Ensemble escrita por _TheDarkMoon


Capítulo 1
Mémoire


Notas iniciais do capítulo

Bem, a princípio, achei a temática muito delicada e achei que não conseguiria escrever sobre o assunto. Então, tempos depois, achei em um caderno antigo uma base de história muito compatível com a temática do desafio e senti que tinha que escrever sobre.
Utilizei-me do algo que sabia sobre a AIDS e busquei também no site http://www.aids.gov.br/ para conseguir compreender melhor a situação de soropositivos. Também me foi de enorme utilidade a seguinte cartilha de tratamento de gestantes soropositivas: http://www.aids.gov.br/sites/default/files/consenso_gestantes_2010_vf.pdf .
Aprendi muito redigindo essa história e tentei incluir algumas informações na narrativa. Espero que seja útil para vocês.

De resto, boa leitura.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/666807/chapter/1

Gervais pegou-a no colo e ela observou seu rosto através de suas próprias lágrimas. Havia preocupação nos traços finos de seu amigo. Ainda lhe parecia estranho chamá-lo de outra forma. Ele o abraçava com dedicação e nada dizia, deixando que Émeline desabafasse e ela sentiu-se grata por isso.

Ela nunca pensara que viveria naquela casa, não daquele jeito. Sua vida mudara definitivamente por todo o seu descaso. Mas preferia pensar que o passado era o menor de seus problemas. Tinha um futuro pela frente e isso a assustava.

– Eu suportaria um! Pelo menos um! Mas não os dois ao mesmo tempo! – chorou.

Já fazia três meses desde que descobrira os incidentes, mas não era tão fácil se habituar. Decidir ter um filho não é algo fácil. E é ainda mais difícil quando se descobre simultaneamente que é soropositiva. Émeline não era assim tão responsável quanto pensava ser. As responsabilidades se acumulavam em suas costas e os horizontes pareciam se fechar a sua frente.

Gervais sentara-se no sofá branco ainda com ela no colo, quase a embalando. A sala parecia-lhe um hospital, e mesmo que, talvez precisasse daquilo, ela não queria olhar em volta. Também não queria fechar os olhos e olhar dentro de si. Seu corpo tremia com os soluços e parecia frágil, mas não se comparava minimamente ao seu estado emocional. Aquela imagem preocuparia qualquer um que conhecesse Émeline minimamente. Ela estava confusa, nervosa, cansada. Não sabia o que fazer, o que sentir, e sua mera existência lhe deixava em um estado de nervos que não conseguia descrever. Limitou-se a chorar.

Aquele era para ser um momento feliz, mas, contraditoriamente, só fornecia choques de realidade para a moça. Eles acabavam de voltar do cartório, onde tinham realizado uma pequena cerimônia de união civil. Eméline usava um vestido de gala roxo, Gervais um belo terno, seus pais lágrimas nos olhos. Seus padrinhos e madrinhas eram antigos amigos que se afastaram, mas por falta de opção tiveram que chamá-los. Sentia-se mal por isso. Havia certa tristeza conformada no ambiente. Não sonhara com casamentos, mas se sonhasse com um, certamente não seria daquela forma.

Émeline sentia-se penalizada não apenas por estar em um momento de imensa dificuldade para si própria, mas também por levar Gervais consigo. Estava completamente perdida e não suportava o peso em seus ombros.

– Gervais... – soluçou. – Eu não vou aguentar.

Ele respirou fundo.

– Nós vamos. Juntos.

****

Émeline acordou sentindo-se tão amassada quanto os lençóis. Ergueu o corpo, desanimada, e viu que não vestia mais seu vestido de casamento, mas que seu corpo estava gentilmente coberto por um lençol branco. Lembrava-se agora que adormecera chorando no colo de Gervais e que ele provavelmente deixara-a vestindo apenas as peças íntimas para se sentir mais confortável.

Logo, ele entrou no quarto.

– Bom dia. – ele entregou-lhe um suco de laranja e um pão com geleia em um prato. Não era uma bandeja, flores, ou uma recepção colossal. Era desajeitado, mas sincero. – Pensei que estaria com fome.

– Não muito. – mas mordiscou mesmo assim. – Você já comeu?

– Já, mas eu posso comer de novo. – ele deu de ombros e se sentou na cama.

Tocou os cabelos loiros da moça e parecia perguntar com os olhos se ela estava bem. Não estava, não importava o quanto quisesse estar. Ela ajeitou os cabelos e desviou o olhar, pensando que deveria estar muito feia com o ar matinal.

– A gente podia ir lá no campo. Não é a lua de mel perfeita, mas acho que vai ser bom.

– Pode ser.

Ele assentiu e saiu do quarto. Émeline não se sentia disposta, mas não queria transformar aquilo em um inferno para Gervais. Ele estava se esforçando, mais que ela, na verdade. Ele não era soropositivo. Ele não tinha nem certeza se era pai de seu filho. E, no entanto estava ali com ela. Não era justo que ela não se esforçasse por ele.

Terminou de comer, pegou uma roupa na mala ainda não desfeita e tomou um banho. Lavou seu corpo com cuidado, passando os dedos inseguros sobre a barriga que só agora começava a crescer. Pediu desculpas mentais ao serzinho que estava dentro dela e sem pensar mais sobre isso, finalizou seu banho.

Jogou alguns documentos e moedas na bolsa e encontrou-se com Gervais na sala.

– Pronta?

Ela assentiu e deu-lhe o braço. Saíram da casa. Émeline parou para olhar para a construção onde morava agora. Tinha as portas de madeira e trepadeiras nas paredes com pintura descascada. Quando era mais jovem, sempre debochou daquele lugar quando, na verdade, só o achava interessante. Ao lado, ficava um conjunto de outras casas, onde Gervais morara pouco tempo antes. No final da rua, moravam os pais de Émeline, e do outro lado, o campo esportivo.

Andaram até lá, onde foram cumprimentados pelo estranho administrador do lugar. Era um espaço público, mas era muito organizado pelas mãos do homem queimado de sol que se recusava a admitir que envelhecia.

– Há quanto tempo não vejo os meus antigos frequentadores! – ele cumprimentou-os. – Fico feliz que tenham voltado. Parece que quando não estão aqui fica tudo mais parado. Ouvi dizer que tinham saído dessa área de Louhans.

– Voltamos. – Émeline tentou sorrir.

– Juntos?

– Sim. Estamos morando naquela casa que não tem dono há anos.

– Juntos? – insistiu.

– Juntos. Ensemble.Casamos. – Gervais foi direto.

– Juntos?! Tão rápido?! Mas isso é maravilhoso. – ele apertou a mão do casal e depois deu batinhas no ombro de Gervais. – Fico muito feliz. Muito feliz. Vi-os crescer... – seu olhar se perdeu, mas voltou rapidamente. – Não que isso faça muito tempo, não é?

– Não faz, senhor Guillaume.

– Me chame de Touissant, por favor. É meu nome! É meu nome! – ele disse fazendo Gervais rir brevemente. - De qualquer forma, aproveitem a estadia e voltem sempre.

Ele saiu andando e falando sozinho. Ele não sabia. Isso tranquilizou Émeline. Talvez fosse possível começar uma vida nova. Ainda que tivesse vivido quase toda a sua vida naquele pedacinho da França, as coisas só começaram a ficar ruins depois que saíra de lá. Fora atraída de volta para seu trecho de infância de Louhans, aquele trecho que poderia ser qualquer lugar do mundo, mas era só seu. Nunca deveria ter saído dali.

Caminharam até a parte coberta da associação esportiva, onde fugiriam do sol que já começava a lhes esquentar a cabeça. Sentaram-se na arquibancada lado a lado e ficaram olhando algumas crianças brincarem na piscina. Fora ali que eles se conheceram. Gervais tinha acabado de se mudar e Émeline, como uma menina sociável, se aproximara dele com os cabelos molhados e um sorriso.

– Veio com algum parente e te deixaram aqui? – ela tentou adivinhar.

– Falaram que eu devia tentar conhecer a associação esportiva. – deu de ombros. – Não há muito o que fazer aqui.

– Não há muito o que fazer aqui?! – seus olhos se arregalaram. Tinha o bom humor de uma menina de quatorze anos que não conhecia problemas. – Tem piscina, campo de futebol, basquete, vôlei, pracinha, lugar para comer. Tem um monte de gente legal! Eu me aproximei de você por livre e espontânea vontade! Como pode não ter o que fazer? Vem.

Ele era um pouco mais velho que ela e estava surpreso com a hospitalidade. Coisas de cidade pequena. Não apenas isso. Coisas de Émeline. Era a pessoa mais simpática que conhecera a sua vida toda.

A garota guiou-o por todo o associação esportivo, inscreveu-o em alguns esportes, questionou sua rotina, descobriu que tinham amigos em comum e passaram o dia conversando. Dali construíram a forte amizade que tinham.

– Será que ele vai gostar de nadar? – Gervais fez com que Émeline despertasse de seus devaneios pelo passado.

– O quê?

– Será que ele vai gostar de nadar? – repetiu, referindo-se ao bebê.

– Eu não sei... – ela não gostava de tocar no assunto. Mas era tudo sobre o que Gervais queria falar.

– Por que você não volta a nadar?

– Estou fora de forma. – ela sorriu levemente. – Por que você não volta a treinar vôlei?

– Se você voltar, eu volto.

– Não sei se é uma boa ideia.

– Émeline, temos que tentar. É uma vida nova, mas colocar algo que nos fazia bem no passado pode nos motivar. – Gervais não era um homem de muitas palavras, mas escolhia as certas.

– Tudo bem.

Ele sorriu, incentivando-a, e foram juntos até a sala de administração, onde fizeram suas respectivas inscrições. Depois, voltaram a caminhar um pouco e pararam na praça central, onde compraram um lanche e sentaram em uma mesinha de pedra sob um guarda sol.

Passavam horas do dia e da noite naquele lugar. Ela e seus amigos. Brincavam de verdade e consequência e contavam seus absurdos como se fossem as piores coisas do mundo. Não eram totalmente inocentes também. Lembrava-se que o primeiro cigarro que fumara fora uma consequência de uma brincadeira dessas. Parara com o hábito no dia que descobrira que possuía AIDS. Onde estavam seus amigos agora?

Chantal morara consigo durante os tempos que passara fora de sua região natal. Fazia um ano que moravam juntas. Decidiram não fazer faculdade, mas sim trabalhar. Não queriam uma vida muito rica ou cheia de responsabilidades. Para isso, um pequeno apartamento e um bom emprego bastariam.

O inferno na vida de Émeline começou quando sua mãe lhe ligou perguntando se estava tudo bem e há quanto tempo ela não fazia uma consulta médica de rotina. Émeline protestou um pouco, só de implicância, mas acabou seguindo a recomendação da mãe. Acompanhada de Chantal, foi até um bom centro médico e ambas fizeram a tal consulta. Ele escutou o coração das duas, analisou os olhos, a garganta, e depois pediu um exame de sangue completo.

Uma semana depois, Émeline foi buscar o resultado das duas, já que Chantal pegara hora extra no trabalho. O médico dissera que estava tudo bem com a sua amiga, mas quanto a ela...

– O tratamento é bastante competente. A coisa é bem diferente de anos atrás. Você pode perceber isso só pela rapidez desse teste. Há medicamentos antirretrovirais, material técnico e uma equipe de profissionais ótimos que vão ampará-la. – o médico dizia em relação à sua doença, mas Émeline não queria ouvir. Apenas não o interrompera porque ainda estava chocada demais para reagir. – Você compreende?

Émeline não podia nem mesmo olhá-lo nos olhos. O médico levantou-se e pegou um copo d’água para a moça. O líquido escorreu na sua garganta quase como uma pedra quebrando os nós que haviam nela. Depois da sensação de sufocação, ela percebeu que o médico não havia terminado.

– Sei que eu não poderia pedir isso de forma alguma, mas não sei como proceder. Por favor, não se alarme, mas há algo mais. Você está grávida.

E, então, como se tivesse recebido um soco no estômago, Émeline curvou seu corpo e chorou. Chorou profundamente.

O médico abriu a porta e pediu alguns calmantes para a enfermeira, e depois pousou a mão no ombro da moça.

– O seu bebê pode não ter o vírus HIV, acredite em mim. Com o pré-natal e o tratamento adequado a transmissão vertical fica abaixo de 1%.

Émeline tinha dezenove anos. Não estava pronta para ter um bebê. Não estava pronta para lidar sozinha com nada disso. Mas a vida nunca lhe perguntou se ela estava pronta. Ela apenas teria de levar adiante.

Quando chegou ao seu apartamento, entregou o exame de Chantal e dissera que estava tudo bem com elas. A amiga deu uma olhada em seu próprio exame, não entendeu nada, mas se mostrou satisfeita. Porém sua reação mudou ao ver o quão abatido estava o rosto da outra.

– Tem certeza que está tudo bem com você?

– Tenho. Só estou com sono. Acordei muito cedo.

Dali para frente, Émeline perdeu todo seu entusiasmo de trabalho. Ia para seu turno de tarde e à noite na Louhans Station com grande infelicidade e quando estava em casa dormia. Não via mais beleza nas clássicas construções de pedra da cidade ou nos turistas passeando pelas feiras. Queria distância de toda a movimentação.

Chantal notara e decidira fazer algo que elas costumavam gostar muito: convidar todos os amigos para uma festa.

Voltando do trabalho em um sábado, viu seu apartamento lotado. Fumaça de cigarro, bebidas, música, gente para todo lado. Cumprimentou a todos com um sorriso forçado e disse para Chantal que estava muito cansada e preferia dormir. Chantal, então, incitou aos amigos a convencerem-na a festejar com eles. Insistiam, gritavam seu nome, jogavam-lhe bebida alcoólica no corpo em uma brincadeira que naquele momento não havia graça nenhuma. Todo aquele caos enevoava a cabeça de Émeline e lhe apertava o peito. Conteve seus impulsos o máximo que pôde, mas quando Denis puxou-lhe o braço, ela não mais conseguiu.

Chega! – gritou com as lágrimas já escorrendo pela face. – Eu estou morrendo e vocês estão me afundando ainda mais!

– Émeline... – Chantal se aproximou. – Do que está falando?

Eu estou com AIDS, ok?! AIDS! E se eu transei com algum de vocês, acho melhor se tratarem ou vão morrer comigo! – e trancou-se.

Depois daquilo não recebeu mais visitas. Chantal evitou-a. Achava que não era para menos. Era como se vivesse sozinha, como se ela fosse a personificação de um problema. Sentiu que devia ir embora. Ninguém precisava dela e ficariam melhor sem ela. Não haveria mais problemas, olhares, insinuações. Ela só queria deixá-los.

– Émeline? – Gervais chamou-a. – Está tudo bem?

– Acho melhor voltarmos para casa.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

O abandono dos devido a falta de informação e preconceitos é uma das coisas que mais atingem os portadores de HIV. Tal vírus é transmitido principalmente por secreções sexuais e sangue. As chances de transmissão por saliva é ínfima e por contato físico sem essas secreções é nula. Chega de falta de informação! Chega de preconceito.

Até o próximo capítulo. ;)



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Ensemble" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.