Ondas de uma vida roubada escrita por Maresia


Capítulo 59
A estrela da manhã




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Passadas apressadas confundiam-se com a melodia telintada das estrelas ecoando nas profundezas mal iluminadas de uma silenciosa igreja, o adro imaculado pela passagem angelical das freiras anunciava a chegada do homem que vagueia perdido entre as estradas claras do céu e os fossos escurecidos do inferno, arrastando na sua sombra as dúvidas, receios e crenças de alguém ultrajado pela vida e esquecido por deus a quem entregou grande parte das suas vivências, pensamentos e frustrações. O ruivo ajoelhou-se sobre o altar sagrado, ergueu as mãos para o alto e rezou, sentindo os tremores do pecado e as lágrimas dos crentes inundarem violentamente o manto avermelhado.

— Ouço murmúrios distintos, preces de perdão e arrependimento atingem os meus ouvidos com a brutalidade de uma buzina de comboio, concluo que o sono ainda não desfez o seu véu encantado sobre este local. Dou alguns passos em direcção ao seu repouso, segurando pela mão a jovem que injustamente foi traída pela sua fé, deixada ao abandono neste mundo cruel e improvável. O cheiro mais doce da mais bela flor da primavera invade as minhas narinas com a nostalgia e a esperança à muito deitadas ao lixo. - Pensava o advogado tristemente, à medida que se embrenhava no estranho silêncio da igreja.

— Onde vamos? - Questionou Lídia em voz baixa, vislumbrando os muitos quadros que revestiam as paredes da casa sagrada, pinturas de anjos que esqueceram momentaneamente os seus deveres como entidades celestiais.

— Vamos falar com alguém que supostamente ficou perdida no meu passado, no entanto renasce no meu presente para transformar o meu futuro. - Respondeu o Demolidor em tom enigmático, abrindo uma porta com o cuidado escuro dos seus olhos.

Um intenso e puro perfume a incensos invadiu sem permissão as almas dos dois visitantes, fazendo-os tossir ligeiramente. Lídia piscou por várias vezes os olhos, cegos pela escuridão daquela divisão, apenas quebrada pela fraca e trémula luminosidade proveniente de uma vela que ardia lentamente.

— Estanco diante da ombreira da porta, percorro a sala com os sentidos de quem nada vê, todavia tudo sente, absorvo com tremenda gratidão aquela serenidade que somente existe na bondade real e desinteressada dos humanos. Na minha frente, sentada do outro lado da divisão, encontra-se uma mulher cuja alma foi derrubada pelas fatalidades e angústias da vida, com leves gestos folheia uma bíblia murmurando suavemente os seus ensinamentos, um sussurro doce, meigo e afável. Antes de ter sequer tempo para dar um passo que seja ela fita-me com aquele olhar de quem tudo sabe, porém nada diz. O alto sino liberta o seu cantado choro, anunciando o tremendo peso dos anos sobre os meus ombros, e só então ela move os seus lábios sobre diversas cordas de violino. - Analisou o Demolidor pensativo, perscrutando a sala com os olhos da mente.

— O que leva um homem que traja as vestes do demónio a pisar a casa de Deus? - Perguntou a delicada freira em voz tranquila, pousando a mão esquerda sobre o livro sagrado.

— A voz dela ainda rivaliza com a gentil brisa da Primavera, cada palavra transborda à melódica frescura do oceano. - Cismou o advogado emocionado. - Busco o conforto e a caridade dos servos de Deus. - Respondeu em tom decidido, apontando para a jovem que estava a seu lado.

— O conforto de Deus apenas está ao alcance daqueles que almejam a luz. - Retorquiu a freira em tom de teste.

— Não preciso de justificar a minha fé perante Deus. - Declarou o ruivo convicto dos seus pensamentos. - Preciso que cuides dela. - Pediu educadamente.

— Senta-te minha querida. - Proferiu a devota no mesmo tom cordial, colocando uma cadeira a seu lado. - Fica tranquilo, esta jovem jamais estará sozinha, os braços de Deus estão sempre abertos para receber aqueles que lhe forem leais. - Assentiu, acariciando os cabelos encaracolados de Lídia. - Que os anjos te protegem e te livrem do fogo do inferno meu filho. - Rezou, derramando algumas lágrimas sobre o livro em que anotara as suas crenças.

— Obrigado mãe. – Murmurou o ruivo em voz triste, já em sua casa, sentado junto do seu fiel piano, observando as sombras cristalinas da sua vida retratadas naquelas teclas silenciosas, escutando os lamentos do vento que as suas misericordiosas paredes deixavam penetrar no seu coração, inalando o cheiro de sangue que percorria insolentemente o mundo, tacteando as palavras de ordem proferidas pela velha e trágica morte. - A cegueira permite que eu vislumbre e caminhe sobre a luz com a leveza soberba de uma pluma. - Pensava, enquanto se protegia com os seus lençóis, repousando a sua cabeça na almofada, finalmente a noite chegara.

Fazia uma hora que Diana deixara Peter em casa, conduzira até ao mar, o seu mais fiel baú de segredos. Deitada na areia, saboreando o cheiro a algodão das ondas, pensava em todas as peripécias que barraram a sua tristeza naquela estranha e desventurada noite, agora, depois da poeira assentar, o peso das suas recordações voltava a atingi-la com a brutalidade de uma trovoada, o passeio temporário pela desgraça e pela decadência fez o seu destroçado coração secar as lágrimas, mas agora era inevitável pensar em todo o nevoeiro que cobria os seus sentimentos.

— Sozinha, espreito pelas finas cortinas das estrelas, vejo com detalhe o pérfido cometa do sofrimento destruir os asteróides que imponentemente protegiam o meu coração. Espalho no areal frio a marcha do desespero anunciada pela melodia revoltada do mar. As raízes da infelicidade pulverizam o meu castelo de areia, derretendo as suas partículas de carinho e amor num infinito negro e inatingível. Os cortantes raios de frustração disparam das pontas trémulas dos meus dedos almejando a distante e solitária lua, fazendo com que ela se despenhe no profundo oceano. As perguntas banais de arrependimento e culpa sugam as ondas espumosas do mar, roubando a pura inocência das águas. - Pensava a morena melancolicamente, sufocando com os seus desabafos a vida soprada do vento marítimo. - Clint Barton a tua arrogância desmantelou o meu sorriso, a tua estupidez assassinou a minha esperança, o teu egoísmo cilindrou o nosso futuro, a tua falsidade afogou todas as boas recordações que passei a teu lado, a tua prepotência dilacerou a harmonia proveniente dos teus beijos, os teus ciúmes desmedidos escureceram a aurora cintilante daquela maravilhosa madrugada, a tua traição congelou o calor doce dos teus abraços, substituindo-os por um pesado e grotesco bloco de gelo, o teu desinteresse atiçou as minhas lágrimas contra a chama da nossa paixão, até somente restar cinzas amargas e afiadas que aniquilaram os meus sonhos e fantasias. - Cismava, enquanto o brilho ilusório da lua reflectia o seu rosto pálido e desesperado. - Os meus lamentos escavam um abismo no areal castanho e macio, o meu futuro escuro e vazio cresce em cada onda que rebenta dolorosamente no meu espírito, e então compreendo que não sei viver sem ti, no entanto não consigo viver a teu lado. - Concluiu tristemente, analisando cada pequeno pormenor do seu amaldiçoado relacionamento. - Apesar da tristeza afundar o meu coração na mais escura e fria neblina, apesar da infelicidade transpassar o meu sangue com lâminas de saudade, apesar do sofrimento apunhalar duramente os meus sonhos, apesar da solidão transformar a minha alma em farrapos de areia e sal eu jamais deixarei de te amar, contudo não permitirei que os meus sentimentos regressem à tona fresca e corajosa do meu espírito. - Resignou-se a muito custo, afundando-se sobre o areal beijado pelas lágrimas difusas da lua e pelos sorrisos transparentes do mar. - Irei esquecer esses traquinas e sonhadores olhos azuis que personificam o autêntico e misterioso azul do oceano, esquecerei esses lindos cabelos de ouro que me lembram cearas de trigo, esquecerei esses lábios com trago a menta, esquecerei as viagens que fiz na praia fresca do teu corpo, prometo. - Jurou, cravando no céu distante as insígnias do desespero e da melancolia. - A única coisa que nos une a partir de agora são os Vingadores, tu rompeste qualquer laço que poderia vir a existir entre nós. - Murmurou, derramando sobre o firmamento milhares de pérolas de prata.

Depois de alguns minutos, Diana envolvida nos seus lamentos deixou-se cair através do tranquilo véu do sono com a esperança de que uma estrela madrugadora lhe devolvesse a luz que somente os sonhos e as fantasias têm a bela capacidade de transmitir.

Na mansão dos heróis mais poderosos da terra, um vulto jazia imóvel no soalho perto do elevador, a seu lado brilhavam diversas garrafas de bebida que serviram para afogar e esquecer as suas mágoas, derrotas e lamentos.

— Clint! Clint! - Chamou a voz preocupada de Scott, observando o seu melhor amigo perdido entre gotas de álcool e roncos de tristeza e arrependimento. - Que bonito estado em que tu estás, não haja dúvida. - Murmurou, segurando o Arqueiro pelas axilas arrastando-o até ao sofá mais próximo.

— Diana eu não fiz nada, eu amo-te. - Balbuciou Clint em tom atabalhoado, agarrando com força na mão do Homem Formiga.

— Tem lá calma meu, eu não sou a... Espera lá ele disse Diana? Eu sabia, aquelas discussões nunca me enganaram. - Afirmou o domador de formigas de forma vitoriosa, puxando as pernas do Gavião para cima do sofá.

— Vá lá não me deixes eu faço tudo por ti princesa. - Pediu o mestre das setas em tom mimado, abraçando o pescoço do seu amigo.

— Vê lá se acordas se não vais ter graves problemas, nem quero ver se o Tony te apanha neste estado deprimente. - Censurou o Homem Formiga, não deixando de sentir pena do seu melhor amigo.

— Tu já não me amas, por isso é que queres acabar comigo, tu queres ficar com o Cap não é verdade? - Perguntou o louro em tom choroso, derramando inúmeras lágrimas sobre o ombro de Lang.

— Claro que não te amo meu estúpido. Talvez seja melhor tomares um banho de água gelada, e beberes um café bem forte. - Sugeriu Lang quase sem paciência para aturar os devaneios embriagados do Gavião.

Dez minutos depois, Clint e Scott estavam sentados à enorme mesa da cozinha segurando uma chávena de café fumegante entre os dedos.

— O que é que te deu para beberes até caíres redondo no chão? - Perguntou o Homem Formiga em tom de condenação.

— O que é que eu disse enquanto estava bêbedo? - Questionou Clint apreensivo, não conseguindo olhar o outro nos olhos.

— Tudo o que eu precisava de saber. - Respondeu Scott sem rodeios, colocando mais um pacote de açúcar no seu café.

— Estou tramado. - Lamentou-se o Arqueiro, derramando uma grande quantidade de café fervilhante sobre a mesa.

— Estavas tramado se fosse o Tony ou o Cap a apanhar-te, mas olha eu sou teu amigo jamais te tramaria. - Tranquilizou-o Scott em voz amável, compreendendo que o seu amigo estava realmente a sofrer.

— Certo, fico a dever-te uma meu. - Agradeceu o louro em voz baixa, olhando distraidamente o sol que fazia lentamente a sua aparição no horizonte pintado de vermelho.

— Olha, devias falar com ela, tentar resolver as coisas, não deves ter feito nada de tão grave que justifique que ela tenha acabado contigo, ou fizeste? - Declarou o domador de formigas de forma insegura, recordando todas as aventuras amorosas que preenchiam em larga escala a vida do Gavião.

— Talvez tenha feito, preciso de pensar melhor sobre isto tudo. - Desabafou o louro tristemente, erguendo-se da cadeira, precipitando-se lentamente até à porta.

— Coragem amigo, mas escuta o meu conselho, se gostas mesmo dela, não desistas vai à luta. - Incentivou Lang em voz cansada, a noite a perseguir vilões começava a dar frutos, estava na hora de visitar a sua cama. - Será que ele tem a destreza suficiente para competir com o Capitão América? - Pensou, enquanto pousava a cabeça na almofada.

Steve Rogers, como já era rotina, fazia a sua necessária corrida matinal pelo areal tranquilo da praia, fitando o azul intenso do oceano com profunda nostalgia como se o seu passado, presente e futuro se escondessem habilmente nas entranhas espumosas e doces daquelas ondas que carinhosamente bafejavam o seu espírito com as pétalas da coragem, honra e dignidade.

— Diana, o que faz ela aqui? - Perguntou Steve surpreendido, observando os lindos cabelos da morena ondularem ao sabor da brisa fresca. - Vejam bem o que eu encontrei, uma sereia que deu à costa. - Disse em tom de brincadeira, ajoelhando-se na areia junto da jovem.

— Steve? - Questionou a Vingadora de forma preguiçosa, tapando os olhos com a mão evitando a luminosidade dos primeiros raios do sol.

— Desde que nasci até agora. O que fazes aqui? - Insistiu o louro em tom suave, ajudando a adolescente a sentar-se.

— Vim dar um passeio e adormeci, apenas isso. - Respondeu a jovem tristemente, tentando abafar as recordações da noite anterior que ainda gritavam freneticamente no interior do seu coração.

— Os teus olhos estão muito vermelhos, estiveste a chorar. - Declarou o Capitão sem meias palavras. - O que se passou afinal?

— Nada. - Mentiu Diana infeliz, não queria preocupar o Primeiro Vingador com as inseguranças de uma miúda.

— Não acredito, vamos até ao meu apartamento para tomares um bom pequeno-almoço. - Sugeriu o super-soldado em voz doce, pegando Diana nos seus braços, colocando-a em cima dos seus ombros.

— Steve larga-me eu já não sou nenhuma criança! - Exclamou a Sereia de forma estridente, batendo na cabeça do ícone americano.

— Claro que não. - Concordou Steve sorridente, pousando-a de novo sobre o areal.

— Então vamos lá. - Assentiu a morena, segurando na mão corajosa da sua estrela da manhã.

O grande astro anuncia o nascer da claridade, o recomeço de uma nova etapa, o reconcilio entre o dia e a noite e quem sabe o início de uma leve e fresca relação.

O que é que o sol mitificou na sua bola escaldante para estes dois heróis?


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