Ondas de uma vida roubada escrita por Maresia


Capítulo 83
Suspiros da alma




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O céu arrastava-se pelos fumos tóxicos do inferno, uns pés pequenos e descalços arrancavam o terreno pérfido e manchado de sangue inocente, gelados carris de comboio conduziam o destino imperfeito de um perdido menino de apenas dois anos através do pecado e da história tristemente decorada. Ao longe, derretendo o horizonte cor de platina exibia-se em toda a sua horrenda plenitude o paraíso escuro da morte, a pútrida e doce tortura espreitava em cada disfarçada esquina, sorrindo de prazer e maldade através dos seus infindáveis olhos. O pequeno menino estagnou junto de um pilar onde as pupilas do firmamento reflectiam as traições da história e as ilusões do futuro, fitando com assombro a silhueta abundante da solidão desfilando em cada melancólico grão de areia molhada pelo sangue dos sonhos.

— Pai, mãe. - Murmurou o pequeno Jeremy em tom ofegante e desesperado, tombando sobre os carris que conduziam ao sagrado portal do inferno, caminhara durante dias, buscando o conforto do honesto calor humano, porém essa busca revelara-se inglória e somente encontrara miséria, frieza e segredos monstruosos que o mundo tentava apagar. - Ajudem-me. - Pediu na mesma voz amargurada, fitando com terror aquela noite de outono em que os seus pais partiram para a eterna viagem do sono, deixando-o à mercê do implacável destino carmesim.

Algures onde o gelo do oceano congela a luz do céu, a alma do jovem Jeremy caminhava pelas bermas silenciosas da morte, segurando pela mão a princesa da tortura. Um homem cujo coração a eternidade não desgastou, soltava risos de prazer e de pura malícia, submetendo o rapaz que acolhera como seu igual, perfeito, venerado e orgulhoso à sua maquiavélica vontade.

— As garras da besta do mal inflamam o meu desfeito espírito com a potência gananciosa do sangue nauseabundo da morte, os meus olhos azuis e gelados são arrancados da luz do mundo pela dormência ausente da dor, o meu corpo rasga-me o coração com as furiosas adagas da vingança, a minha inútil e silenciosa voz transpassa o limbo triste da vida perdendo-se nos confins inodoros do tão ansiado sossego das trevas. O meu corpo sucumbe perante a graciosa intolerância do carmesim do imperialismo da palavra e dos receados anos longe da luminescência das águas e do cristalino sabor da esperança, refugiando a minha vendida alma no beirado sujo dos tempos. O chão coberto de dor e humidade levita com as duras e cruéis chicoteadas da história dos dignos povos da ordem e da soberania, enquanto o perdão foge pelas brechas ensanguentadas do meu destruído e desvalorizado espírito, sorrindo triunfante, escondido nas entranhas sonhadoras do inalcançável, espalhando-se pelos areados campos do mundo. Os meus pensamentos morrem, sugados pelo tecido macio da bandeira do pecado e da tortura, o imperativo e delicado sabor do nacionalismo evoca os demónios esquecidos de um perdido menino, as mãos tremem-me levadas pelos ventos sujos e controladores dos valores de outrora, nada mais me resta a não ser o beijo fresco e desejado da morte. - Reflectia Jeremy de forma ausente, aceitando a morte de bom grado, submetendo-se à tortura da alma e do corpo, subjugando a sua própria vontade de viver, segurando o seu último e derradeiro suspiro da alma com a força de mil canhões para mover os seus dilacerados lábios num movimento indefinido e inexpressivo.

— Não te atrevas a prenunciar tais honrosas palavras, pois a tua cobardia e traição anulam qualquer luz ou conforto que elas te possam trazer, espero que a tua indignidade seja o exemplo perfeito para aqueles que ousem desafiar o glorioso destino que eu criei. - Vociferou um homem em tom arrogante e frio, os seus olhos eram inundados pelas injustas e dolorosas manchas da maldade, enquanto que as suas incontestáveis mãos eram bafejadas e domadas pelo negro bastão da tortura. - Tu sabias desde do início que eu não toleraria fracassos, e mesmo assim tu ousaste desafiar as minhas ordens, ousaste desafiar a minha palavra, ousaste desafiar o destino! Espero que a falta de talento e a grande capacidade de desobediência deste inútil vos sirva de prova do meu grandioso e soberano poder, não se atrevam a cometer tais erros. - Proferiu em tom ameaçador, fitando com frieza um pequeno grupo que observava o colorido desfile do terror.

Uma brisa lenta e gelada atravessou os corações dos presentes, o chão de lajes estremeceu perante a enorme poça de sangue que corria desenfreada rumo ao futuro, os lábios dos soberanos senhores do mal moveram-se silenciosamente numa expressão abafada por um suspiro ardente e caprichoso que teimava em não cumprir a vontade de Jeremy, um suspiro que resistia ao sedutor chamado da morte.

— Vejam bem, o nosso amigo traidor ainda tem coragem para suspirar, e eu que pensava que ele cederia à pressão da morte, visto que a sua tremenda cobardia o impede de resistir à minha tortura. - Comentou o sujeito em tom cínico, observando o destruído rapaz arquejando no pavimento escarlate. - Tu foste o escolhido, aquele cuja perfeição ficou escrita e retratada no enorme e glorioso livro da história, a história que a humanidade teima em esquecer, a história temida e trancafiada nos corações daqueles que ainda hoje estremecem ao lerem as impiedosas insígnias dos soberanos guerreiros da mudança e da prosperidade vital.

— Eu posso redimir-me com os meus erros, desta vez não falharei, eu posso ser o servo leal que o senhor pretendia que eu fosse, só preciso de...

— Para quem estava disposto a sucumbir à vontade da morte, para quem quase se afundou na mais pura e insuportável cobardia e desonra, estás muito positivo. - Atirou o vilão em tom de desafio, porém a sua expressão deixou transparecer um enorme sentimento de surpresa. - Diz-me meu rapaz, porque pensas que eu te darei uma segunda oportunidade, sabendo tu, melhor do que ninguém, os princípios pelos quais redijo a minha existência?

— Ela confia em mim, o senhor sabe disso. - Murmurou o louro em tom suplicante, esforçando-se por erguer a cabeça com o intuito de olhar o seu amo nos olhos, porém a traiçoeira dor pregou-lhe uma enorme rasteira, teria que o vislumbrar das sombras, aliás como sempre fizera. - Eu posso terminar esta missão, tenho sido uma peça fundamental neste jogo de xadrez.

— Uma coisa eu não posso negar, tu realmente tens sido um bom soldado, um excelente estratega, porém também me tens dado muitos problemas e imperdoáveis desilusões. - Comentou o homem em voz baixa, caminhando de um lado para o outro, embatendo com as suas botas na pequena réstia de vida que o louro teimosamente segurava entre os dedos. - Eu sou um homem sábio e ponderado, orgulhoso dos meus dotes e capacidades, com uma visão direccionada para a expansão militar e vital, temido pelos meus amigos e receado pelos meus inimigos, resiste a esses ferimentos sem qualquer auxílio e poderás retornar à tua missão, tens duas escolhas, a concretização plena e louvável da tua missão ou a lenta e dolorosa morte que jamais chegará.

— Sim senhor, as suas ordens serão cumpridas. - Garantiu o jovem em tom ofegante, esforçando-se para levantar o seu braço direito numa tentativa desesperada de demonstrar o seu respeito e apreço pelo seu líder, todavia as forças dissiparam-se numa torrente de sangue quente e vivo que desenhou nas paredes despidas de calor um destino mais velho do que a sua própria existência, o fruto carmesim ressurgiria à tona do mundo, a história é novamente reescrita.

— Espero que me estejas a ouvir, o teu sol da liberdade brevemente tornar-se-á negro como breu. - Pensou o cruel vilão, projectando na sua impiedosa mente as imagens de outrora.

Nos altos e claros céus uma ave de rapina fazia o seu voo triunfante e analisador, precipitando-se furiosamente sobre um pequeno e esquivo coelho. No vasto e misterioso oceano um enorme e caprichoso polvo estendia os seus malignos e viciantes braços pelos alicerces da humanidade. Nas muitas e impiedosas savanas de África o majestoso leão evocava o seu imperial rugido silenciando o fogo da vida.

O que se esconde nas entranhas negras do passado de Jeremy? Em que consiste a sua missão? Conseguirá ele enganar a morte? Estará Diana a salvo das garras do mal?


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