Aliso pela milésima vez minha saia lápis, a única coisa que encontrei no meu guarda roupas e que pareceu apropriada para a ocasião. “Vista algo sóbrio, você não quer parecer a mesma menina de 17 anos que ele viu na ultima vez não é?” lembro das palavras de Effie ditas ontem aqui mesmo no meu quarto. Ótimo então uma saia lápis preta com uma camisa laranja claro, sapato preto, maquiagem mínima, cabelo em coque.

- Mamãe? – a ouço me chamando pelo corredor.

- Estou aqui princesa!

- Mamãe o vô Hay acabou de chegar e... uau! Mamãe você está linda, parece àquelas mulheres importantes de filme de amor.

- Obrigada pequena, agora venha aqui, comporte-se – advirto enquanto arrumo seu cabelo revoltado em um pequeno rabo – obedeça Effie, e nada de exagerar nos doces, eu bem sei o que vocês duas aprontam quando estão sozinhas!

Sorrio ao ver sua expressão de choque. É claro que eu sei tudo que minha pequena filha faz longe de mim. Dou-lhe um beijo demorado na bochecha e saio de casa trancando tudo enquanto pego minha bolsa e a mochila dela.

- Ei docinho, é só uma tarde sabia? Parece que a menina vai mudar lá pra casa! – Diz Haymitch quando me vê com toda a bagagem.

- Bem que você gostaria não é? Eu conheço seu plano de levar Cecilie pra você para sempre. – um sorriso escapa nos lábios dele, como se dissesse, “sim eu a levaria, porque você é teimosa”

- Vovô, cuidado com a mamãe hoje, ela colocou essa roupa chique e ganhou poderes de adivinhar tudo que a gente faz escondido.

- Com ou sem poderes vamos logo que eu quero estar de volta aqui ao entardecer.

Logo após deixamos Cecilie com Effie na casa de Haymitch pegamos a estrada interestadual que nos levara em 3 horas para Capitol, a megalópole do nosso estado. Uma cidade que sempre me assustou, principalmente depois que Cecilie nasceu, cheia de pessoas correndo de um lado pro outro, carros, e avenidas intermináveis, além de um ar carregado de fumaça e poeira que faz meus olhos arder.

Penso na intimação que carrego na minha bolsa e meu coração dói. No sábado fará 3 meses que o Sr. Mellark e sua família morreram no maior e mais trágico acidente que Campina tem conhecimento. Ele deixou um único herdeiro, o filho querido que foi embora da pequena e pacata cidadezinha do interior para ganhar o mundo. Peeta Mellark. Um homem poderoso, influente que usa seu poder para ajudar pessoas necessitadas e tem inúmeros projetos sociais, é o mais jovem senador eleito, todos dizem que muito em breve ele será nosso presidente.

Enquanto as arvores passam ao nosso redor, eu me permito lembrar um Peeta que apenas sua família e alguns poucos amigos conhecem. O menino pequeno, com cabelo cacheado e loiro, de pele clara e sedosa que nem todo barro do mundo poderia cobrir e os olhos azuis tão claros e limpos, tão profundos que tinha o adorável hábito de ler minha alma.

- Ei docinho, preparada? Nós chegamos. – anunciou Haymitch tirando-me dos meus devaneios.

- Hay, o que será que significa isso? Eu sei que não tenho nada a temer, mas sinto meus nervos em frangalhos com as possibilidades.

- Querida, não se precipite em julgamentos e suposições, vamos entrar lá e descobrir porque a sua presença foi exigida para leitura do testamento do velho Mellark, ok?

Suspiro pensando nisso. Quando voltei com minha filha para Campina, eu fui obviamente motivo de fofocas por toda parte. “Saiu para fazer faculdade de volta dois anos depois com o diploma nos braços”. Eu engoli todo meu orgulho na época e procurei emprego em todos os lugares possíveis, onde não precisariam de mão de obra especializada em nada porque naquela época eu só sabia mesmo trocar fraldas e fazer mamadeiras, mas assim que o pai de Peeta soube da minha situação, ele me propôs trabalhar na padaria de atendente e ao longo dos anos eu aprendi quase tudo que podia com ele, apesar de inicialmente sem jeito eu me esforcei para que a minha filha tivesse orgulho de mim. Mas nunca em um momento da minha vida eu poderia imaginar-me presente na leitura do seu testamento.

Entro no prédio sentindo Hay andar do meu lado, obviamente eu reconheceria Peeta em qualquer lugar afinal seu rosto é estampado em cada esquina das cidades de todo o estado, mas sinto-me tímida e deprimida ao pensar que ele nunca mais me viu, e eu não tenho a aparência mais bonita e arrumada em comparação com as mulheres maravilhosas que vejo pousar ao seu lado em fotos. Somos guiados a uma pequena sala de espera que para meu alivio está fazia. Começo a morder minhas bochechas de ansiedade, e paro quando sinto gosto de sangue na minha língua, alcanço uma revista de economia para parecer importante caso ele chegue de repente. Os mais longos 20 minutos da minha vida passam quando finalmente ouço meu nome ser chamado para a sala do outro lado. Levanto-me depressa e olho para Haymitch buscando uma resposta do que fazer.

- Eu posso acompanha-la? – Ele diz para a mulher vestida impecavelmente em um terno verde mar diante de nós.

- Claro, por favor, entrem por aqui.

Eu não sei o que esperava da leitura de um testamento, mas digamos que a sala simples mobilhada com armários e uma mesa de jantar pra doze pessoas me surpreenderam. O cheiro de madeira polida invadiu meu nariz fazendo-me sentir um pouco em casa, e eu estava próximo de me sentir relaxada quando o cheiro de colônia masculina fez meu corpo inteiro retesar.

- Desculpe pelo atraso Annie, eu estava atendendo uma ligação importante.

- Claro Sr. Mellark, por favor, feche a porta.

Procurei sentar ao lado de Haymitch e vi pelo canto do olho quando ele contornou a mesa para sentar na nossa frente, em nenhum momento ele nos olhou e nem dirigiu a palavra até estar perfeitamente sentado, então ele demorou um segundo com o celular e olhou para Haymitch e depois para mim e mais uma vez para Haymitch.

- Haymitch, meu velho amigo, que bom te ver! – disse estendendo a mão enquanto Hay sem hesitar estendia a sua e eu senti a força do aperto que deram.

- Peeta, é um prazer encontrar você. Parabéns pela eleição.

- Oh, eu sei que todos em Campina votaram em mim, eu aprecio muito.

Aprecia? Este com certeza é o Peeta senador falando, não o nosso amigo, não o garoto que eu conheci e parti o coração há anos atrás. Finalmente encontro seu olhar me avaliando e minha reação natural é ficar vermelho escarlate.

- Katniss. – apenas meu nome com um suave balançar de cabeça acompanhando. Um olhar frio e penetrante como se sua vontade real fosse gritar e me pedir para sair dali.

Eu não tenho muita certeza se Peeta sabia do meu trabalho na padaria, ele nunca havia colocado os pés em Campina desde que saiu aos 17 para cursar Direito e começar sua carreira impecável e de sucesso na politica.

- Boa tarde senhores! – Disse um homem aparentemente idoso, porém vigoroso que eu já tinha visto antes na padaria, Sr. Snow, o advogado da família - Agora que estão todos reunidos devemos começar a leitura do testamento do Sr. Evans Mellark. Como bens o Sr. Mellark possuía uma casa na Rua Primavera, 450 lado B em Campina assim como um estabelecimento comercial nomeado Padaria Mellark, localizado na Avenida Beira Mar, 20 também no município de Campina. Além disso, o Sr. Mellark possui investimentos e poupança no Banco Panem S/A com um capital total disponível de cinco milhões de dólares.

- O meu pai com essa quantia guardada? Impossível! Eu saberia.

- Sr. Mellark, por favor!

- Perdoe-me, podem prosseguir.

“Que meus herdeiros encontrem neste testamento, motivos para seguirem em frente com o mesmo amor que tendo eu na minha vida cheguei até aqui. Deixo meus bens distribuídos entre meus herdeiros diretos, Katniss Everdeen e Cecilie Everdeen por encherem minha vida de tantas alegrias ao longo dos anos, e por toda dedicação a nossa família”.

- Pare! – o choque estava estampado no rosto de Peeta e assim eu imaginava que no meu também! – como exatamente você entrou para este testamento? E quem é Cecilie?

- Eu não sei... ela é minha filha e nós...

- Eu não quero que ela tenha nada da minha família, este testamento está errado!

- Sr. Mellark, este é o testamento assinado por seu pai e sua mãe na minha presença. Se me permite falar-lhe como advogado da família e como alguém que esteve presente na vida dos seus pais nos últimos 7 anos, Katniss e Cecilie eram consideradas, amadas e tratadas como membros da família. Goste ou não, este foi o desejo dos seus pais, e seus irmãos sabiam e estavam de acordo! Agora se me permite continuar... – ele disse e eu me permiti olhar para Peeta, ele estava corado de raiva, mantendo um olhar frio e mortal no Sr. Snow, um olhar que desejava esmagar o pobre homem e picar todo o testamento em pedaços irreconhecíveis.

“Todos os pertences pessoais do Sr. Mellark que constam dentro da casa acima mencionada será passado imediatamente para seu herdeiro direto. Os pertences de sua esposa inclusive joias de família que estiverem dentro e fora do cofre são herdados por Katniss Everdeen.

A casa e a padaria serão divididos em partes iguais pelos dois beneficiários do testamento, meus herdeiros diretos e Katniss Everdeen, com a condição de manterem as atividades do comercio e a propriedade da residência por um período mínimo de 5 anos. Após este período, caso tenham interesse em desfazer dos bens, os mesmos devem ser imediatamente repassado para a herdeira Cecilia Everdeen.

O valor dos investimentos e a poupança estão congelados a partir do momento em que este testamento for lido e acordado, tendo como única herdeira até completar a maioridade Cecilie Everdeen. Salvo se o anexo I entrar em vigor. “O anexo I é indisponível para qualquer um dos meus herdeiros.”

Lembro-me ainda como se fosse hoje o dia que fiz o teste de gravidez, escondida no banheiro da faculdade, quando olhei para aqueles dois riscos cor-de-rosa eu senti meu mundo virar de cabeça para baixo, nem mesmo o ar que tão facilmente entrava nos meus pulmões eu conseguia encontrar. E é exatamente como eu me encontro agora. Em choque.

Assinamos um termo que demonstra que estamos cientes do conteúdo do testamento e logo somos dispensados, tenho vontade de correr e me esconder até que eu possa entender realmente como isso aconteceu. Porque o Sr. Mellark me deixou tanta coisa? Enquanto observo a chuva torrencial que cai aguardando Haymitch buscar o carro, ouço passos apressados pelo corredor de onde viemos.

- Sr. Mellark, devo lembra-lo que é uma figura pública! – alerta uma voz e eu me encolho imaginando que o que quer que ele faça será direcionado para mim.

- Annie, eu sei me controlar ok? Você não acha isso no mínimo estranho, tem alguma coisa nesta história e eu vou descobrir! Ei, Katniss, espere! – ele diz, como se eu tivesse escolha.

Meu corpo fica imóvel pela tensão, nem mesmo se eu quisesse me arriscar a correr pela chuva eu conseguiria, espero paciente sem olhar pra trás. Esperando ele aparecer diante de mim e sou arrancada do meu momento pelas suas mãos fortes virando-me de uma vez para encara-lo.

- O que você pensa que está fazendo Peeta? – meus ombros ardiam um pouco, mas não o suficiente para explicar as lágrimas que brotaram de repente.

- O que você fez Everdeen? Explique-me como exatamente você e sua filha entraram no testamento do meu pai?

- Eu não sei Peeta, eu estou confusa com relação a isso também! Eu não sei o que te dizer.

- Aposto que você sabe de alguma coisa sim! Eu vou descobrir o que é! Estarei voltando pra Campina na semana que vem e vou descobrir os podres dessa história.

- Não existem podres Peeta, eu levo minha vida honestamente! – agora eu tremia de raiva e as lágrimas rolavam soltas – Veja com seus advogados se não tem jeito de desfazer isso! Eu não quero nada além do meu emprego na padaria!

- Pois até isso eu tirarei de você se eu puder.

Dito isso ele virou-se e andou calmamente até desaparecer pelos corredores, e sei o que Peeta quer. Ele quer me destruir por vingança. Ele quer que eu pague pela coisa mais absurdamente ridícula que eu já fiz em toda minha, e que me arrependo todos os dias.'