Back To The Start escrita por Bess


Capítulo 2
O meio




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O começo do meio

“Mas se tivéssemos apenas que abrir os nossos olhos

Veríamos as bênçãos disfarçadas

Que todas as nuvens de chuva são fontes

Apesar de nossos problemas parecem montanhas”

– Ron Sexsmith, Gold In Them Hills -

Já havia dois dias que a TARDIS havia quebrado, e o Doutor parecia cada vez mais convencido de que ela fizera aquilo de propósito. Mas por que ela iria querer que eles ficassem presos ali? Sua velha garota parecia ter enfim ficado louca, ele achou.

Mas havia momentos estranhos em Downton. O resto das pessoas parecia não notar, mas era como se houvessem apagões. Tudo parava por alguns segundos, a escuridão cegava a todos, qualquer chance de visão era apagada, e nada acontecia. Isso foi o bastante para aguçar a curiosidade do Doutor. Por que só ele parecia perceber aqueles momentos? Ele se perguntava se Rose também os sentia.

Quando esses apagões aconteciam, ele sempre estava fora do hospital. Mas agora era hora de voltar e ver se sua companheira já estava perfeitamente bem de saúde – então poderiam conversar e ver o que fariam dali em diante. A TARDIS se recusava a funcionar e até a abrir suas portas, tamanha sua teimosia, e eles estavam, para todos os efeitos, perdidos em 1920. Poderiam ficar dias, semanas, meses, até anos ali.

Já que ficariam ali por tanto tempo, precisavam decidir o que fazer. Ele teria que – argh – achar um emprego, assim como ela, e morariam provavelmente na mesma casa.

Toda a perspectiva de viver uma vida humana aborrecia o Doutor. Embora passar algum tempo ali, aprendendo os costumes daquela época, não fosse uma ideia tão ruim assim, ele sabia que eventualmente sentiria falta do perigo, do novo, do inimaginável. Aquela terra era muito calma para seu espírito de aventura, isso era certo. Ao mesmo tempo, havia alguns aspectos na vida humana que ele desejava profundamente, isso era verdade...

Entretanto, ele reconhecia que algo o atraíra para lá. Aqueles apagões suspensos eram muito esquisitos. Ele teria que investigar. Também teria que quebrar a cabeça pra solucionar a questão: quem havia deixado o bilhete pra ele em 1953? Ele certamente teria que conhecer a pessoa agora.

Além do mais, não era como se tudo aquilo fosse chato. As pessoas eram muito interessantes. O Dr. Clarkson já ganhara sua admiração, assim como a Sra. Crawley (apesar dela o lembrar muito de Harriet Jones). Ele contemplava Lady Edith com um sorriso (porque afinal de contas ele sabia que ela eventualmente decidiria colocar suas memórias no papel).

Mas os que ele mais se afeiçoara foram Lady Mary e Matthew Crawley.

Ele sabia que Lady Mary podia ser maldosa e mesquinha, mas ela era tão humana. Filha do Conde de Grantham, desde sua infância treinada pra se achar superior e esconder seus sentimentos, a deixar gelo correr em suas veias. Sempre tentando ser o filho que o pai nunca teve, desejando ter nascido menino para honrar o nome do pai. Tão entediada com a sua rotina de sempre... Ela poderia ter sido uma companheira fantástica, se não fosse uma lady inglesa. Ele receava que algo na perspectiva de enfrentar monstros e dormir em lugares pouco confortáveis não seria exatamente agradável para Lady Mary. E além do mais, ela já tinha sua vida. Se ele quisesse leva-la na TARDIS, deveria ter feito isso alguns anos antes, quando ela ainda não estava satisfeita com suas chances. Agora ela já tinha um marido, a quem amava profundamente.

E que marido! Matthew Crawley era tão impressionante como sua esposa. O Doutor sabia reconhecer um homem bom quando via um. Matthew era definitivamente um homem bom. Criado de forma simples em Manchester, descobrindo que herdaria uma grande propriedade e título quando adulto, mas ainda decidindo se manter fiel ao seu antigo modo de vida – vendo que não tinha que ser cabeça-dura com o tempo. Tão deslumbrado com aquele mundo, com sua nova família. E então os tambores da guerra rufaram, e levaram embora o advogado, e depois o silêncio o trouxera de volta. Matthew sempre buscava ser generoso. Era bondoso com todos, e numa idade tão tenra já havia conhecido a morte de seus entes queridos. O Doutor sabia que ele ficara paraplégico em decorrência da guerra e se curara, e não se admirara ao pensar que aquilo o fizera ainda mais forte.

Belo casal, eles eram. Quando ele conseguisse fazer com que a TARDIS funcionasse, daria uma passada no futuro para ver se tudo estava bem. Não! Ele afastou o pensamento. Brincar com as leis do tempo era perigoso. Ele não deveria interferir de jeito nenhum: esse era um dos mandamentos dos Senhores do Tempo. Seu povo.

Uma pequena parte dele dizia que devia deixar tudo aquilo ir, junto com os Senhores do Tempo. Sim, ele os amava, eles eram o povo dele, mas já se foram. E ele nem sempre fora muito dedicado a obedecer às regras...

Afastou seus pensamentos, lembrando-se de onde teria que ir naquela noite. A perspectiva de jantar em Downton Abbey não o assustava (afinal de contas, ele já tivera sua cota de monstros aterrorizantes), na verdade, ele estava muito curioso. E apesar de toda a frieza daquele lugar, o Doutor gostava de pensar que aquela gente adoraria saber como preparar uns bons milk-shakes de banana. Ele já tinha ensinado como fazer daiquiris na França, por que não milk-shakes na Inglaterra? E bolinhos! Ele amava bolinhos!

– Ah Doutor, aí está você! – Disse Rose, animadamente.

– Rose? Você já recebeu alta do hospital? – Ele franziu a testa. – Não saiu por aí rondando, não é?

– Claro que não. Eles já me liberaram, porque realmente, eu não tinha nada. – Ela virou os olhos. – E você ainda insistiu pra eu ficar um tempão de cama. Agora você vai me explicar o que está acontecendo.

– Rose, você...

E então aconteceu de novo. O tempo parou, tudo sumiu, só era visível o vácuo, a escuridão. Ainda assim, o Doutor percebia quando esses apagões aconteciam. Ele ainda conseguia sentir seu corpo, seus pensamentos não o deixavam – ele só ficava parado. Depois tudo voltava ao normal.

– Você sentiu isso, Rose? – Ele perguntou, agoniado. – Isso é muito estranho, e a todo o momento acontece aqui!

– Sim, é uma sensação estranha. – Ela estreitou os olhos. – Como se o tempo estivesse... Pausado.

– Precisamente. Por que só acontece aqui? Eu nunca tinha ouvido nada a respeito. E por que só nós dois notamos?

– Como você sabe que só nós dois notamos? – Ela questionou.

– É simples. Olhe pras pessoas, ninguém comenta nada a respeito, eles nem se movem de um jeito diferente. Por mais que isso esteja acontecendo há muito tempo e eles tenham ficado, digamos, acostumados com isso... Sempre há algum maneirismo diferente.

– É possível que nós tenhamos pousado não na Inglaterra, nos anos 20, mas sim em... Sei lá... Um mundo paralelo? Uma cópia bem feita de Downton em outro planeta?

– Não, eu chequei as coordenadas quando estávamos pousando.

– Ah! Será que ler o livro vai nos ajudar? – Rose puxou um objeto pra fora de sua bolsa. Um objeto que o Doutor não se dera conta de que ela estava carregando antes. Suas feições rapidamente se contorceram em horror e ele tomou o livro das mãos dela, deixando uma Rose exasperada.

– Não abra! Nós não podemos saber o que vai acontecer!

– Por que não? Isso pode até nos ajudar...

– Não! Nope! Nein! O que é lido se torna realidade, e o fato de nós sabermos... Não, de jeito nenhum. Precisamos de liberdade pra agir aqui, sem leis do tempo nos ameaçando.

– Você está com medo de que alguém morra?

– Sim. Lady Edith ainda não escreveu o livro, eu lhe perguntei no jantar. Imagine a seguinte situação, Rose. Nós lemos que um certo Doutor e uma certa Rosana foram a um jantar usando nada além de cangas. O que isso significa? Que Lady Edith teve um jantar em que eu e você só usamos cangas. O que isso significa? Que teremos de usar cangas num jantar pra satisfazer as leis do tempo. Imagina se nos recusarmos, o que acontece? Criamos um paradoxo, e paradoxos sempre causam encrencas. Eu não preciso de mais alguém morrendo por minha causa, se sacrificando por mim...

– Doutor, não faça um drama por causa disso. Está bem, eu largo o livro. – Ela disse, recolocando-o em sua bolsa.

– Vamos ter que investigar isso a fundo, eu temo. Ah, e a propósito. Nós vamos a um jantar hoje. – Ele disse, casualmente.

– Aonde? – Ela perguntou, curiosa.

– Downton Abbey. – Ele olhou pra ela e sorriu. – Jantar com a família do Conde de Grantham!

– Mentira! Meu Deus, como isso é chique!

Do outro lado da rua em que estavam, perto da igrejinha, Lady Mary franzia a testa. Lá estava ele, o Dr. Smith, que iria jantar em sua casa naquela noite. Junto a ele, estava uma jovem (que ela pensava ser sua esposa) em roupas melhores do que as anteriores. Ela ouvira boatos no vilarejo de que os dois vestiam roupas um pouco... Excêntricas, e as da mulher beiravam o inaceitável.

Lady Mary Crawley adorava um pouco de rebeldia.

Ela caminhou na direção dos dois, prontas a lhes cumprimentar e reafirmar o desejo geral de que eles comparecessem ao jantar.

– Lady Mary! – O Doutor disse, fazendo um breve aceno com a cabeça, gesticulando para que Rose fizesse o mesmo. A loira parecia maravilhada e surpresa. – É um prazer em vê-la.

– Dr. Smith, Sra. Smith. – Ela também acenou. – Eu tenho confiança de que você já está se sentindo melhor, Sra. Smith?

Rose relanceou para o Doutor, e ele soprou as palavras “aja naturalmente” para ela.

– Sim, Lady Mary, obrigada por perguntar. – Ela respondeu, sorrindo.

– Bom.

– Aliás, eu queria lhe agradecer. – Rose começou a falar. – Soube que você estava no almoço outro dia na casa da Sra. Crawley, e eu acredito que aquilo tenha sido importante pra manter o Dr. Smith calmo.

– O mérito vai inteiramente ao Dr. Clarkson por convidar o seu marido, Sra. Smith. Mas eu vou tomar um pouco dos seus agradecimentos e reconhecer que conversei muito com ele. Histórias extraordinárias, eu devo dizer. – Lady Mary se interrompeu. Ela sentiu uma tontura repentina, uma sensação estranha na boca do estômago. Tirou os olhos do Doutor e de Rose, colocou a mão no estômago. Sentiu suas mãos suando, e foi se curvando cada vez mais.

– Lady Mary? Lady Mary, você está bem? – O Doutor perguntou, preocupado. Rose rapidamente pegou Mary pelas mãos e passou uma mão confortável pelos ombros dela. A expressão da mulher era de pura dor.

– Desculpe, eu... – Ela se desvencilhou de Rose e correu até o gramado. De joelhos no chão, vomitou. Que vergonha, ela pensou, enquanto Rose voltava a acariciar suas costas, para confortar Mary.

O Doutor sabia que Lady Mary era uma criatura orgulhosa, mas não podia se conter e tentar ajuda-la.

– Lady Mary, você está doente?

– Eu estou sentindo esses enjoos frequentemente pelas últimas duas semanas, mas são eventos isolados. Eu como pouco. – Ela tentou se desculpar. Não queria parecer frágil diante deles, mas os dois arquearam suas sobrancelhas simultaneamente.

– É mesmo? – O Doutor replicou, mirando a mulher em sua frente com desconfiança. – Você comeu pouco hoje também, Lady Mary?

– Sim. – Ela mentiu.

– Bem, de qualquer jeito, eu acho que uma passada no hospital pode te ajudar. Devemos te acompanhar?

Ela se deu por vencida. Não estava realmente vibrante para discutir. Além do mais, esses enjoos realmente eram um incômodo. Ela deveria logo saber o que era para se tratar, tendo em vista as perdas que sua família já sofrera por conta de doenças...

Sybil.

A memória do dia fatídico em que sua irmã falecera ainda doía, quando Mary pensava a respeito. A sensação de impotência ao ver a mais bonita e doce das irmãs Crawley convulsionar ainda habitava seus pesadelos mais profundos.

Lady Mary não entendia o que se passava com ela. Era sempre contida e sabia esconder seus sentimentos muito bem, até bem demais. No entanto a memória de Sybil, o medo que se passou, seus enjoos, tudo veio de uma vez e ela começou a chorar na frente daquela gente.

Ela se odiou por isso e quanto mais chorava, mais se odiava.

– Lady Mary. – Rose a guiou para um lugar mais escondido, para que não chamassem a atenção.

– Me desculpe, eu não sei o que deu em mim hoje...

– Isso é tudo porque nós te vimos passar mal? – Rose sorriu, tentando animá-la. – É normal, Lady Mary.

– Eu estou muito emocional esses dias, não entendo o que há comigo... Agora, por exemplo, eu comecei a chorar porque... Porque sim! E eu pensei na minha irmã...

– Lady Edith? – Rose perguntou, tentando aprender.

O coração de Mary doeu mais um pouco.

– Não, minha outra irmã, Lady Sybil. Ela... Ela faleceu há um ano. E eu não sei por que, eu sempre me contenho... – Mary cobriu seu rosto com as mãos.

– Oh, Lady Mary. Isso é muito triste de se ouvir. Meus sentimentos. – E Rose não falou aquilo da boca pra fora. Ela realmente sentia.

– E William, e Lavinia... – Mary respirou fundo, dizendo nomes que eram vazios para Rose, mas que ainda eram assombrosos. – Ah. Chega.

– Venha, Lady Mary. Eu e o Dr. Smith vamos lhe acompanhar até o hospital. – Rose a puxou delicadamente. Mas ninguém precisa pensar muito pra saber o que você tem, Rose refletiu com um sorriso.

No hospital, o Dr. Clarkson recebeu o estranho grupo formado pelo misterioso Dr. Smith, sua esposa e ninguém menos que Lady Mary Crawley.

– Dr. Smith! Já de volta em tão pouco tempo! – Ele sorriu, dando tapinhas no braço do homem. Simpatizara com ele.

– Dr. Clarkson! E mais uma vez vim acompanhar uma dama.

– Você não está se sentindo bem, Sra. Smith? – Perguntou um Clarkson preocupado. Se ele tivesse feito um diagnóstico precipitado de novo...

– Estou perfeitamente bem, só viemos acompanhar Lady Mary, na verdade.

– Lady Mary? Venham os três ao meu escritório para fazermos a consulta. Eu receio que o máximo seja de um acompanhante, mas posso abrir uma exceção. – Ele sorriu de maneira conspiratória.

– Muito bem. – Ele disse, sentando-se à mesa, puxando seu bloco de anotações. – O que foi, Lady Mary? Como você está se sentindo?

– Bem. – Ela pôs a pompa de novo em sua fala. – Não é nada de mais, só estive com alguns enjoos nessa última semana, mas eu acredito que tudo se deva ao estresse.

– Ela passou mal em plena rua. – O Doutor começou a delatar. – E eu receio que essa não foi a primeira vez que ela passou mal, mas não sei se alguém a persuadiu a vir ao hospital mais cedo.

– Você tomou seu café da manhã apropriadamente, Lady Mary? Seja honesta. – O Dr. Clarkson a advertiu.

Lady Mary achou melhor não mentir.

– Sim. – Ela fingiu desinteresse.

– Você notou algum aumento repentino no apetite?

– Nada que seja gritante.

– Dr. Smith, eu acho melhor o senhor sair agora, mas, por favor, fique à porta.

O Doutor obedeceu.

– Venha, Lady Mary. Preciso examinar seu corpo. E eu também gostaria de lhe perguntar... Não me entenda mal, mas... Suas regras... Estão em dia?

– Não. – Mary admitiu. – Mas eu assumi que o atraso não estava relacionado à gravidez, mas sim a uma cirurgia que eu fiz recentemente, ou ao estresse...

– Eu começaria a considerar gravidez, Lady Mary. – Ele orientou, deixando-a de olhos arregalados.

Ele pôs o estetoscópio no coração de Mary, depois em sua barriga, escutando com atenção. Pediu que tirasse a parte superior do traje (Rose teve que ajudar), e examinou seus seios, notando que estavam mais flácidos que o normal.

– É o que eu suspeitava, Lady Mary. Você vai ser uma mãe em breve. Parabéns! – Ele deu as notícias, observando mais uma vez Lady Mary transbordar de alegria e excitação.

– Eu estou realmente grávida, Dr. Clarkson? Há quanto tempo? – Ela ainda não podia acreditar muito, depois de tudo que ela e Matthew passaram para serem pais.

– Eu vou pedir um teste de urina para tirarmos todas as dúvidas, Lady Mary, mas estimo que você esteja com dois meses e meio, prestes a completar três. A barriga vai começar a aparecer logo.

Ela cobriu a boca, para esconder a expressão boquiaberta. Um milhão de pensamentos vieram à sua cabeça, desde o medo de que tudo desse errado, até a felicidade suprema porque ELA SERIA MÃE, além do orgulho que sentia, o amor intensificado pelo marido e a vontade de sair correndo para lhe contar as novidades.

Mary agradeceu fervorosamente o Dr. Clarkson, além de correr para dar um abraço na Sra. Smith (porque ela era uma boa alma e as duas estavam muito felizes).

Depois de deixarem o Dr. Clarkson coletar as amostras necessárias, as duas mulheres saíram e encontraram o Dr. Smith esperando na porta.

– Então? – Ele fez uma expressão de curiosidade misturada com divertimento, já sabia a “doença” de que Mary sofria.

– Aparentemente eu estou grávida! – Ela disse, não conseguindo conter a alegria. – Oh Meu Deus. Eu preciso contar pro Matthew antes do jantar, porque depois vou ter que falar pra todos, vou me atrasar... – Ela já pensava nos seus planos e o Doutor reparou em como ela era muito britânica.

– Antes de tudo. O mundo não vai acabar se vocês se atrasarem um pouco. – Ele sorriu entre os dentes. – E têm muito o que comemorar! Uma criança é sempre bem vinda, apesar de você sabe, dormir e chorar e mamar muito. Vai te deixar muito nervosa, mas nada vai te fazer mais feliz.

– Obrigada, Dr. Smith. – Ela olhou para os dois (ela se permitia chama-los assim, agora) amigos. – Vocês me acompanham até a Casa Crawley? Matthew está lá, e depois podemos os quatro ir direto para Downton.

O Doutor e Rose assentiram, já que já estavam trocados para o jantar chique em Downton.

A caminhada do hospital até a Casa Crawley não era muito grande. Mary podia quase correr, mas se continha – pelo bem da criança. Ela gostava de como aquilo soava. Logo, através das estradas e ruelas recentemente concretadas, uma casa com um jardim ostensivo tomou a paisagem.

Logo a campainha foi tocada, e Molesley atendeu a porta.

– Olá, Molesley. Eu vim falar com o meu marido. Você pode acomodar o Dr. Smith e a Sra. Smith na sala de estar enquanto isso? Não levarei muito tempo.

– Claro, minha senhora.

Todos entraram, e Mary subiu as escadas quase não se contendo de emoção. Ela, que raramente se permitia sorrir, estava rindo sem parar.

– Matthew? Matthew, querido? – Ela chamou.

– Ah, Mary. O que você faz aqui? – Ele perguntou, enquanto fazia sinal para que ela fosse até o antigo quarto de solteiro dele. – Pensei que nos encontraríamos só em Downton. – Ele se levantou e selou seus lábios com os de sua esposa.

– Na verdade, eu achei melhor vir até aqui porque não estava me sentindo muito bem. – Ela respondeu, fechando a porta.

– Como assim, Mary? Sente-se, querida. – Ele gesticulou e os dois sentaram-se na antiga cama dele.

– Eu estava perto da igreja com o Dr. Smith e a esposa dele, quando passei mal. Eles me levaram até o hospital, e de lá eu vim pra cá.

– Oh Meu Deus. – Ele disse, passando a mal na cabeça dela, tirando cabelo de trás da orelha dela. – Mas o Dr. Clarkson te examinou? Você está bem? Se não estiver, sem problema nenhum nós faltaremos ao jantar, eles vão entender...

– Matthew, eu estou grávida. – Ela soltou, não podendo mais se conter. – Dois meses e meio, aparentemente.

Ela contemplou a expressão dele, aproveitando o misto de pensamentos que ela sabia que inundaram a cabeça dele.

– Você está falando sério, Mary? Eu posso ver que está. – Ele sorriu de orelha a orelha, e logo perguntou se precisavam de uma confirmação, e se ela estava bem, e logo ele parou de fazer perguntas e se permitiu brilhar com antecipação.

– Oh Mary, eu... – Ele não pôde descrever em palavras, então se curvou e tomou a esposa em seus braços. Ela o abraçou de volta, colocando um braço no cabelo dele e o outro em suas costas. Ele a beijou com ternura, os dois sorrindo entre os beijos.

Os dois se deitaram e ficaram ali por alguns momentos. Um dos braços dele fazia um arco em torno da cabeça dela, de forma que ele podia brincar com o cabelo dela carinhosamente, enquanto a outra mão se encontrava no ventre dela, fazendo pequenas carícias sobre a seda da blusa dela.

Eram duas pessoas, em breve três. Duas pessoas se amando, da forma mais simples e direta.

O meio do meio

“Flor, cintile e brilhe

Deixe o poder brilhar

Faça o tempo voltar

Traga de volta o que uma vez foi meu

Cure o que foi ferido

Mude o desenho do destino

Salve o que foi perdido

Traga de volta o que uma vez foi meu

Uma vez foi meu”

– Tangled, Flower Song -

– Meu Bom Deus! – Exclamou Lorde Grantham. – Você deve estar brincando quando diz que Winston Churchill tem futuro na política.

– Escreva as minhas palavras, Winnie ainda vai prestar grandes serviços à Inglaterra. – O Doutor argumentou, sorridente.

– Ele só fracassa. Dardanelos foi uma vergonha. – Lorde Grantham franziu a testa e acenou negativamente com a cabeça, em um gesto de desaprovação.

– Algumas pessoas passam por uma vida inteira de fracassos e derrotas antes de obterem o sucesso. Elas só precisam persistir, ter coragem.

– Bem colocado. – Matthew reconheceu. – E esforço sempre é uma qualidade apreciada.

– Mais o quê depois disso? Emily Pankhurst coroada rainha?

– Seria a maior diversão. – Lady Cora replicou. – Quem sabe ela permitiria mulheres usarem calças em público.

Por um momento todos os presentes, com exceção do Doutor e de Rose, pensaram em Lady Sybil e no dia fantástico em que ela aparecera com calças.

– Esse dia não está tão longe de chegar. – Disse Rose, escondendo um sorrisinho com seu copo. – Em Exeter, por exemplo. É a moda do momento.

Todos pareceram escandalizados com esse comentário. O Doutor parecia achar a maior graça.

– Por Cristo, em Exeter? – Começou a Condessa Viúva, com seus olhos arregalados em choque. – Se até nessa terra esquecida isso está acontecendo, não me surpreenderia se o Apocalipse estivesse sobre nós!

O Doutor teve que fingir um engasgo para não deixar sua gargalhada aparente.

– Dr. Smith, pelo amor, o senhor está bem?

– Perfeitamente, me desculpe. – O Doutor colocou seu braço sobre a boca para esconder os últimos resquícios de um sorriso. – Temo que tentei beber rápido demais.

– Sra. Smith, o que a senhora acha do trabalho do seu marido? – Perguntou Lady Cora, tentando ser amigável. – Com certeza deve ser uma profissão muito exigente.

– Sem dúvida. – Rose estufou o peito para responder. – Mas é tudo muito animador.

– A senhora é instruída em Física? Engenharia? – Robert perguntou surpreso.

– Não. Eu atuo mais como... – Ela mordeu as palavras, não gostava de admitir aquilo. Sabia que o Doutor tiraria sarro dela depois. – Assistente. Eu o ajudo com os planos mirabolantes.

– Rose faz seu trabalho muito bem. – O Doutor acrescentou.

Ai de você se disser o contrário, Matthew pensou, alegremente.

– Devemos ir para a sala de visitas? – Lady Cora falou, fazendo sinal para todas as mulheres a seguirem. Elas se levantaram e deixaram os três homens para trás. Era uma tradição esquisita.

– Ah, eu gostaria de ter uma palavrinha com Carson! – Anunciou o Doutor. Os olhos do mordomo quase saíram de seu crânio. Não era comum os hóspedes se dirigirem a ele na frente do seu senhor e daquela maneira. – Carson, eu gostaria de saber, há alguma posição disponível na casa? Eu e minha esposa precisamos nos estabelecer em Downton, e enquanto eu não arrumo trabalho como, er, engenheiro! Seria bom se Rose conseguisse um emprego.

Lorde Robert interrompeu antes que Carson pudesse dar uma resposta.

– Você diz que quer que a Sra. Smith arranje trabalho? Aqui na minha casa?

– Por que não? – O Doutor replicou. – Não somos gente de classe, Lady Mary deve ter nos chamado para jantar aqui provavelmente por interesses em negócios. Aceitamos o que aparecer.

– Mas a Sra. Smith já trabalhou numa casa? Uma casa grande e exigente como essa? – Robert continuou seu interrogatório.

– Não, mas ela conseguiria se adaptar. Rose é uma moça forte.

– Escute, você diz que Rose é sua assistente? – Matthew começou. – Ela tem experiência com secretariado?

– Um pouco, sim. – O Doutor não sabia, mas por via das dúvidas, né.

– Há uma vaga na firma em que eu trabalho. Eu poderia recomendá-la. Acho que seria mais prudente do que contrata-la como uma empregada.

– Ah, eu agradeço muito, Sr. Crawley! – O Doutor não escondeu seu entusiasmo, e estendeu sua mão para um aperto, que Matthew prontamente aceitou.

– Agora, sobre seu trabalho, Dr. Smith. – Disse Robert. – Não posso fingir que não estou interessado em emprega-lo. Tem interesse?

– Evidentemente. Eu poderia ajudar em qualquer tipo de construção que vocês precisem de auxílio.

– Queríamos construir uma ponte, mas uma moderna, não de pedras e madeira. Uma que pudesse ser de concreto.

Enquanto o Conde de Grantham explicava seus planos para o Doutor, as mulheres conversavam em grupinhos. Enquanto a Condessa Viúva travava mais um (hilário) debate com a Sra. Crawley a respeito da vida de Molesley, Lady Cora e Lady Edith discutiam novidades esperadas na próxima viagem a Londres e Lady Mary conversava animadamente com Rose. Era raro que ela achasse alguém em que pudesse confiar, e Rose a lembrava um pouco de Sybil.

– Então, Matthew recebeu bem a notícia, eu espero? – Rose perguntou.

Mary tentou não corar. A constituição dela era pálida, e corar não ficava bem com a sua aparência. Mas era tarde demais, e Rose era doce.

– Sim, ele ficou muito animado em saber que vai ser pai.

– É algo que vocês dois querem há um bom tempo, eu confio?

– Desesperadamente. O problema era meu, mas uma pequena cirurgia resolveu tudo. – Mary não sabia direito porque estava se abrindo com alguém que não conhecia direito, mas deixou estar.

– Esse tipo de coisa é comum esses dias. – Rose refletiu, mais para si mesma do que para Mary.

– E quanto a você, Sra. Smith? Tem filhos?

– Não, e também não pretendo num futuro próximo. Ainda sou jovem.

– Mas e o seu marido? – Mary franziu a testa.

Rose também decidiu se abrir.

– Não me pergunte como eu sei disso, nem mais outras informações, mas ele já teve filhos. Antes de eu o conhecer.

Mary não esperava que o Dr. Smith fosse do tipo que tinha filhos bastardos.

– De qualquer jeito, isso foi antes de nós nos conhecermos... Eu não sei se ele era casado, mas agora esses filhos já se foram. Ele ficou sozinho.

O coração de Mary doeu um pouco. Ela vira como sua mãe e seu pai sofreram quando Sybil morrera. Nenhum pai deveria enterrar seu filho. Repreendeu-se mentalmente por ter pensado baixezas a respeito do Dr. Smith quando ele certamente havia sofrido muito com o falecimento dos filhos.

– Eu lamento muito em ouvir isso. Verdadeiramente. Muitos pais perderam filhos para a guerra, e não apenas para a guerra, e é a pior coisa do mundo. Não é o caminho natural da vida.

– Sim. O Doutor já sofreu muito. Ele viveu uma vida longa.

– Eu não sei exatamente como, mas percebi isso pelos olhos dele. São mais velhos do que aparentam.

– Mas agora ele tem a mim, e não está mais sozinho. – Rose tentou se distrair de suas próprias emoções. – E eu honestamente sinto que ele está mais feliz agora.

– Não me admira. Ele tem uma esposa doce e alegre. – Lady Mary elogiou sua mais nova amiga.

*

Isso é um dom que vem com um preço

Quem é o cordeiro e quem é a faca?

Midas é o rei e ele me abraça tão forte

E me transforma em ouro sob a luz do sol”

– Florence and the Machine, Rabbit Heart –

Um mês depois, Rose trabalhava a todo vapor como secretária do Sr. Carter na firma Harvell & Carter. Não era um trabalho particularmente empolgante. Rose se sentia entediada, quase tanto como no seu antigo emprego na loja. Pelo menos agora seu dia-a-dia era animador por ela esconder um segredo, uma investigação que deveria ser feita com o Doutor.

Rose sorriu com o pensamento. Ele confiava nela.

De qualquer jeito, a investigação não progredia. Nunca chegavam novas informações, a TARDIS continuava a fazer birra e os estranhos e aparentemente inofensivos apagões continuavam.

Mas tudo aquilo não era absolutamente chato. Eles fizeram muitos amigos naquele lugar.

Rose, em especial, passou a admirar Matthew Crawley. Não, ela não tinha uma queda por ele nem nada. Ele só era um amigo. Ele a ajudara a conseguir o emprego, e sempre que falava com ela era cordial e amigável. Melhor do que muita gente que a tratara com superioridade em outras viagens que fizera com o Doutor.

Mais do que isso, Matthew Crawley era decididamente um homem bom. Advogado simples de Manchester elevado a herdeiro do Conde de Grantham, deslumbrado com Downton, abatido pela guerra, renascido pelo amor de uma mulher e pelo futuro filho. Tentando ser sempre justo e leal à sua consciência.

Ele tinha seus defeitos, Rose sabia bem. Todos tinham. Mas isso não a impedia de simpatizar com ele.

*

“Quem quer viver para sempre?

Quem quer viver para sempre?

Quem ousa amar para sempre?

Quando o amor deve morrer?”

– Queen, Who Wants To Live Forever -

O Doutor estava ficando confuso.

A TARDIS empacara. Por que disso? Decidira torna-lo humano?

Ele até tivera que comprar uma casa pra dividir com Rose! (Não que dividir com ela fosse um empecilho, ele só não se acostumara à ideia de finalmente ter ficado preso em algum lugar).

A TARDIS devia querer que ele fizesse algo naquele lugar. Teria algo a ver com os apagões?

Aquilo podia ter tantas explicações. Muita gente podia ter segredos. Ele tentava descobrir, mas as coisas naquela época eram feitas por debaixo dos panos, e ele tinha que ser cuidadoso pra não ferir nenhuma convenção social, porque muita coisa poderia dar errado. Ele tinha que ir aos poucos, mas aos poucos estava levando muito tempo!

Pelo menos as pessoas... Gostara de conhece-las. Se não se conhecesse melhor, diria até que estava ficando muito apegado.

O tempo passou, e o Doutor se conformou. Permitiu-se criar raízes e verdadeiramente gostar da vida provisória que levava lá: lentamente, gostava cada vez mais dos habitantes que conhecera. Seis meses se passaram. O bebê de Lady Mary cresceu em seu ventre, e o Natal se aproximava. A neve já começara a cair.

O Doutor se pegara esperando para conhecer o bebê. Não pudera evitar. Achara amigos em seus pais.

Por mais que o Doutor apreciasse cada detalhe dessa nova vida, e por mais que não pudesse ignorar aquela ânsia de voltar aos seus velhos hábitos de viajante, havia aspectos em seu âmago que ainda persistiam em ditar-lhe o comportamento.

Nunca poderia admitir que amava ela. Por mais que soubesse, e fosse uma verdade que ele gritava de todos os jeitos, absolutamente, sem vergonhas e sem reservas, falar aquilo em voz alta seria admitir que ela o tornara humano.

E aquilo ele não era.

Nascera em toda a glória de Gallifrey, era um Senhor do Tempo. Vivera e ainda viveria mais vidas do que Rose jamais conseguiria imaginar. Ela poderia viver o resto da vida dela com ele, mas ele não poderia viver o resto de sua vida com ela. Essa era sua maldição.

Por isso, ele ainda tentava se ater a qualquer lógica restante em sua mente. Qualquer juramento que fizera a Gallifrey. Qualquer lembrança do seu dia mais sombrio. Não deveria interferir, ele sabia. Não podia se render tão facilmente.

O problema era que ela tomara seu coração e sua mente, e sua compaixão o preenchera completamente. Ele era um Senhor do Tempo, e era cheio de paixão.

Por isso o Doutor estava confuso. Era muitos fatores a serem considerados.

*

Por que será que quando um homem constrói uma parede, o homem seguinte precisa imediatamente saber o que está do outro lado?”

– Tyrion Lannister, A Guerra dos Tronos -

O livro de Lady Edith descansava na cabeceira de Rose. Era como se ele a estivesse provocando a abri-lo e descobrir o destino de todos aqueles com quem ela convivia.

Rose engoliu saliva e afastou esse pensamento. O Doutor havia-lhe advertido para não fazer aquilo, e ela não o faria.

*

“Pare todos os relógios, cale o telefone

Evite o latido do cão com um osso

Emudeça o piano e que o tambor surdo anuncie

A vinda do caixão, seguido pelo cortejo.

Que os aviões voem em círculos, gemendo

E que escrevam no céu o anúncio: Ele Está Morto.

Ponham laços pretos nos pescoços brancos das pombas de rua

E que guardas de trânsito usem finas luvas de breu.

Ele era meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste

Meus dias úteis, meus finais-de-semana,

Meu meio-dia, meia-noite, minha fala e meu canto.

Eu pensava que o amor era eterno; estava errado

As estrelas não são mais necessárias; apague-as uma por uma

Guarde a lua, desmonte o sol

Despeje o mar e livre-se da floresta

Pois nada mais poderá ser bom como antes era.”

– W. H. Auden, Funeral Blues -

Era dezembro, enfim.

A neve se acumulava nas telhas das casas, já havia um friozinho no ar, pinheiros cresciam majestosamente e as pessoas já desempacotavam suas roupas de inverno, enquanto começavam a pensar nos presentes de última hora que teriam que comprar.

Faltava um mês para o bebê de Lady Mary nascer, e toda a família decidiu continuar com a sua tradição anual de viajar a Duneagle. Mary insistiu em ir, mesmo grávida de vários meses.

Tom Branson, para não ficar solitário, chamou a Sra. Crawley, o Doutor e Rose para fazerem suas refeições lá todos os dias em que os Crawleys estavam ausentes.

Todos se divertiram. A prosa vinha facilmente, e o Doutor não relutava em tratar os empregados como seus iguais. Isso gerou desconforto no início, pois todos pensavam que o Doutor não sabia como se portar, mas o que acontecia era exatamente o contrário: ele sabia se portar, e escolhia fazê-lo assim. Isso abriu espaço para enorme simpatia entre o Doutor e os trabalhadores (com exceção de Carson, que achava tal conduta imprudente). Além dos próprios empregados, Branson e Isobel Crawley aprovavam esse comportamento mais humano.

Foram todos pegos de surpresa quando Lady Mary voltou da Escócia às pressas, pronta para ter seu bebê prematuramente.

Seu marido viera logo atrás.

E fora aí que uma sucessão de mal-entendidos culminou numa tragédia.

O Doutor e Rose estavam na vila, isolados. Não sabiam de nada. Viram apenas certa movimentação no hospital, depois o Doutor observou à distância Matthew entrar em seu carro e partir, apressado, em direção a Downton.

Ele nunca chegou ao seu destino.

Não deveria ter dirigido. A emoção era muito grande para que isso acontecesse. Estava indo rápido demais. Sentindo-se como um deus. Como se tivesse engolido uma caixa de fogos de artifício.

Não prestou atenção à via, não viu um caminhão vir em sua direção. Tentou desviar, mas capotou e foi esmagado pelo peso do próprio carro. Ficou deitado no chão frio, enquanto filetes de sangue escorriam pelo seu rosto e acabavam com qualquer futuro que pudesse ter.

O Doutor e Rose souberam do ocorrido dez minutos depois. A notícia se espalhou rápido.

*

Agora vejo sinais todo o tempo

Que você não está morta, você está dormindo

Eu acredito em qualquer coisa que te traga de volta para casa pra mim”

– Bloc Party, Signs -

Rose fora checar a TARDIS, que estava escondida no meio do bosque. Era a única coisa que conseguia fazer naquele momento. Matthew Crawley estava morto, e a dor era enorme.

Não haviam contado para sua esposa. Ela não aguentaria.

Rose se encostou na porta da cabine. Deixou-se escorregar, suas pernas desfaleceram. Seu peito estava pesado, seu rosto começava a arder. Ela estava sozinha.

Não precisou fazer esforço algum para chorar: pensou imediatamente no homem bondoso que lhe cumprimentava todo dia e lhe ajudara a conseguir emprego em sua firma. Uma pessoa tão boa, tão cheia de sonhos, tão jovem, jazendo morta no solo frio, enquanto as pessoas que amava seguiam inconscientes do ocorrido.

Rose chorou, e chorou muito. Surpreendeu-se com a própria dor e com cada soluço dolorido que escapava de sua boca. Não queria ver ninguém. O que era precioso se fora.

Naquele momento, a TARDIS abriu suas portas, como que magicamente. Rose levou alguns segundos para analisar o que estava acontecendo, mas sentiu que a TARDIS não respeitava seu luto.

– Máquina estúpida! Agora você decide funcionar! Agora que já nos afeiçoamos... – Ela não conseguia. Voltou a chorar.

A TARDIS piscou suas luzes, e Rose tentou se recompor.

– Me desculpe, eu sei que você não tem culpa. É que alguém... Alguém muito jovem...

Antes que ela pudesse voltar a falar, a TARDIS fez com que apenas uma das luzes se acendesse. Rose fitou o estranho fenômeno, curiosa. A TARDIS nunca havia feito aquilo antes. A loira conteve suas lágrimas, e olhou para onde a TARDIS queria que olhasse.

A jovem abriu uma das caixas que o Doutor guardava sob o chão. Tentou não bisbilhotar. Aquilo era do Doutor, extremamente pessoal.

Mas, à sua frente, estava um bilhete. Rose não precisou pensar muito para ver que aquele era o já mencionado bilhete deixado em 1953.

Doutor,

Você vai voltar para Downton Abbey. Mas não agora: espere o sinal.

Rose franziu a testa. Não havia nada que já não sobre aquele bilhete. Ela cuidadosamente olhou o verso, e foi então que notou, numa caligrafia pequena e surrada, os seguintes dizeres:

Por Daniel Crawley, filho caçula de Matthew Crawley, Oitavo Conde de Grantham.

Rose piscou, surpresa, não conseguiu entender.

Depois, com um aparecimento de dúvida e de possível esperança, saiu da TARDIS em disparada e correu o mais rápido que pôde de volta à sua casa. Estava sem ar quando chegou, e, depois do que pareceu ser uma eternidade, achou o estimado livro de Lady Edith.

Abriu-o, olhou os nomes dos capítulos, ordenados por datas. Folheou avidamente as páginas pertencentes a 1921.

Em 1921, apenas um ano depois da morte de Sybil, nasceu meu sobrinho, George. George nasceu dias antes do Natal, mas era esperado somente em janeiro. Minha irmã Mary deu à luz grávida de oito meses, e por sorte nada deu errado no parto. Meu cunhado, Matthew, estava absurdamente feliz com a chegada de seu filho. Ele parecia quase brilhar quando o vi segurando George no hospital. Ele estava tão feliz que não confiara em si mesmo para dirigir o carro que deveria nos buscar em Downton, e pediu a um bom amigo da família, Dr. Smith, para dirigi-lo em seu lugar. Tudo deu certo e fomos ver o futuro Conde, ainda careca, na maternidade.

Não deixo de pensar que a chegada de George aconteceu no momento mais propício possível. Todos tentavam seguir em frente depois que Sybil partiu, e William antes dela. A verdade era que todos precisávamos de uma luz no fim do túnel, algo para nos animar, e o pequeno George cumpriu esse papel muito bem. Era uma boa companhia para a jovem Sybbie e fazia seus pais imensamente felizes.

Rose não pôde se conter. Era um misto de alegria desenfreada e alívio e confusão. Matthew viveria. Todos os sinais estavam lá. Ainda viveria muitos anos, seria, como Edith colocara, absurdamente feliz. Rose quis dançar de felicidade, mas depois começou a se perguntar como ele podia estar morto.

Juntou os pedaços do quebra-cabeça e as coisas começaram a fazer sentido.

Matthew estava morto porque o Doutor não oferecera a carona que deveria ter oferecido. Rose não tinha certeza se o Doutor sabia que deveria ter feito aquilo: muito provavelmente não.

A TARDIS não queria sair dali porque tinha um propósito. A máquina queria que Rose descobrisse tudo aquilo – por qual outro motivo a teria deixado entrar e lhe mostrado a localização do bilhete?

Só faltava um enigma ser solucionado: o que os apagões tinham a ver com tudo aquilo?

Havia momentos mágicos, em que um instinto primitivo de Rose gritava dentro dela e ela agia conforme esse sentido. Sentira-o quando pegara o livro na Biblioteca Nacional em 2015, e agora sentia-o de novo.

Ela devia correr de volta para Downton Abbey.

O fim do meio

“Ninguém disse que seria fácil

É uma pena nos separarmos

Ninguém disse que seria fácil

Mas também não disseram que seria tão difícil

Oh, me leve de volta ao começo”

– Coldplay, The Scientist –

Rose enfim chegou a Downton, ofegante. Decidira não tentar a entrada principal, e sim a de serviço. Daquele jeito poderia evitar a família naquela hora difícil.

Bateu à porta, e esperou. São Longuinho, se você fizer a pessoa certa abrir a porta, eu dou quantos pulinhos você quiser, pelo amor de Deus.

Suas preces foram atendidas, e uma jovem franzina que ela já conhecia lhe atendeu.

– Sra. Smith? – Daisy, a assistente da cozinha, estava boquiaberta. – Você não prefere usar a entrada principal?

– Não. As pessoas estão sofrendo lá, e eu queria evitar isso.

– Como posso te ajudar? – Ela arregalava os olhos, surpresa.

– Primeiro me deixe entrar, por favor.

Daisy assentiu prontamente e Rose se deparou com o humilde salão dos empregados.

– Daisy, você precisa confiar em mim. Em mim e no Dr. Smith. – Rose disse. Esse devia ser um bom começo.

– Eu gosto do Dr. Smith, Sra. Smith. – Daisy disse inocentemente. – Ele é sempre bom comigo.

– Eu não sabia que vocês tinham contato.

– Oh, desculpe. É que ele sempre vem aqui nos dar oi quando pode. – Daisy explicou, suas mãos parando de se ater a nós. Ela estava relaxando.

– Ele é realmente gentil. – Rose corou.

– Você também é, Sra. Smith.

– Obrigada, Daisy. Onde estão todos? – Rose arqueou uma sobrancelha ao notar a falta de movimento naquele lugar que costumava ser extremamente agitado.

– Bem, Sra. Smith. Aqueles que estão de folga estão descansando, e todos estão um pouco ocupados com os... Acontecimentos recentes.

Rose estudou bem a expressão da menina. Ela mostrava mais confusão do que pesar.

– Sra. Smith. – Daisy estufou o peito, reunindo coragem para falar. – Eu tenho um segredo. Você pode me ajudar, por favor?

Rose assentiu, incrédula. O segredo de Daisy teria algo a ver com a morte de Matthew Crawley?

Daisy olhou ao seu redor, para ter certeza de que ninguém estava espionando. Depois falou para Rose segui-la, e ela por fim abriu a porta de uma pequena sala no final do corredor.

– O que é isso?

– Um armário de vassouras.

– Daisy, por que você...

– Um momento, Sra. Smith. – Daisy pediu, antes de acender a lâmpada relutantemente. Ela fechou a porta, depois encarou Rose e mordeu o lábio inferior.

Com mãos tremedeiras, ela tirou um pano que cobria uma espécie de espelho. Rose achou estranho. Por que alguém colocaria um espelho num armário de vassouras?

Então contemplou com mais atenção, e abriu a boca, chocada.

– É como um espelho. Só que ele está... Ao contrário. – Daisy constatou, fitando seu próprio reflexo. – Se eu deixar um objeto cair, o espelho o mostra voltando à minha mão. É como se ele estivesse voltando no tempo.

Rose fitou Daisy, com olhos arregalados.

– Alguém mais sabe disso, Daisy?

– Não. Só eu preciso entrar aqui. Eu até gosto.

– E por que de repente você decidiu me mostrar isso?

– Porque eu estou confusa. – Ela disse, antes de agarrar a mão de Rose e puxá-la na direção do espelho.

Rose sentiu como se estivesse caindo. Era uma sensação etérea, provocava um frio na barriga. O vento engoliu seu rosto e ela se deixou levar, sentindo o corpo de Daisy ao seu lado.

Finalmente caíram do outro lado. Rose se levantou e viu que o mundo do espelho era como uma dimensão paralela. Estendia-se muito além do armário de vassouras – ela e Daisy podiam perambular por ali, ninguém as notaria.

Rose ficou emocionada. Estavam todos indo de volta para o começo.

Os ponteiros dos relógios retrocediam. Os flocos de neve flutuavam e retornavam aos céus. Um olá virava um adeus e um adeus virava um olá. As pessoas voltavam para dentro de suas casas e suas camas quentes.

Foi então que Daisy pegou Rose pelo braço e lhe puxou para ver algo na entrada principal. Boquiabertas, elas contemplaram toda a família Crawley voltar aos seus carros. Com o tempo ao contrário, Matthew ia de costas para seu carro, enquanto o Doutor alegremente assumia o volante.

A marcha foi ressuscitada, e o carro partiu para o hospital. Os rostos sorridentes do Doutor e de Matthew nunca deixaram a visão das meninas.

– Veja, Sra. Smith. Era esse trecho em que o Sr. Crawley deveria ter morrido. Mas aqui ele ainda está vivo, o Dr. Smith está dirigindo. As histórias não batem, isso nunca aconteceu antes.

– Daisy, eu acho que já sei o que deu errado. Eu vou precisar da sua ajuda para consertar.

– Qualquer coisa pra trazer o Sr. Crawley de volta, Sra. Smith.

*

“Eu só estava analisando números e figuras

Montando o quebra-cabeças

Questões da ciência, ciência e progresso

Não falam tão alto quanto meu coração

Diga-me que me ama, volte e me assombre

Oh, e eu corro para o começo

Correndo em círculos, perseguindo as caudas

Voltando a ser como éramos”

– Coldplay, The Scientist -

– Doutor?

– Rose?

Ela não aguentou e correu para lhe dar um abraço muito apertado. Ele a abraçou de volta, tentando confortá-la e se confortando com a sensação de segurar o corpo dela.

– Oh Rose, eu sinto muito.

– Doutor, eu descobri algumas coisas. Você tem que acreditar em mim, tudo bem?

– Sempre.

– Você cometeu um erro. Você devia estar com Matthew quando ele saiu do hospital e foi buscar a família em Downton Abbey.

– Rose, eu não tenho culpa. Coisas assim acontecem...

– Não, Doutor. Agora, não fique bravo comigo. Eu queria ficar sozinha quando soube da notícia e fui pra TARDIS, o único lugar que eu sabia que não teria ninguém. Ela está funcionando, Doutor. Ela queria que nós ficássemos aqui para resgatar Matthew!

– Não estou entendendo.

– Ela nos fez ficar aqui por tantos meses pra que nos apegássemos a ele. Quando voltei pra lá, ela me fez achar isso aqui. – Rose entregou-lhe o pequeno bilhete, já um pouco molhado devido ao suor de sua mão.

Os olhos do Doutor se arregalaram.

– Isso não é possível. – Ele constatou, petrificado.

– Então eu fui checar o livro que Lady Edith escreveu. Ou escreverá.

– Rose, eu te disse para não fazer isso! Pessoas podem morrer, o tempo pode ser danificado!

– Mas é exatamente isso, Doutor! Matthew morreu porque não sabíamos que deveríamos salvá-lo! Mas olhe o livro!

Ela insistiu, e ele relutantemente leu o trecho que ela indicou. Seu queixo caiu.

– Mas agora... A morte dele... Nós mexemos nos eventos. A morte dele provavelmente está fixada. – Ele enxugou a testa com as próprias mãos, esfregando seus olhos, cansado.

– Doutor, eu te conheço bem. Eu tenho mais uma prova pra te mostrar. Então você vai salvar Matthew Crawley, e ele vai vir pra casa, e ele vai viver por muitos anos.

Rose se permitiu segurar a mão dele, confiantemente. Levou-o para Downton, e lá bateu à porta da entrada de serviço. Daisy estava a postos e prontamente atendeu.

O Doutor se permitiu ser levado pelo espelho. Ele ficou sério, emocionado, encarando sua própria figura alegremente voltar no tempo.

– Rose. – Ele virou-se e a olhou de cima a baixo. – Eu não posso salvá-lo.

– Mas você precisa!

– Daisy, você se importaria de deixar eu e a Sra. Smith às sós por alguns momentos? Nós vamos te chamar de novo quando terminarmos.

– Claro, Dr. Smith. – Ela fez uma cortesia e saiu.

– Rose, eu quero salvá-lo, eu quero muito, mas... – Ele virou-se de costas, não queria encará-la.

– Doutor, se você não salvá-lo vai criar um paradoxo. Eu aprendi um pouco do que você me ensinou, sabe? Os apagões estão acontecendo porque as realidades estão entrando em conflito! – Rose cuspia informações, tentando fazer com que ele a olhasse na cara, ao invés de ela ficar falando com as costas do Senhor do Tempo.

– Eu sei. Já tinha solucionado isso. Só nós dois sentimos porque só nós dois estamos fora do nosso tempo de nascença. – Ele ainda não queria olhá-la. Não conseguiria.

– Esse mundo, esse espelho, ele está tentando se corrigir porque esse evento específico está diferente do outro lado. – Rose insistiu.

– Eu sei. – Ele soltou, naturalmente, a voz um pouco sufocada.

– Então por que você não pode salvá-lo, Doutor? Você está quebrando as leis do tempo! Eu entendo que você esteja com receio de salvá-lo porque a morte dele pode ser um ponto fixo, assim como a do meu pai, mas nesse caso a vida dele é um ponto fixo!

O Doutor finalmente virou-se para encará-la, e Rose se surpreendeu ao ver que ele estava com lágrimas nos olhos.

– Rose, ele lutou na guerra.

– Ele fez o dever dele.

– E se ele for um assassino, Rose? Você ainda se importaria com ele?

– Matthew Crawley é um homem corajoso e bondoso. Ele sempre foi simpático tanto comigo como com você, nos ajudou quando precisávamos ficar aqui.

– Você acha que ele não sentia vergonha de estar vivo, quando tantos outros morreram? Ele teve momentos bons, já é o suficiente. Até viu seu filho nascer.

– Mas é de uma crueldade absurda que ele morra agora, depois de tudo que ele sofreu para ficar com Mary!

– Rose, ele...

– Pare de fingir que essa conversa é sobre Matthew, Doutor. – Ela cruzou a distância remanescente entre eles, e fez um carinho na mão dele enquanto estudava seu rosto cuidadosamente. – A mesma força que eu vejo nele eu vejo em você. Você quer muito salvar ele, não quer?

– Quero. – Ele admitiu, enquanto cobriu o próprio rosto com as mãos, com vergonha.

– Doutor, tanto você como Matthew fizeram o que fizeram porque não havia outra escolha. Eu não posso julgar nenhum dos dois, apenas admiro, porque vocês tiveram a coragem de fazer o que devia ser feito. Eu sei que você tem pesadelos, Doutor. Mas não é errado você seguir em frente. Você pode se permitir ser feliz. Deixe tudo ir.

– Eu não consigo.

– Consegue sim. Você é o homem mais corajoso que eu conheço. Deixe ir, Doutor. Você já passou tempo demais se julgando, julgando todos, mas o universo não se importa com justiça. Essas pessoas não precisam de um juiz, Doutor. Seja o anjo delas.

Ele abaixou suas mãos, se permitiu olhar Rose.

– Vocês dois são homens bons, Doutor. Está na hora de trazê-lo pra casa.


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