Crônicas do Cedro, do Carvalho e do Mogno escrita por Kraken


Capítulo 1
Paginas Perdidas Ao Mar




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Era mais uma maldita manhã fria. A nevoa era tão espessa que eu mal conseguia enxergar o farol pela janela. O silencio reinava, até mesmo o bule hesitou em expressar-se. Por alguns instantes deixei me levar, talvez pelo branco na janela ou pelo frio da manhã, ou até mesmo pelo calor do fogo, talvez pelo perfume do café, talvez não. Talvez apenas tenha me deixado levar.

A muito tempo atrás, quando eu era moço e não tinha medo de sonhar, eu e a, mais jovem ainda, Marrianne nos esgueiramos por entre as muralhas da antiga Casa Malta, um forte armado construído acima de um fjord, logo de frente ao mar. E mesmo que eu e Marrianne nos vestíssemos, de proposito, com as roupas da resistência Mirian, eram muito raras as vezes que um dos guardas frios da Casa Malta nos notavam.

— Ooou! da pra tomar cuidado e ver aonde você enfia esse pé!

— A culpa não é minha se você decidiu vir depois, só pra ficar olhando pra minha bunda!

— Primeiro, grita mais alto que eu acho que o guarda da muralha leste não te ouviu ainda. Segundo, aquela pedra quase me acertou na cara! Eu podia ter desacordado!

— Então você não nega, ter vindo depois só pra me espiar?

O ultimo passo dela derrubou areia nos meu olhos.

— Marrianne, eu juro que é bom você correr muito quando chegar no topo!

"Huuuuuûûûûûûûû" Entoou uma ecoante corneta ao longe.

— São os guardas?

— Calma moça, deve ser só mais uma decapitação publica.

O vento logo me acordou do meu devaneio, encostei a porta e fui até o cabideiro da janela, me cobri com o meu casaco já bem batido e cheio de remendos. Algo me cutucou quando me vesti. Abri o casaco e olhei para dentro dele e, reluzindo com a fraca luz das lamparinas de minha sala, lá estava ela, a medalha de arquearia da Marrianne. Diferente das outras medalhas, essa abria, e dentro dela estava o sorriso mais doce que eu já havia visto.

— Você vai subir ou não?

— Olha moça, sem as mãos!

— Rupert! Sobe logo sua besta!

Ela disse batendo o pé.

— Tá bom, tá bom, já subi!

Ela correu na frente, em direção a um rombo na alvenaria do telhado. Já havíamos usado esse rombo varias vezes e todas as vezes que passávamos por ele, Marrianne cumprimentava o albatroz que havia feito um ninho lá.

— Bom dia, senhor albatroz!

Ela agachou e escorregou para dentro do telhado.

Eu apenhas fingi que havia ajeitado um chapéu imaginário, em comprimento ao camarada albatroz.

— Como você consegue se mover ai dentro tão rápido? Eu não consigo nem respirar direito!

— Shhhh! Tem alguém ali em baixo.

Nós estamos bem em cima da sala do trono, sempre tem alguém ali.

Eu sei, mas tem alguém diferente. Nunca vi ele antes.

Olhando para baixo nós vimos Malphas, o velho demônio que se auto intitulava senhor dessas terras, ele estava sentado, como sempre, em sua enorme cadeira ornada. O salão estava escuro e com um ar quase que melancólico.

Malphas, apoiado em sua espada, aparentava estar mais velho e cansado do que o de costume. No meio do salão, estava parado uma figura esbelta e vultuosa.

— Como assim, não vais mais me devolver minhas almas ? Eres apenas um ridículo Mantenedor de Almas, deves entrega-las assim que eu exigir!

Disse Malphas com a voz rouca.

— Por muito tempo eu apenas te obedeci, Malphas. Antes você parecia ter razão, mas agora você é apenas um velho fraco!

— Seu insolente! Eu lhe dei tudo o que tens! Eu lhe salvei da morte!

— Malphas! Não resta mais nada do que um dia essas terras foram! Alias, acho bem difícil que fique pior do que já está.

Olhei para Marrianne. Ela estava agachada sobre as vigas do telhado, quase no meio do salão, bem em cima da cena. Naquela época eu estava apaixonado por outra pessoa.

Lydia, era o nome dela. Ela era uma das lideres da resistência e sempre que ela discursava para a multidão fervorosa eu sentia aquele fogo me consumir por dentro.

Não é que eu não gostasse da Marrianne, mas nós havíamos crescido juntos, eu vi ela se tornar, de uma garotinha medrosa, em uma mulher independente e decidida. Ela era como uma irmã pra mim, ainda mais depois que os pais dela morreram e ela passou a morar comigo. Eu tinha medo de perder ela e que assim ela ficasse sozinha no mundo.

Eu tirei do bolso do casaco uma foto minha e da Lydia, que eu carregava desde que a ganhei da própria Lydia. No rodapé dizia: "Mantenha a fé, as terras de nossos pais um dia serão nossas.".

O que você vê nela?

Eu levantei os olhos e vi Marrianne me encarando com aquele bico fechado. Até aquele momento eu nem suspeitava que o que ela sentia por mim poderia ser sério.

Inspiração. Ela mantem a minha fé de que tempos bons ainda viram.

Uma rajada mais forte me trouxe de volta, a tempestade já deixava claro que não havia sido uma escolha sabia sair de barco hoje. O mastro da velha embarcação rangia, as cordas serpenteavam, o pano da vela retumbava como os golpes do vento.

— Rupert...

Eu me virei rapidamente, a água do mar, agitada, criava uma cortina que fluía pelo ar ao sabor do vento.

— Rupert... Venha comigo...

Eu procurava desesperadamente pela fonte do chamado, mas o vento e a água salgada impossibilitavam a visão.

Uma silhueta branca emergiu da cortina de água.

— Rupert nós estamos aqui... Você... Vo...Vo..Vo...Você se esqueceu de nós?

— Não, Marrianne! Não me esqueci de vocês ! Não.. não... NÃO!... Não me esqueci de v...vo...vocês...

Não pude me conter, a diferença entre os meus devaneios e a realidade se tornou tão tênue quanto a diferença entre minhas lagrimas e a água do mar.

Mais uma vez Marrianne estava sobre aquela viga olhando para mim.

Por que não pode ser eu?

Marrianne, já conversamos sobre isso.

Não foi o que você disse aquela noite em Brakas.

Eu estava bêbado! Não vai se repetir nunca mais!

Até parece que você não gostou.

Claro que não, Marrianne você é como minha irmã.

Irmãos não fazem o que fizemos.

Ah! qualé? a gente veio aqui espionar o velho Malphas ou discutir a relação?

Ela fechou a cara e ficou claramente triste. Eu dizia para ela que nem lembrava o que havia ocorrido naquela festa em Brakas, mas eu lembrava. E como lembrava.

— Eu vou embora Malphas. Vou assumir minha forma humana novamente e corrigir os anos de anarquia impune que foram o seu reinado. Vou devolver a essa gente pobre a terra que você tomou delas.

— Calado inseto! Você sequer viveria um dia inteiro sem a minha proteção! Crof! Crofcrofcrofcrof... Cofcof...

— Viu Malphas, você está velho, fraco e decadente.

— Preciso de minhas almas, assim que consumi-las estarei jovem novamente!

— Pra que adiar o inevitável, você consome cada vez mais e o efeito dura cada vez menos. Malphas aceite o seu destino.

— Traidor! você vai pagar por isso.

— Pode me chamar do que quiser Malphas, todo esse tempo eu estive apenas recolhendo suas vitimas... E agora eu ouço elas chamando por meu nome, pedindo por vingança!

As coisas ficaram ruins, toda a alvenaria da Casa Malta estremeceu de uma vez.

— MARRIANNE!

Quando dei por mim já era tarde, a viga onde ela estava havia cedido e ela caia lentamente para fora do meu alcance.

Essa imagem travou em minha mente, cada farpa de madeira cada fio do cabelo dela. O rosto apavorado da mulher da minha vida.

Um relâmpago me forçou de volta a tempestade. A cena era a mesma, mas ela não estava apavorada e quem caia era eu.

— Calma meu amor, logo estaremos juntos...

Rapidamente a escuridão do mar me tragou, a forte correnteza me sugou para cima. Mas não fazia diferença, a corda da ancora havia se enroscado em minha perna. Não demorou muito para que eu estivesse no fundo. Em meio ao frio e a escuridão, nada me confortava mais que o tênue brilho de minha amada. Ela ficou lá, abraçada ao meu corpo até o ultimo instante.

Um espantalho em meio as algas, com um sorriso em meio as barbas.


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