Ondas de uma vida roubada escrita por Maresia


Capítulo 71
Espada de dois gumes




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Arrasto-me entre os dias chuvosos e avermelhados, e a triunfante e triste luz da escuridão, procurando o sentido que há muito deixei de sentir, um sentido tão ténue e frágil que se esgueira habilmente pelas duras brechas da esperança que tarda em chegar. Nada mais resta do que uma leve e sonhadora miragem de um passado abandonado pelo sentido de viver e de lutar, um passado miserável e diabólico que seduz a atractiva nostalgia das sombras, o meu passado duro e cru como a leve passagem da morte que arrepia e condena os sonhos ao eterno pesadelo da vida. Os pequenos grãos de areia ferem as minhas ausentes e distantes lembranças, lembranças apagadas pelo caminhar insolente do vento celeste, recordações que alteram e manipulam as gotas de suor que cobrem a atmosfera vazia da minha alma. Sou um fantasma morto pela crueldade e pela ganância dos pensamentos que assolam o mundo, arrastando nas suas vitoriosas trevas o apocalipse dos homens e da liberdade. O firmamento chora gotas de sal e saudade, derramando sobre a terra a eterna e indestrutível pétala da perda, semeando na humanidade o vazio do tempo e a intolerância das memórias, deixando-nos à deriva numa perfeita e contagiante escuridão palpitante, tornando-nos prisioneiros do nosso próprio interior. Percorro a familiaridade desconhecida do sofrimento e do desespero, enterro-me cada vez mais nas areias movediças que atravessam a luz da solidão e da verdade mal definida, o silêncio das ilusões ensurdece-me os ouvidos, anulando o ruído inexistente da felicidade, assim sou eu, uma estrela triste, solitária e sonhadora, buscando o verdadeiro sentido de sentir. - Reflectia o caminhante das sombras, respirando a frescura ardente da melancolia, saboreando as pequenas bagas de sal que lhe feriam a vontade de sentir. - O mar treme perante os assustadores morcegos das estrelas, porém ela, sem medo, enfrenta a revolta fantasmagórica do vasto universo azul, enfrenta-o sem temores, receios e inseguranças, atravessa-se no seu caminho pelo areal, submetendo-o à sua poderosa vontade de crescer, anula e dilacera os caprichos e os devaneios da noite, alcança e ilumina o desconhecido, derrota e silencia os traumas de uma infância dolorosa e cor-de-laranja, tornando-se dona e senhora do enigma azul. - Analisa enquanto os seus pés eram beijados pela tímida ondulação do oceano.

Diana perscrutava a fraca e estranha luminosidade dourada que deambulava pelas margens sonhadoras do fundo do mar, procurava incessantemente a fonte daquela voz grossa e ameaçadora, no entanto os seus olhos estavam cegos como se tivessem sido cobertos por um véu de tule negro.

— Quem está aí? - Perguntou a adolescente em voz receosa, camuflando-se com a entrada sombria de uma gruta.

— Como te atreves tu, ser da superfície a dirigir-te a Namor, príncipe dos mares, dessa forma desrespeitosa e insolente? - Rosnou a voz agressiva do Atlante, agitando ligeiramente as águas.

— O meu nome é Diana. - Respondeu a Vingadora em tom trémulo, sentindo a corrente atirá-la de um lado para o outro.

— O teu nome de nada te vale, faz uma vénia a Namor, o incontestável príncipe de Atlântida! - Ordenou Namor em voz imperativa, abandonando as sombras azuis do seu magnífico reino.

A Sereia moveu-se com a leveza das brumas, mostrando-se ao rei dos mares, dobrou-se naquele sinal de respeito forçado e devoção amedrontada, não o conhecia, nunca antes escutara o seu nome, não sabia se era possuidor de algum poder extraordinário, somente restava avaliar a situação e só então os minutos de agir começavam a correr pela sua mente.

— Como chegaste até aqui filha da Terra? - Perguntou o Atlante admirado, aproximando-se cautelosamente da jovem.

— A nadar. - Respondeu a jovem em voz insegura, não lhe apetecia desafiar aquele ser assustador, mas aquela resposta por mais bizarra que parecesse era verdadeira.

— Achas que estás em condições de dizer gracinhas? - Rosnou o Atlante furioso, avançando perigosamente na direcção de Diana, erguendo um fatal punho.

— Espere, eu posso explicar! - Gritou a adolescente apavorada, esquivando-se com mestria àquele ataque.

— Como é que um ser da superfície consegue respirar a milhares de quilómetros da sua zona de conforto? - Perguntou Namor incrédulo com o estranho poder de Diana.

— Se me escutar perceberá tudo com clareza. - Retorquiu a Sereia de forma tímida e sumida, esforçando-se para se manter calma. - Eu sou uma Vingadora, certamente conhece os Vingadores?

— Sim sei, continua. - Ordenou Namor sem dar grande importância às explicações tecidas pela adolescente.

— Eu até aos meus dezasseis anos nunca suspeitei que era possuidora de um poder extraordinário, porém num concurso realizado na minha escola ele veio ao de cima, fui completamente apanhada de surpresa. - Continuou a morena em voz serena, ignorando os traços de mau-humor que arrogantemente desfilavam pelo rosto de Namor.

— Essa história é muito linda e comovente, todavia ainda não compreendi como conseguiste chegar até aqui. - Atirou o Atlante sem paciência, olhando Diana com cara de poucos amigos.

— Nesse dia eu percebi que a minha voz possuía grandes capacidades de paralisar pessoas, porém com a ajuda do Capitão América e do Tony Stark aprendi a controlá-la, tornando-a desta forma uma arma ao serviço do bem e da justiça. - Continuou a jovem em tom distante, recordando com saudade os primeiros dias na companhia dos heróis mais poderosos da terra.

— Mas essa tal voz paralisante não te garante poder para sobreviver a quilómetros da superfície, o que escondes mais? - Inquiriu o príncipe desconfiado, o que mais ocultaria aquela rapariga incrível?

— Durante os meus treinos apercebi-me que possuía outra capacidade impressionante, apesar dessa estar activa desde que eu era pequena, foi desta forma que eu cheguei aqui. - Concluiu a Sereia esperançada, talvez as suas justificações satisfizessem o mau-humor do Atlante.

— Apesar de achar os teus poderes simplesmente impressionantes, as regras de Atlântida são intransponíveis e inalteráveis, não posso permitir que saias daqui, lamento. - Proferiu Namor em tom rude, o seu reino era o tesouro mais valioso que possuía, não podia deixar que uma miúda inconsequente arruinasse o mistério e a beleza de Atlântida. - Com as tuas fantásticas capacidades não te será difícil permanecer aqui, serás muito bem-vinda.

— Eu não posso ficar no fundo do mar, na terra existem pessoas que precisam de mim, existem pessoas que estão à minha espera. - Disse Diana aterrorizada, por mais que amasse aquelas águas jamais pensaria em torná-las na sua casa. - O Capitão América virá à minha procura!

— O Capitão América conhece as leis, sabe que eu não sou uma pessoa particularmente permissiva, se ele permitiu que tu atingisses o reino de Atlântida é porque muita coisa mudou desde aquela altura. - Retaliou o Atlante em voz desiludida, mantendo a sua postura dura e intolerante.

— O senhor conhece o Capitão América? - Questionou Diana surpreendida, talvez o peso dos feitos de Steve durante a segunda Grande Guerra lhe salvassem a vida.

— Julguei conhecer, mas isso agora não interessa, os anos passam e os princípios mudam. - Respondeu Namor sem se alongar mais do que o seu coração lhe permitia, as miragens daquele velho tempo ainda lhe assombravam as noites. - Tens duas escolhas, ou ficas, ou morres a tentar fugir, e se bem conheço o Steve ele deve-te ter ensinado a não desistir sem dar luta, não é verdade? - Perguntou em tom provocador. - Apesar de estar apavorada o olhar dela reflecte a coragem e a honra que ele ostentava naquela altura.

— Eu dou-lhe a minha palavra de honra de que não divulgarei em situação alguma este sítio. - Prometeu a jovem Vingadora sinceramente, brincando nervosamente com uma mancha molhada do seu cabelo.

— O tempo e as vicissitudes da vida ensinaram-me a não confiar na palavra de ninguém, por mais pura e verdadeira que seja, eu não acredito. - Justificou-se o príncipe furibundo, dando uma valente palmada na água. - Agora escolhe o teu caminho, se não escolho por ti.

— Eu não quero lutar, não vejo necessidade disso, deixe-me ir...

— Decide agora! - Gritou Namor em voz estrondosa, dando um valente murro numa das paredes de uma bela gruta.

— Eu não posso lutar contra um amigo do Capitão, recuso-me! - Exclamou a Vingadora de forma estridente, começando a nadar a grande velocidade, esforçando-se por escapar ao desconhecido poder do Atlante.

— Quando a palavra soberania está envolvida na discussão, a palavra amigo perde o seu significado, não escaparás miúda! - Exclamou o príncipe de Atlântida em voz determinada, partindo atrás de Diana, deixando nas suas costas uma furiosa massa azul que profetizaria o desfecho daquela luta. - Imperius Rex!

Steve Rogers, sentado no seu sofá passava os olhos por um livro gasto e comido pelos anos, as letras desfocavam-se há passagem das sombras agressivas do seu passado, os seus dedos folheavam com dificuldade as duras páginas da sua história, a trémula luz do candeeiro escurecia as suas distantes e devastadoras memórias, o vento nocturno transportava do fundo do mundo as suas maiores e mais terríveis perdas, algo não estava bem.

Conseguirá Diana escapar das garras das águas? Será a bondade da terra rival para a fúria do mar? Terá o caminhante das sombras a salvação de Diana nas suas mãos?


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Notas finais do capítulo

A expressão "Imperius Rex" utilizada por Namor simoliza o seu grito de guerra.



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