Ondas de uma vida roubada escrita por Maresia


Capítulo 103
O enigma do Mago




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A madrugada acompanha-me sonolenta e triste, personificando os meus passos e o meu destruído espírito, ferindo com as suas lâminas de vento frio os meus olhos há muito sangrentos e melancólicos, sedentos de alegria e paz. - Cismava Clint Barton perdido nas areias sinuosas e solitárias do tempo quase esquecido e vazio das memórias insuportáveis de um passado quase feliz e perfeito como aqueles dos maravilhosos contos de fadas. - Três meses decorridos e as feridas da minha alma suja e escarlate ainda sangram como fontes geladas e mortas. Três meses passados e o meu coração ainda se arrasta pelas margens sombrias e perversas da sobrevivência injusta e inglória, mas como se pode realmente sobreviver sem amor ou afecto? Três meses abandonados numa floresta escura e arrepiante, postos à mercê da fúria ardente e envenenada das minhas sórdidas e sofridas palavras. Três meses afogados nas águas turbulentas e vingativas dos meus pensamentos. - Reflectia pensativo, vislumbrando o céu platinado, frio e penetrante, abandonado pela luz angelical das estrelas e pela melodia melosa do oceano, traído pela maldade e cobiça do passado, rasteirado pelas aguçadas fantasias da guerra. - A areia perdeu o perfume azul dos teus passos, o mar perdeu a frescura cristalina dos teus beijos, o mundo perdeu a doçura do teu lindo sorriso, o sol perdeu a essência do teu calor, amável, puro e solidário e eu perdi e esqueci a razão de viver, de lutar e a incontrolável vontade de me agarrar ao amor que jamais voltarei a reencontrar. - Pensava angustiado, fitando com pesar e nostalgia que dançava no tapete prateado do mar, onde outrora a sua Sereia nadara feliz e livre por entre histórias de encantar onde o amor subjuga o mal para todo o sempre. - Guardar-te-ei para a eternidade como o meu maior e mais precioso tesouro, guardar-te-ei em cada onda espumosa que beijar tristemente o areal caótico do meu ser.

Algures, entre o paradoxo assimétrico da desprotegida realidade e do temido mundo astral, dormitava o surreal Doutor Estranho, confuso e perdido no meio de teias cruzadas e indefinidas de sonhos simbólicos e provavelmente inexplicáveis, tal como muitos outros que o assombravam nas últimas semanas. O passado agitava como nunca antes o mundo do sobrenatural, trazendo à tona de cada noite macabra e medonha as peripécias tenebrosas do antigamente, para transbordarem logo de seguida numa cidade repleta de luz e riso, banhada e protegida por uma bela e deliciosa muralha oceânica, atrás da qual os fantasmas e os monstros armados se refugiavam habilmente.

O mago supremo despertou angustiado, segurando na palma da sua mão as teias de mil vidas, passadas, presentes e futuras, vidas postas à prova pela manipulação injusta e cruel dos astros, esfregou os olhos delicadamente, estes repletos de compreensão e ansiedade, semanas de sonhos distantes e abstractos, agora desenhavam-se claros e negros na vidraça astral do seu coração. Então, leve como uma pétala de tulipa soprada pela brisa da alvorada flutuou pelos céus tingidos pela cor cinzenta e fria da tristeza e da saudade, uma cor gelada e pérfida que encerrara num túmulo celeste e inalcançável a luz desejada e quente do dia.

— Ali está ela, fria, perversa e manipulada, dominada pela maldade e pela injustiça, contudo escuto nitidamente a voz do seu nobre e digno coração suplicando aos astros surdos e amaldiçoados para que a resgatem deste futuro negro e marcado pela morte e pelos sonhos ilusórios da condição mortal e terrena. - Cismava sabiamente o feiticeiro supremo, pairando sobre uma massa de água negra e sem vida, para além da qual apenas se estendia a mão cruel da guerra e do passado, uma mão tenebrosa que teimava em aprisionar a luz do mundo e a voz do mar. - A traição da história é caprichosa, todavia a esperança ainda caminha entre nós. - Reflectiu, sentindo a pureza da sua magia ser sugada pelas artimanhas ambiciosas das trevas. - O tempo urge, cabe aos guerreiros caídos reerguerem-se e desembainharem a espada da amizade, assim o passado cessará a sua tremenda guerrilha, está na hora de descansar no local onde realmente pertence, no berço trancado da história.

Os movimentos sonolentos e rotineiros começavam a fluir tranquilamente nas diversas divisões da mansão dos heróis mais poderosos da terra, as janelas tristes e vazias deixavam adentrar a prata fria e sofrida do céu, os pratos e copos nas cozinhas tocavam desesperadamente a melodia da saudade e da perda enquanto se enchiam de alimentos que infelizmente não preenchiam a falta tremenda que Diana pintara nos corações dos Vingadores, os jornais passavam lentamente de mão em mão desfilando as notícias que já ninguém queria ler e o frenesim aguçado dos carros somente lhes recordava a extraordinária velocidade que a vida lhes pode fugir por entre cada caótico suspiro de desilusão.

— Nada de nada, continua tudo igual a todos os dias. - Sussurrou Tony angustiado, passando os olhos pelas primeiras páginas de diversos jornais maltrapilhos e inúteis.

— Este silêncio não pode ser normal, parece que os criminosos se esqueceram de trabalhar. - Comentou Scott em voz sumida, olhando cabisbaixo para o seu prato de pequeno-almoço.

— Se ao menos soubéssemos por onde procurar, se ao menos existisse algum sinal que pudéssemos seguir, mas nada de nada, parece que apagaram por completo o seu rasto. - Afirmou Thor tristemente, lançando uma olhadela ansiosa ao quadro pendurado na parede da sala de refeições de onde Diana lhe sorriu radiante, linda e doce, uma miragem perfeita e sonhadora do passado.

— Já chega desta conversa insuportável, bolas esta situação já é demasiado insuportável de aguentar, não preciso nem quero que estejam a toda a hora a falar na Diana. - Zangou-se Clint irritado, entrando com passada rápida na sala, os seus olhos incrivelmente azuis estavam inchados e coloridos de escarlate vivo e ardente. - Estou farto, é isso! - Desabafou em tom fraco e sumido, deitando com um aceno rápido para longe as palavras que teimosamente caminhavam para si. - Temos uma visita, entre Doutor Estranho.

— Seja bem-vindo Stephen. - Saudou o Capitão América confuso com aquela estranha presença.

— Gostaria de saber o que o fez sair do seu sagrado santuário meu caro Doutor? - Questionou Stark em tom irónico, fazendo sinal para que o mago se sentasse junto deles.

— A seu tempo as respostas virão ao vosso encontro, somente vos peço que aguardem pacientemente mais uns momentos. - Pediu o feiticeiro supremo em tom sereno, ignorando as subtis provocações do Homem de Ferro.

Alguns minutos decorridos e o soalho de madeira polido e brilhante voltou a anunciar a chegada de mais alguém, passos rápidos e confusos dirigiam-se apressados para o interior da luxuosa sala, passos que traziam no seu rasto a frágil e débil esperança de dias melhores. O jovem Peter Parker trajando o uniforme do Homem-Aranha entrou cautelosamente na divisão, fazia algum tempo que a sua presença não se manifestava naquela habitação, olhou em volta perplexo e atarantado, os seus olhos aguçados faiscavam entre os Vingadores e o mago supremo, o que fazia naquele lugar o homem que raramente vagueava pelo comum mundo dos mortais?

— Bom dia a todos. - Disse O Aranha em voz baixa e distante, compreendendo com alguma dificuldade qual o seu papel naquele panorama simplesmente inesperado.

— Agora que já aqui estamos todos, tenho algumas palavras para vos transmitir, palavras se bem interpretadas poderão mudar definitivamente o curso do futuro, poderão alterar por completo a vida de vários inocentes, peço-vos que escutem com muita atenção, cada sílaba proferida encerra valiosos minutos. - Anunciou o Doutor Estranho em tom claro e enigmático, fitando de forma penetrante os rostos que curiosos o observavam incessantemente. - O tempo entrelaça-se cruelmente nas entranhas da história, a guerra mancha a paz com as suas tintas fumegantes e apaixonadas, os laços de sangue dissolvem-se caprichosamente num céu de lágrimas e hesitações, a luz e o amor da liberdade caminham traídos pelas bermas sinuosas das trevas, o mar tomba seco num areal silencioso e mortal, onde as estrelas caem como cometas do céu, fragmentando em estilhaços ribombantes tudo à sua passagem, a morte flutua nos corações dos corajosos e dos arrependidos e o anjo da luz difunde a negra palavra do fogo. - Profetizou misteriosamente, aprisionando cada palavra com um delicado fio de luz e magia, certificando-se que os ouvidos do mundo jamais tivessem conhecimento daquela conversa.

— Mas que raio significam essas frases? - Inquiriu Tony em tom surpreso, exaltando todos os restantes que ainda deambulavam pelas margens das místicas palavras telintadas pelo mago.

— A resposta para a dor e o sofrimento do mundo, usem-nas com sabedoria e dignidade. - Respondeu o feiticeiro supremo de forma sucinta e rápida, levantando-se e saindo para a rua, enfrentando a luz viciante e maldosa do céu, onde as inscrições do futuro brilhavam com tal intensidade que cegavam os abismados olhos da alma.

Durante vários e longos dias, as estranhas palavras do feiticeiro ressoaram através das paredes amedrontadas da enorme e deserta mansão, ressoavam como uma melodia sem fim nem início, uma melodia repentina e inesperada que atormentava os ouvidos dos heróis mais poderosos da terra, pois cada passo que davam em frente rumo ao paradeiro de Diana eram sistematicamente obrigados a recuar quatro ou cinco, porque apenas no seu horizonte avistavam estradas sem rumo, portas fechadas, mares secos e um sol que teimava em não arder.

Depois desse dia, era frequente encontrar vários dos Vingadores debruçados sobre vários papelinhos onde rabiscavam as místicas recomendações do mago supremo, porém estas continuavam vãs e aprisionadas, coloridas por uma tinta tão negra e espessa como a escuridão que vagueava em direcção ao mundo dos sonhos perdidos e desejados.

— Luz, trevas, amor ódio, mar, terra e um tremendo e inevitável paradoxo entre o passado e o futuro, amaldiçoando o presente. - Murmurou Stark em tom baixo e rápido, sentado numa das muitas noites de silêncio e tristeza à mesa do jantar, fitando com sofrimento as palavras que rabiscara à pressa num pequeno papel amarrotado, quase tão amarrotado como o seu espírito desfeito. - E é isto, nada mais consegui interpretar, magia que coisa mais louca e irritante, não era mais fácil chegar aqui e dar-nos um mapa do paradeiro da Diana, isto é inadmissível, imperdoável! - Resmungou frustrado, lançando um olhar furioso ao seu prato já vazio, tão vazio como aquele céu noturno e escuro, onde a lua e as estrelas nunca mais luziram.

— De facto este enigma não é fácil, todavia acredito que seremos capazes de o resolver, isso garanto eu Thor filho de Ódin. - Afirmou o mestre do trovão de forma orgulhosa, apoiando os dedos no queixo, vislumbrando o abstracto sinal do universo.

— Mas onde raios se meteu o Steve, numa altura destas? - Inquiriu Tony em voz recriminadora, olhando para a cadeira vazia do super-soldado. - Gostava de saber o que ele anda a tramar. - Vociferou curioso, tomando o quinto copo de vinho, o elixir mágico que lhe turvava a mente, todavia abria-lhe o coração, e quanto mais ele se libertava das suas horrendas amarras mais a dor o consumia, mais o sofrimento o destruía, mais a saudade o aprisionava.

Ali estava ele, com os astros azuis e esperançados reflectidos na vidraça partida de um céu noturno e distante, o mar caminhava amargo e silencioso a seus pés enquanto a fraca e misteriosa brisa lhe oscilava vagarosamente os pensamentos distintos e indefinidos. Steve Rogers vagueava à deriva nas ondas paradas e negras do futuro, o seu passado visitava-o trazendo-lhe de bom grado as recordações e os erros que mais queria deixar para trás, porém estes deambulavam teimosamente ao encontro das suas noites e dos seus dias, banhando os seus sonhos e transformando a sua desesperada realidade.

Num repente doloroso e iluminado, o terrível abutre do passado sobrevoou sem piedade a sua alma perdida, uma imagem familiar e temida retratou-se à tona confusa da sua mente, uma imagem que encaixava sem dúvida alguma nas sábias palavras do mago, uma junção linda e terrível entre o passado, o presente e o futuro, um refúgio onde as trevas e a luz colidem originando uma explosão fantástica e temerosa de água e terra.

— Quando se nasce e vive na guerra, esta jamais sai do nosso interior, essa é uma grande verdade. - Murmurou o Capitão América pensativo, enlaçando com as pontas dos dedos as teias traiçoeiras da história, as teias amaldiçoadas da sua vida.

Todos os Vingadores já tinham recolhido para a calmaria atormentada dos seus quartos quando Steve entrou com enorme alarido pela mansão, tinha que partilhar com os seus companheiros a descoberta que fizera, tinha que planear o resgate de Diana, tinha que ganhar coragem para encarar as luzes mais negras e derradeiras da sua vida, a culpa, o erro e a morte, estarás tu pronto para dar tal passo Capitão Rogers? Será que conseguirás encarar o que te espera?

— Mas que alarido é este? - Berrou Stark zangado, encarando os olhos azuis e penetrantes do ícone americano.

— Ouçam com atenção, não interrompam até eu terminar por favor. - Disse Steve em tom calmo e ponderado, estava prestes a sucumbir perante as muralhas aterradoras do seu passado, mas estava pronto para arcar com as consequências, estava pronto para apanhar com os estilhaços aguçados da desilusão e da desconfiança. - Sei onde a nossa Diana está...

— Onde? - Gritou Tony sem conseguir conter as palavras que lhe irromperam bruscamente pelos lábios secos.

— Numa ilha que se situa entre as trevas da história e a luz do futuro, numa ilha que flutua nas águas tranquilas e sangrentas do Canal da Mancha. - Revelou Rogers com a voz dragada pela angústia e pela súplica, evitando olhar nos olhos analíticos de todos os seus companheiros. - Uma ilha repleta de vidas roubadas, de almas perdidas, de culpa e de sacrifícios.

O tempo estava a mudar, os astros apressavam-se na arquitectura das estradas que conduziriam a um desfecho trágico e inevitável. A morte projectava no horizonte mais uma hostil e derradeira caçada. O Diabo acendia a fogueira que queimaria provavelmente para sempre os laços que uniam o mar ao céu. Os anjos estendiam pelo firmamento as asas que protegeriam os escudos e as espadas dos heróis mais poderosos da terra.


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