os Vingadores, jamais te abandonarei, continuarei a ser a tua sombra. - Admitiu o estranho homem de forma sincera, pegando na mão da morena, a confiança que outrora nutria pelos seres humanos desvanecera-se num abismo negro e infindável, abandonando o seu coração à mercê das injustiças e das cobardias da humanidade, não havia volta a dar. - Eu não posso confiar em alguém que brinca com a tua vida como se de um troféu se tratasse, és demasiado preciosa para estares junto a pessoas que somente difundem o bem e a paz pela humanidade, esquecendo-se por vezes das fragilidades e temores dos seus companheiros, talvez os Vingadores não sejam tão diferentes dos vilões que dignamente combatem. - Proferiu em tom desiludido, semeando em cada gelada palavra a descrença trazida pelos insuportáveis ventos do tempo.

— O teu passado é um mistério para mim, contudo sei que buscas uma nova oportunidade, uma chance para te redimires com os teus erros, uma forma de matares os teus assombros, uma nova opção para a tua vida, estou certa? - Inquiriu a morena em tom distante e compreensivo, ela durante vários e arrepiantes meses também buscara a sua própria rendição, sabia o quanto sofrera para a pegar pela mão, todavia tinha plena consciência que os seus amigos tiveram um papel fundamental nessa longa e dolorosa travessia, travessia que quase lhe roubara a luz dos olhos.

— Eu não tenho o direito de poluir a tua sagrada mente com os erros e pecados de alguém que já nem existe, ficou perdido naquela primavera rasgada pelo fogo carmesim do diabo, não tentes compreender o que me corre ardentemente pela alma, eu sou um mero fantasma que vagueia pelo cenário de guerra que se arrasta cruelmente no meu interior, sou somente um filho imperfeito do mundo, um produto inacabado do destino...

— Pára com isso, eu posso não te conhecer, no entanto eu vejo o teu coração em cada palavra que plantas sobre o vento, eu sinto cada tenebrosa baga de angústia que afogas nas águas da vida, eu condeno cada dolorosa semente de sofrimento que a terra fria dos glaciares semeara no teu espírito, eu repugno cada insolente pesadelo que transforma os teus sonhos de menino numa miragem negra como o breu, por isso não te admito que desvalorizes o teu eu, todos nós somos imperfeitos, e são os teus defeitos e qualidades que fazem de ti o homem bom e generoso que realmente és, são esses momentos menos optimistas que te tornam único. Vê e aproveita os teus erros como sendo aprendizagens futuras, abraça-os como novas e reluzentes oportunidades. - Proferiu a Sereia em voz sufocante, derramando sobre o oceano do mundo lágrimas de prata e saudade. - Eu não conheço o homem que errou no passado, eu somente conheço o homem que me salvou das fatais garras da morte, o homem que conservou a minha vida na palma da sua mão. - Disse no mesmo tom sumido, abraçando o caminhante das sombras, cravando no seu peito a linda e perigosa luz do mar. - Eu não sou ninguém para te julgar, acredita em mim.

— Uma tenebrosa espada crava o seu aguçado gume no meu coração, uma enorme e lenta corrente de gelo amarra a minha alma às cinzas fumegantes e ardentes do tempo, uma serpente infinita evade a minha língua envenenando as minhas palavras e pensamentos, não é justo mantê-la na mais pura e cruel ignorância, porém a dor que sinto ao imaginar que a posso magoar destrói a vontade de revelar as insígnias inscritas e protegidas pelos astros, não a posso desiludir, a ilusão é falsa e impiedosa, todavia bela e quente, a seu tempo ela conhecerá a verdade. - Pensou o viajante do mistério em tom recriminatório, pois a condenação era a sua única e derradeira saída, visto que todas as entradas possíveis estavam trancadas. - Fica tranquila, eu estarei sempre aqui. - Disse em voz amável, embora dragada pelo amargo doce do limão.

— Tu não confias no Steve? - Perguntou a Vingadora de forma tímida, atirando uma pedrinha ao rio, escutando deliciada a voz leve das águas.

— O meu passado confiaria ao Capitão América a minha própria vida, no entanto o meu presente já não é assim. - Confessou o estranho homem de forma reprovadora, o peso do passado e a agonia tremenda das recordações martelavam no seu peito como uma bomba atómica que reduzia o seu imperfeito eu em pequenos fragmentos da bandeira americana.

— Não vale a pena perguntar porquê, pois não? - Perguntou Diana numa voz pouco esperançada, sentando-se sobre o manto de areia molhada pelas lágrimas da solitária lua. - Apesar de tudo o meu espírito não vive sem a sua protecção, eu preciso dele, a sua ausência impregna-se no meu coração como um veneno mortal que desfaz a minha vontade de viver.

— Ele sempre teve esse dom, o herói que cultivou o sol da liberdade no coração da humanidade, o homem que acendeu a luz da vida no ceio incontestável da morte, não condeno os seus ideais, no entanto contesto as suas atitudes. - Comentou o misterioso homem num misto de saudade e reprovação, plantando no coração da morena mais questões abstractas cujas respostas fugiam levadas pela brisa da mudança. - Porém observo nitidamente o teu devastador sofrimento, recuso-me a ser o delator desse sentimento, parte quando quiseres, mas quero que saibas que estarei sempre aqui, estarei sempre à tua espera.

— Não desapareças, eu já não imagino a minha vida sem ti, fica por perto. - Pediu a Sereia em tom suplicante, com o passar indubitável dos dias os laços que criara com aquele enigmático homem fortificavam-se intensamente, alimentados e perfumados pelos doces raios da primavera.

— Eu estarei sempre que precisares de mim, tu sabes disso. - Respondeu o caminhante das sombras em voz baixa e triste, fitando aqueles olhos repletos de esperança e sonhos. - O seu sorriso rivaliza com o sorriso dos anjos, como é que é possível abandonar à mercê da falsidade da sorte alguém assim? - Questionou-se em silêncio, vislumbrando com profunda admiração aquele doce sorriso reflectido nas estrelas.

A morena deixou os seus felpudos cobertores para trás, caminhou preguiçosamente até á janela beijada pelo ar frio da noite e maltratada pelos ruídos ensurdecedores da saudade. No passeio empedrado, onde a sujidade realizava o seu usual desfile, deambulava uma figura emoldurada pelas vestes da solidão e da tristeza, segurando pela trela um cão que quase não andava.

— Clint. - Murmurou a Vingadora em tom melancólico, avistando a figura bem-parecida do seu namorado, apesar de estar de volta a alguns dias a coragem de rever os seus amigos ainda lhe escapava freneticamente por entre os dedos, ainda procurava o seu verdadeiro lugar.

— Já a procuramos por todo o lado, agarrei-me à esperança de a encontrar, não aguento mais viver na ilusão, chegou a altura de seguir em frente, o que achas Gavião?- Perguntou o Arqueiro em tom sufocante, como se o simples facto de prenunciar aquelas palavras lhe roubassem o ar. - Vamos entrar meu amigo? - Inquiriu de forma triste, abrindo a porta de casa da Vingadora, encarando aquelas paredes vazias e frias onde outrora a alegria e a fantasia reinavam. - Chegou a altura de deixar as ilusões no passado.

— Eu não sou uma ilusão Clint, estou aqui. - Afirmou a Sereia em voz delicada, caminhando em pezinhos de lã até junto do mestre das setas.

O caminhante das sombras vagueava pelas ofuscantes luzes da noite, perdendo-se em cada negra esquina, recordando os dias de sol e liberdade em que salvara um menino franzino da maldade desmedida dos amantes da rua cujo passatempo era a pancada sem limite, um menino que marcara a sua vida para a eternidade reluzente do gelo.

— Sempre fui eu o teu salvador, sempre te tapei as costas, sempre fui o teu escudo, retribuías sempre com um sorriso de encorajamento no rosto, porém nunca me conseguiste proteger do mais letal dos perigos, eu próprio, porém devo agradecer-te com todas as minhas forças, a tua horrenda cobardia deu-me a luz da rendição e a vontade de viver. - Reflectia o viajante do enigma em tom pesado, marcando cada pensamento com as adagas da revolta, deixando nas suas costas os murmúrios azuis do oceano.

Será o reencontro da Sereia e do Arqueiro pintado com as belas cores da alegria? Que histórias esconderá o estranho homem na sua bagagem?


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