Ondas de uma vida roubada escrita por Maresia


Capítulo 2
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A cidade de Nova York amanhecera poluída e ruidosa como já era habitual desde meados da industrialização mundial. A multidão colorida da frota automóvel amontoava-se nos jardins negros e fumegantes de alcatrão, buzinando numa orquestra desalinhada e ensurdecedora, lançando sinfonias de desaprovação, irritação e indignação em todas as direções existentes na inutilizável rosa-dos-ventos. Cardumes de pessoas saíam a grande e desordenada velocidade dos uniformes montes de cimento empilhados e decorados com pequenos vidrinhos sujos. Comboios, metropolitanos e aviões musicalmente imperfeitos e monocórdicos completavam o cenário citadino e sem vida pura. As luzes enevoadas das avenidas, rotundas e ruas camuflavam-se com o fumo incessante e cinzento do ambiente cancerisna. A luminosidade do dia punha fim aos negócios obscuros da noite trepidante e tentadora. Criaturas amantes do luar e das estrelas como traficantes, ladrões, prostitutas e gangsters voltavam à toca.

No pobre e viciado bairro de Brooklyn, num desgastado e esquecido orfanato, num pequeno quarto branco, apenas com duas camas, dormiam duas meninas. De súbito o som de um despertador estridente cortou o silêncio buzinado do sono profundamente inquieto.

– Bolas já é dia! – Resmungou uma das miúdas, esfregando os olhos ensonados. – Diana! Diana! – Chamou, olhando para a outra cama, onde um vulto se remexia, tentando resistir ao despertar iminente. – Levanta-te sua dorminhoca! – Exclamou a pequena menina, saltando para a cama da sua amiga.

– Poças! Ai! Sai de cima de mim! – Gritou Diana, tentando libertar-se da pressão da outra menina. – Vá lá Linda, eu já estou acordada, por favor sai. Ou então eu digo à Madame Lisa que ontem à noite antes de dormires não bebeste o leite todo. – Ameaçou a jovem sorrindo.

– Ok, Ok, Mas não contes, se não fico de castigo. E depois quem cobre as tuas saídas noturnas, com aquele tal de Peter? – Perguntou Linda maliciosamente.

– Já te expliquei que o Peter é só meu amigo. – Afirmou Diana, erguendo-se teimosamente da sua almofada. – Agora vai tomar banho, enquanto eu te escolho a roupa, vá rapidinho! – Ordenou, batendo as palmas.

– Pensa que já lá estou. – Respondeu Linda, saindo a correr do quarto rumo à casa de banho única naquele orfanato.

Diana levantou-se, dirigindo-se ao pequeno armário onde as roupas estavam impecavelmente arrumadas. Vasculhou durante alguns segundos e depois colocou sobre a cama de Linda um vestidinho branco com flores cor-de-rosa. De seguida remexeu numa caixinha de madeira, que ela própria pintara, de lá retirou uma fita de cabelo que combinara na perfeição com o vestido que escolhera.

– Agora para mim. – Murmurou caminhando de novo até ao armário.

Finalmente, Diana e Linda já tinham tomado banho e estavam prontas para o pequeno-almoço, antes de partirem para mais um dia de aulas.

– Vai depressa, a carrinha deve estar a chegar. – Preveniu Diana, observando a sua amiga imóvel sentada na cama. – Vai Linda, eu já vou. – Insistiu.

– Eu espero por ti, qual é a diferença de ir agora ou ir depois? – Questionou Linda despreocupada. – Ah! Ok, já compreendi, queres falar ao telemóvel com o Peter, não é necessário fazeres cerimónias, eu saio já! – Brincou ela, desenhando um coração no ar.

– Sua miúda! – Reclamou Diana, dando-lhe com uma revista de BD no rabo.

Diana parou em frente do armário da roupa, o espelho refletia uma jovem de cerca de dezasseis anos de idade, de estatura média, magra, porém não extremamente magra. Os seus olhos eram azuis e arrogantes, o sofrimento, a saudade e a perda bailavam naquelas profundezas claras e sonhadoras. O seu rosto era calmo, talvez um pouco calculista e antipático, porém o seu coração estava repleto de compaixão, justiça e insegurança. O seu cabelo era liso e castanho cor de chocolate chegando-lhe ao meio das costas, normalmente usava-o solto, todavia naquela manhã entrançara-o com uma bonita fita de seda rosa. Naquele dia trajava um elegante top sem alças cor-de-rosa que lhe definia a silhueta elegante, em perfeita sintonia com uns shorts de ganga clara e justa, culminando com umas sandálias igualmente de ganga.

– Chega de preguiçar. – Decidiu, segurando na sua mochila de ganga preta apinhada de livros e cadernos escolares.

Quando entrou na cozinha, quase todas as crianças que ali habitavam, já se tinham ido embora, transportadas pela carrinha social que as levava até às escolas ou infantários, apenas uma rapariga com cara de poucos amigos permanecia em frente da velha e pobre mesa, lutando para engolir o leite e as torradas barradas com marmelada caseira

– Bom dia Marlene! – Saudou Diana educadamente, sentando-se no lado oposto e começando a comer.

– Só se for para ti. – Respondeu Marlene, com ar enjoado. – Já viste bem esta porcaria de pequeno-almoço, se se pode chamar a esta porcaria comida. – Disse, lançando um olhar de nojo ao pratinho na sua frente.

– Tu és muito estúpida! – Respondeu Diana irritada. – Não tens casa nem família, mas mesmo assim reclamas e rebaixas quem te deu a mão e te tirou das ruas. Sem dúvida não mereces a cama onde dormes nem a comida que te servem, não mereces nada. – Gritou a jovem de cabelos achocolatados colérica com aquela atitude ingrata e snobe.

– Deves julgar-te melhor do que eu. – Provocou Marlene, sorrindo maldosamente. – Deves pensar que és perfeita. Ai eu sou a melhor aluna! Ai eu sou a melhor bailarina! Olhe as minhas notas Madame Lisa! Ai eu sou uma coitadinha, contudo um dia vou encontrar o meu pai! – Zombou horrivelmente, imitando falsamente a atraente jovem. – Mas olha eu tenho uma notícia para ti, minha linda, o teu pai não quer saber de ti, ele odeia-te! – Provocou.

– Sua desprezível imunda e mentirosa. – Vociferou Diana, levantando-se da sua cadeira, impulsionada pela raiva que lhe brotava das veias.

– Então vais colocar finalmente as unhas de fora! – Perguntou aproximando-se de Diana que já cerrara os punhos. – Vem, vamos ver quem bate com mais força?

– Mas o que se passa aqui meninas? – Uma voz doce, no entanto autoritária irrompeu pela cozinha.

– Não vou sujar as minhas mãos com bactérias como tu. – Concluiu a jovem de olhos azuis, voltando a sentar-se e fixando a TV, onde iniciava o noticiário.

– Eu digo o que se passa Madame Lisa. Estou farta que a Diana tenha mais regalias do que todos nós, estou farta e exijo que esta situação mude. Os insignificantes órfãos vão de carrinha ou a pé para a escola, qual é o motivo pelo qual a princesa vai de bicicleta, tem as melhores roupas, os melhores materiais escolares, livros, CDS e aulas de dança, quero saber? – Inquiriu Marlene, de forma inquisidora com a inveja e o ciúme a palpitar no lugar do coração.

– Porque alguém se responsabilizou pela qualidade de vida e pelas despesas acrescidas da Diana, não tenho que te dar mais explicações. Agora vai para a escola, não quero receber mais queixas da tua Diretora de Turma, basta de cenas repletas de falta de educação. – Ralhou Elizabete sem paciência para aqueles dramas de adolescente maldosa e impertinente.

Finalmente Marlene saiu deixando Elizabete e Diana entregues ao noticiário sangrento e capitalista.

– Hoje dia dezasseis de Abril de dois mil e dezasseis uma ameaça verde volta a pisar o território Noviorquino. – Anunciava o jornalista, ilustrando verbalmente imagens de violência extrema e perversa, entre a polícia e uma enorme criatura chamada Hulk. – Este mostro destruiu prédios, desmantelou autocarros e feriu mais de cem pessoas é o pior ataque desde que me lembro. – Continuava o jornalista, poluindo as mentes da sociedade ocidental.

– Este monstro devia ser morto. – Desabafou a Madame Lisa, observando Diana atentamente.

– Eu discordo, talvez o problema não seja dele, mas sim da sociedade injusta e discriminadora, repleta de preconceito e intolerância ao que foge aos padrões normais aceites e implementados por mentes decadentes e impuras, mascaradas por fatos e grandes carros, esses capitalistas egocêntricos e egoístas talvez sejam piores do que o próprio Hulk, porque alimentam comportamentos xenofóbicos e racistas, esta é a sociedade nua e crua em que vivemos, esta é a minha opinião condenada pelas massas mas aceite e explorada por mim, nada mais me interessa. – Afirmou a jovem, olhando para o relógio que brilhava no seu fino pulso. – Oh! Já estou atrasada, tenho que ir, até logo Madame Lisa. – Despediu-se já no pequeno hall de entrada vazio e descascado.

– Até logo minha querida! – Respondeu Elisabete em voz baixa, imersa em pensamentos confusos e inconcretos sobre uma realidade imperfeita e traiçoeira. – Talvez seja, as parecenças são incríveis e isso explicaria tanta coisa. – Disse para si mesma de forma enigmática, começando a limpar a cozinha.

Diana pedalou durante trinta minutos até à sua escola. Quando chegou às imediações escolares dirigiu-se até um pequeno quiosque apinhado de estudantes barulhentos e esfomeados por milhares de calorias gordas. Nas prateleiras encontravam-se expostas revistas, jornais, BDs, calendários desportivos e algumas guloseimas. Um rapaz bem-parecido, vestindo umas calças de ganga escura e uma t-shirt vermelha, encontrava-se sozinho, esperando alguém.

– Bom dia Diana, outra vez atrasada! – Cumprimentou alegremente, vendo a sua linda amiga aproximar-se.

– Bom dia, desculpa Peter, houve confusão com a Marlene outra vez. – Explicou Diana, retirando um jornal do monte mal organizado e passando o dinheiro ao vendedor atarefado.

Os dois jovens dirigiram-se ao interior da vasta escola, Peter desembrulhava um cromo de coleção, Diana por seu turno observava as primeiras páginas do jornal que comprara.

– Poças, já tenho este. Tu já tens? – Perguntou, observando a figura desenhada no pedaço de cartão.

– Quem é? – Questionou a linda morena, não largando as enormes letras do título da primeira página noticiada.

– É o Gavião Arqueiro. – Respondeu o rapaz ligeiramente aborrecido.

– Eu fico com ele, ainda não tenho. – Disse a jovem. – Parece que o nosso amigo Homem-Aranha teve algum trabalho esta noite. Escuta só este título odioso: “ Praga aracnídea volta a ameaçar a tranquila Nova York”, que estupidez! Será que este anormal não compreende que ele é um herói e não uma ameaça mortal. – Afirmou indignada.

– A seu tempo todas as pessoas compreenderão isso. – Respondeu Peter, sem dar grande importância ao assunto. – E do teu pai, encontraste algumas evidências?

– Nada de nada. – Respondeu Diana desanimada.

– Não desistas, tenho a certeza que algum dia sem tu estares à espera ele aparece. – Reconfortou-a, dando-lhe uma pequena palmadinha nas costas.

– Quem sabe. – Afirmou ela, com ar pensativo.

Quando entraram na ampla e decorada sala de convívio, um enorme grupo de rapazes e raparigas, fazendo um grande alarido, amontoavam-se junto do placar de informações.

– Diana! Ainda bem que chegaste. Tu ganhaste! Não é fantástico? – Exclamou uma jovem gordinha de cabelos ruivos bastante alegre com as informações que lia.

– Sim, é verdade, tu conseguiste miúda! – Confirmou um rapaz com a cara coberta por acne.

– Esperem lá, do que é que estão todos a falar? – Perguntou Diana confusa, afastando os estudantes entusiasmados para conseguir ter visibilidade para o placar.

– Tu serás a representante dos estudantes desta escola! – Disse a mesma rapariga ruiva, abraçando com força a jovem de lindos olhos azuis.

– Ah! Ok, já compreendi, por favor larga-me Tatiana, estou a ficar sem ar. – Pediu delicadamente, libertando-se com algum esforço da amiga. – Obrigada por terem votado em mim, tentarei satisfazer as expectativas de todos, darei o meu melhor, tenho a certeza que unidos transformaremos esta escola num centro de referência e festejos. – Afirmou ela, fazendo lembrar um discurso político. Todavia, a campainha tocou anunciando o início das primeiras aulas, para desagrado da onda humana de apoiantes e entusiastas. – Vamos Peter, aula de música certo? – Perguntou a jovem, fugindo à confusão estudantil.

– Isso mesmo. Só uma pergunta, quando é que te dás ao trabalho de decorar a porcaria do horário? – Perguntou Peter brincalhão.

– Talvez para o ano eu pense nisso, ficas satisfeito assim? – Os dois amigos riram de contentamento, enquanto percorriam corredores e corredores até chegarem à sala quatro.

Um pequeno grupo de rapazes já se aninhava junto da porta, falando em murmúrio.

– Olha bem para aquelas pernas. – Dizia um deles, apontando discretamente para Diana que corou violentamente rivalizando com a t-shirt do seu amigo. – Não me importava nada de dar uma voltinha com ela!

– O meu punho também não se importava de dar uma voltinha até à tua cara, o que achas do convite? – Ofereceu Diana de forma arrogante com os seus lindos olhos a brilhar de raiva.

Contudo um telintar de chaves e a aparição do professor de música pôs fim à discussão.

– Bom dia turma, vamos entrando tenho grandes novidades para vos fornecer. – Comunicou o professor Charles bem-disposto.

Os alunos entraram numa fila atribulada, ansiosos por ficar a par das tais notícias. O senhor Charles pousou a sua pasta na secretária e começou a falar gesticulando energeticamente.

– A nossa escola acolherá um evento muito importante que catapultará a nossa instituição para o topo. – Iniciou em voz divertida.

A campainha anunciou de forma estridente o final da primeira aula. Os alunos da sala quatro saíram animadíssimos comentando entre si o evento explicado pelo professor.

– Vai ser fantástico! – Dizia uma rapariga loura no meio da confusão.

– Eu vou participar sem dúvida! – Informou John o miúdo mais convencido que Diana já conhecera em toda a sua vida, talvez apenas Marlene o superasse em larga escala. – Impulsionarei a nossa escola para as luzes da ribalta. – Garantiu.

– Sim claro que sim, para essas e para as luzes dos candeeiros nocturnos quando estão fundidos! – Murmurou Diana para Peter. Os dois adolescentes riram discretamente e caminharam até ao bar.

– Tu vais participar, certo? – Perguntou Peter esperançado, já sentados numa mesa solitária no canto mais distante da multidão irrequieta e barulhenta.

– Talvez sim, talvez não. – Respondeu a jovem, remexendo na sua mochila de ganga e retirando um caderno de capa roxa onde se podia ler: História Mundial. – Será um bom evento para tu fotografares. – Disse, folheando apressada o manual.

– Sim é o que irei fazer, contudo ficaria mais satisfeito se pudesse fotografar a minha melhor e linda amiga. – Argumentou o rapaz, piscando o olho a Diana que sorriu em resposta. – Aqui no site da escola diz que um ricaço qualquer vai patrocinar o evento e instalar e divulgar os seus novos e sofisticados alarmes de segurança. Provavelmente virá a comunicação social em peso. Acho que devias participar não só porque cantas maravilhosamente, mas porque será uma boa oportunidade de o teu pai te ver. – Peter conseguira, tocara no ponto certo.

– Ok, ok eu participo. – Decidiu Diana sem rodeios ou fitas.

– Boa, vou tratar de imediato da tua inscrição. – Afirmou Peter, erguendo-se de um salto.

No final do dia Diana regressou ao orfanato para auxiliar a Madame Lisa quando as outras crianças voltassem a casa. A sua mente vagueava pelas luzes difusas do tão desejado encontro.

Quais as surpresas escondidas pelas enganadoras luzes da ribalta? O que mudará na vida de Diana depois deste evento? Quem será o tão badalado patrocinador?


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Notas finais do capítulo

Desde muito nova que Diana compra todos os dias o jornal tentando encontrar evidências do seu pai.

A jovem ajuda a Madame Lisa, visto que esta possui uma filha que deveria ajuda-la, porém opta por ter uma vida boémia e despreocupada.



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