Diário de Josh escrita por Eu-Pamy


Capítulo 4
Edu? Quem é esse?




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Kevin, ou Edu – que era seu segundo nome. Sim, composto também –, como ele preferia ser chamado, era o menino novo da minha sala. Nossa amizade começou logo no primeiro dia, quando depois dele ser rejeitado por toda a sala, eu por algum motivo decidi ser legal e me aproximar. Eu não estava interessado em um amigo, na verdade, essa nunca foi minha intenção. Sempre fui muito solitário e com o tempo até me acostumei a ser sempre eu e minha sombra, sem nunca ter companhia ou parceiro para nada. Mesmo que isso pareça patético, era assim que as coisas eram para mim e eu não estava reclamando. Sempre achei o povo da minha sala estúpido e insuportável, e nunca consegui sustentar nenhum diálogo que preste com nenhum deles, até que Kevin chegou transferido de outra escola no meio do ano. Aparentemente, a antiga escola dele não era tão boa e ele estava na fila de espera para o Cervantes já há algum tempo, por insistência do pai.

Nossa primeira conversa foi um desastre. Logo após descobrir que seu nome era Kevin, por alguma razão, achei sentindo comentar que esse era o nome do meu peixe falecido.

“Sinto muito que ele tenha morrido” Ele falou, parecendo sincero.

Estávamos na sala de aula, na aula de ciência, uma das mais chatas. Kevin havia escolhido o lugar vago ao meu lado, e eu devo ter ficado meio comovido por alguém finalmente decidir se sentar ao meu lado – algo que não havia acontecido desde o inicio do ano letivo, como se eu se tratasse de algum leproso.

“Tudo bem” Eu disse, animado. “Eu vejo ele todos os dias” Ok, eu realmente não sei por que eu disse isso. Mas é isso que acontece quando eu resolvo abrir minha boca. 

Kevin franziu o cenho, me olhando de um jeito estranho, como se eu fosse algum maluco. 

“Calma, tu disse que vê seu peixe morto todos os dias? Como assim?” Seu rosto era de pura confusão.

“Ah... Isso. É que ele está enterrado no meu quintal, então eu sempre dou uma passada lá para cumprimenta-lo.” Tentei rapidamente consertar, mas não sei se fiz muito bem.

“Ah...” Ele pareceu um pouco aliviado, mas ainda me olhava de um jeito estranho “Tu têm muitos bichos mortos enterrados no seu quintal?” Perguntou.

Fiquei o fitando por alguns segundos, e acabei sorrindo.

“Alguns... Não dá pra chamar de cemitério, mas é uma quantidade considerável. Eu gosto de animais. Meu nome é Josh Willian, mas me chame de Will. Seja bem vindo à escola. Sei como é difícil ser aluno novo” Tratei logo de mudar de assunto. Por alguma razão, eu não conseguia parar de falar. Desde o começo, senti que podia dizer qualquer coisa para ele. Havia simpatizado com a figura daquele garoto, e acho que foi recíproco, porque ele não pareceu incomodado, ao contrário, até parecia agradecido por alguém finalmente nota-lo, assim como eu. 

“É, está sendo mesmo. A galera é meio introspectiva comigo, devem estar estranhando o meu sotaque. E obrigado pelas boas vindas, tu foi o único guri que veio falar comigo, além dos professores, isso não deve ser um bom sinal, né” Ele riu, mas como eu fiquei sério ele parou “Meu nome é Kevin... Eduardo. Mas me chame de Edu, é assim que meus amigos me chamam.”

É assim que meus amigos me chamam. Bem, foi isso. E foi assim que eu me tornei um dos amigos do Kevin que o chamam de Edu, mesmo que eu ache Kevin mais bonito. 

Com o passar dos dias, ficamos cada vez mais próximos, o que foi uma surpresa, porque eu dificilmente pego amizade fácil com alguém, mas com Kevin foi superfácil. Ele é desses garotos bonzinhos que todo mundo ama, sem falar que é bom em tudo que eu sou péssimo. Pratica esportas e até já participou de alguns campeonatos e foi premiado, coisa que eu nunca fui, pelo menos não por causa de algum esporte. É bom em ciências e geografia, e adora umas bandas de rock antigas que eu nunca ouvi falar. Também anda de skate e é craque no tênis de mesa, pelo que ele me disse, não tirei a prova ainda e nem planejo tirar, é um mico que eu planejo evitar.

O pai dele foi zagueiro de um time carioca, o Flamengo – eu sei, você deve estar pensando: “caraca maluco, o pai dele é famoso” Bom, pelo que eu sei nem tanto. Ele já estava em fim de carreira quando conseguiu a entrada num time importante, e ficou pouco tempo lá. Sim, eu pesquisei –, e agora é técnico de um time da série C aqui em São Paulo. Visivelmente, muito do seu esforço como atleta é devido à insistência do pai, que exige que o filho se torne profissional algum dia. Não sei se esse é o sonho do Kevin, mas certamente é o sonho do pai, por isso ele meio que se sente na obrigação de ser o melhor em tudo que faz, para agradar o pai. É muita pressão, eu não sei se conseguiria aguentar, mas Kevin até parece que está se saindo bem, sendo atacante num time de futebol do CEU e participando dos campeonatos pela escola, tanto no futebol quanto no atletismo, que pelo que ele me conta, é sua verdadeira paixão.

E sua mãe é ilustradora de livros infantis, o que eu acho o máximo, mas ele não fala muito sobre ela, e nas raras vezes que a citou não entrou muito em detalhes. Eu não entendia essa atitude, mas achei melhor não mancar o intrometido.  

Kevin tem quatorze anos, e nasceu em Porto Alegre, onde viveu por nove anos, até que se mudou para o Rio, depois mais tarde para São Paulo, com doze. Até hoje ele ainda tem o sotaque gaúcho de sua terra natal, e é muito engraçado algumas gírias que ele fala, mesmo que o sotaque dê a ele certo charme para com as garotas. Elas acham isso irresistível, diz ele.

Até hoje, os garotos da nossa sala não o vê com bons olhos, o que é bem estranho, porque ele é um cara bem legal e simpático, o oposto de mim, e certamente o tipo que mais faz sucesso com as pessoas, além de ser mais bonito que eu – ou qualquer outro garoto da nossa turma.

Provavelmente deve ser porque os garotos da nossa sala são imbecis o suficiente para não ver o cara legal que ele é, e sintam inveja da reação que ele causa nas garotas.

Kevin é loiro dos olhos azuis, eu sei, só isso já seria suficiente para o tornar um ima para as meninas, mas além disso ele é alto e tem um corpo magro e definido. Verdade, uma injustiça, mas eu não o culpo, ele me mostrou uma foto da sua mãe no intervalo – a típica mulher do sul, tão bela quanto uma miss – e eu entendi que ele teve a quem puxar. Se todas as gaúchas forem assim, então talvez eu visite Porto Alegre algum dia desses. Brincadeira, ou talvez nem tanto...

“Oi” Kevin disse ao se aproximar. “Tu sabe por que o portão da escola ainda não abriu? Eu cheguei agora. Isso aqui está uma bagunça, quase vi um garoto sendo atropelado ali na esquina por uma motorista furiosa que o xingou de vários palavrões. Tu tinha que ver, a mulher estava fora de si. Acordar cedo faz isso com as pessoas...” Ele riu “E então, sabe porque?” Perguntou novamente depois do seu discurso. Eu esqueci de falar, Kevin era um tagarela. 

“Não sei...” Respondi, me encolhendo de frio. Tinha uma blusa na mochila, mas estava com preguiça de pegar.

“Hum, tudo bem. Como tu está? Conseguiu terminar aquela série que você me falou ontem? Do cara que não consegue morrer”

“O nome é Forever, e nem me lembre disso. Tive uma discussão com a minha mãe ontem e ela desligou o roteador da internet.”

Ele colocou as mãos nos bolsos da blusa de frio, se aproximando um pouco mais de mim para dar passagem a uma senhora e uma criança. Pude sentir o cheiro do seu perfume amadeirado, e isso me deu uma sensação boa.

“Ah, é? Que chato. Odeio quando meu pai faz isso, é golpe baixo.”

“Nem me fale...”

Paramos de falar quando ouvimos o rangido do portão sendo aberto. Uma senhora de uns quarenta anos saiu de lá de dentro, logo a reconheci, era Carmem, a coordenadora. Sua expressão era péssima, e ela trazia um papel e fita adesiva na mão.

“Senhores pais e alunos, por favor, gostaria de um momento de sua atenção” Disse alto, em meio ao alvoroço de vozes. Ao poucos, as pessoas se silenciaram. “Hoje é um dia muito triste para a escola e todo o corpo docente, infelizmente tivemos uma grande perda nesse desolado dia. Nossa prezada Diretora Maria Lucia acaba de sofrer um terrível acidente de carro, após ser vítima de um assalto e veio a falecer há alguns instantes. Em meio a isso, a escola encontrasse de luto e as aulas da parte da manhã suspendidas até amanhã.” Houve alguns sons de choque e outros de desagrado com o comunicado “Por favor, peço a compreensão dos senhores em meio a essa tragédia que nos aflige. Muito obrigado.” Com isso, colou o comunicado no portão e entrou, fechando o portão.

Kevin me olhou.

“E agora? Não posso voltar para casa, os pedreiros estarão pitando-a durante a manhã. Meu pai disse para depois da escola eu ir para o shopping, para não atrapalhar.”

Pensei por um instante.

“Bom, o que acha de você ir para minha casa? Não tem ninguém lá, podemos jogar o vídeo game do meu primo, eu não sou muito bom, mas estou aprendendo e meu primo me emprestou dois controles. Só que eu prometi devolver hoje, então podemos jogar de manhã e ir lá à tarde, o que acha?”

Kevin sorriu.

“’Tá bom, eu só tenho que avisar meu pai. Mas tenho certeza que ele não vai ligar.”

“Tudo bem, vou ligar para a minha mãe também, avisar que hoje não tem aula. Enquanto isso, o que acha de irmos para o ponto de ônibus?”

“Tá”

Peguei o meu telefone do bolso da calça e disquei o número.

“Alô” Disse minha mãe.

“Oi, mãe, é o Will. Eu só quero avisar que estou voltando para casa, hoje não tem aula”.

“Oxi, ta maluco? Nem feriado é. Porque não iria ter aula? Ta querendo me enganar moleque?”

Revirei os olhos, sempre tão desconfiada.

“Não... Não é isso. É que a Diretora sofreu um acidente e... Bem, ela morreu. A escola está de luto por causa disso.” Fui direto.

“Ah... Minha nossa! Acidente de carro?”

“Acho que sim”

“Será que não era ela então? Hoje mais cedo, quando estávamos vindo?”

“Não sei, pode ser que sim, pode ser que não.”

“Que tristeza...” Uma pausa “Mas ok, volta logo pra casa, e toma cuidado hein filhote. Mamãe te ama. Tenho que desligar agora, ainda estou dirigindo.”

“Ah, mãe. Só mais uma coisa. Eu não estou indo sozinho. O Edu também vai”

“Edu? Quem é esse?”

“Meu amigo...”

“E como eu nunca ouvi falar dele?”

“Não sei, ué. Porque nunca contei. Tudo bem ele ir?”

“Sim, tudo bem, é bom que você faça amizades mesmo. Mas eu quero conhecer esse tal Edu, viu, pra ter certeza que você não deu para ter amigos invisíveis”

“Mãe...”

“Tudo bem, tudo bem, não está mais aqui quem falou. Vê se não destroem a casa, ok? Beijo meu tampinha.”

“Beijo grandona” Brinquei, desligando o celular.

Kevin ainda falava no celular com seu pai, quando desligou disse: “Ele deixou. E quanto a sua mãe?”

“Sem problema, ela achou foi bom.”

“Ah, legal” Ficamos em silêncio por um tempo, apenas caminhando. “Triste isso que aconteceu com a Maria né. Ela era uma Diretora legal. Não vão encontrar outra igual”

“Verdade” Respondi desanimado. “Algumas coisas não dá para entender porque acontecem”

“Não mesmo...” Ele falou, olhando para mim com um semblante pensativo. “Não mesmo.”

Pois é, querido diário, nem todas as notícias são boas. Mas como diria minha mãe: “Quebrou a perna? Vai pulando!” Se é que isso faz algum sentido pra você. De qualquer forma, é isso aí, mesmo que obstáculos existam, temos que tentar seguir em frente, mesmo que doa.


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