O Contador de Histórias escrita por themuggleriddle


Capítulo 4
O Imperador Sem Morte




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Fazia um ano desde que Tom deixara Hangleton e, com a ajuda de Evert, se estabelecera mais ao norte, não muito longe de uma vila costeira, Robin Hood’s Baye. O bruxo havia lhe auxiliado na construção de uma casa, uma pequena cabana de pedra no topo de um rochedo ao lado do mar, o lugar perfeito aos olhos de Riddle: dali ele podia ouvir o barulho das ondas, ficava perto da praia e não precisava mais do que uma caminhada para chegar até a vila mais próxima para conseguir comida e afins.

Durante esse um ano, o principal trabalho de Tom foi tentar se tornar conhecido, fosse empregando os conhecimentos de cura que Evert havia lhe ensinado ou apenas contando histórias e cantando pelos cantos do vilarejo. No final, descobriu que as histórias e a música acabavam ajudando no trabalho das ervas: não fora apenas uma vez que vira alguém ficar muito melhor depois de ouvir um bom conto ou uma boa música. Isso sempre o fazia se lembrar de como sua mãe lhe contava histórias quando ele estava doente e como aquilo ajudava.

Tom considerou o primeiro mês depois da partida de Evert como um dos piores desde que viajara no tempo. Ele estava sozinho pela primeira vez na vida, sem os pais ou empregados ou amigos, e aquilo era agonizante. Não era incomum acordar no meio da noite com pesadelos ou passar dias jogado na cama sem conseguir fazer nada. O que o fazia sentir-se melhor era, no final, sempre o mar... Sua mãe sempre dizia que o mar fazia bem à alma, que ele entendia os sofrimentos e ajudava os outros a superá-los. O mar, depois daquele primeiro mês, se tornou o seu melhor amigo: ele estava sempre ali, fosse com o barulho das ondas, com a maresia ou com a cor acinzentada da água.

E ele sempre lhe trazia os melhores presentes: conchas, pedrinhas e pedaços de madeira os quais usava para diversas coisas, fosse para algum amuleto ou apenas para encher uma jarra de vidro. E ele sempre o ouvia quando Tom precisava conversar.

Agora, volte meia ia até a vila, como Evert fazia, para ver se alguém precisava de sua ajuda e também para contar e ouvir histórias. Era engraçado pensar que agora as pessoas paravam para ouvi-lo sem considerar que tudo o que saía da sua boca era loucura - apesar de desconfiar que boa parte dos moradores daquele lugar o achavam meio estranho.

“Pode contar sobre a Rainha Maria Morevna de novo?”

“Já não contei essa na semana passada?” perguntou Riddle, arqueando uma sobrancelha e rindo ao ver uma menina de cabelos negros o seguindo enquanto ele caminhava até a taverna do vilarejo.

“Sim, mas queria ouvir de novo.”

“Na verdade, eu já contei essa na semana passada e também umas três semanas atrás... Você já deve sabê-la de cor, Beatrice.”

“Mas o senhor conta melhor!” ela falou, torcendo o nariz. “O senhor sabe como são os lugares.”

“E eu já falei para vocês como eles são.”

“Mas é melhor ouvindo o senhor falando deles,” a menina continuou insistindo. “Os meninos insistiram para ouvir do João e o Pé de Feijão, mas a da Rainha Morevna é melhor! João só deu sorte de escapar do gigante, a Rainha Morevna era inteligente mesmo.”

Tom parou por um momento, observando o olhar determinado da garota, antes de rir baixo, sacudindo a cabeça, e se abaixar para ficar da altura dela.

“O que me diz de um acordo?” ele pediu, vendo-a arquear as sobrancelhas. “Eu conto a história dela na semana que vem e lhe trago um desenho do palácio de Koschei.”

Beatrice o olhou por um longo momento, com os olhos estreitos, antes de concordar com a cabeça.

“Mas promete que vai contar!” ela pediu.

“Prometo,” disse Tom, rindo, antes de apontar para um grupo de crianças que estavam a alguns metros deles. “Você devia ir, seus amigos a esperam.”

A menina logo saiu correndo para se juntar aos outros, deixando Riddle com passagem livre para ir até a taberna.

O homem chegara a conclusão de que, se não fosse pelas histórias que ouvia em tabernas, estes estabelecimentos seriam terríveis. Todas tinham um aspecto que beirava a claustrofobia e todo o barulho, calor e iluminação baixa fazia com que Tom se sentisse como se estivesse no meio de um ataque de pânico. Mas era lá que ouvia as melhores histórias, era lá que os viajantes paravam para comer e conversar com os locais.

Não era preciso muito para saber quando havia algum viajante interessante dentro da taverna, era só ver onde as pessoas se aglomeravam. Naquele dia, isso acontecia em um canto distante do balcão, onde uma rodinha de homens escondia o recém chegado que cantava uma canção para animar o início da noite. O que fez o coração de Riddle acelerar daquela vez, no entanto, não fora a perspectiva de ouvir mais sobre o mundo pela boca de outra pessoa, mas a língua na qual o viajante cantava.

Encolhendo-se para conseguir passar por entre os aldeões, Tom sentia quase como se aquelas palavras o atraíssem com magia: rudes de início, mas logo se tornando suaves; palavras fortes, com as beiradas mal lapidadas, mas que carregavam mais sentimentos que a frase mais delicada do inglês. Ele reconheceria o russo em qualquer lugar, mesmo com eventuais diferenças quando comparado com o russo que ele havia aprendido em casa e na escola.

Quando conseguiu se aproximar o suficiente para ver o cantor, não conseguiu não sorrir de forma boba. Era um homem jovem com cabelos e olhos negros, assim como as vestes que usava (as vestes que vira apenas em fotos do baile a fantasia de 1903). Ele parecia ter saído de um dos contos com os quais estava tão acostumado e, para aumentar a sua surpresa e encantamento, assim que ele terminou a música que cantava, iniciou outra que era tão familiar aos ouvidos de Riddle que fora impossível não acompanhá-lo baixinho.

O viajante pareceu escutar que havia mais alguém cantando com ele e logo ergueu o olhar para o grupo que o observava. Ele sorriu de lado ao encontrar Tom ali no meio, mas continuou a canção até esta terminar.

“É a primeira pessoa que encontro que reconhece uma de minhas músicas, senhor,” o homem falou com um sotaque pesado, acenando para Riddle se aproximar e fazendo com que este sentisse o rosto esquentar ao perceber que se tornara alvo dos olhares dos outros. “Qual o seu nome?”

“Beedle,” ele falou, andando até onde o outro estava sentado.

“Posso ser curioso e perguntar da onde conhece tal canção, Beedle?” o viajante perguntou, erguendo a caneca de cerveja para ele. “Aceita um pouco?”

“Meus pais costumavam cantá-la,” Tom explicou. “Não, obrigado. Sua música me fez lembrar o quanto eu sinto falta de vodka.”

“A pior parte da minha viagem é não ter uma boa vodka em mãos,” o homem falou. “Aliás, Koschei Bessmertny, às suas ordens.”

A expressão que tomou conta do rosto de Riddle devia ser muito engraçada, a julgar pelo jeito que o outro o encarou e, depois, riu. Mas não podia fazer nada se aquele homem acabara de se apresentar como um dos personagens das histórias que lera quando criança e que agora contava para os outros.

“Conhece o meu nome, hm?” ele perguntou. “O que mais conhece sobre mim?”

“Algumas coisas,” disse Riddle.

“Que tal me contar essas coisas enquanto caminhamos por ai? Ouvi dizer que a praia aqui é incrível,” disse Koschei, levantando-se e indo até o balcão para deixar sobre este algumas moedas prateadas. Os outros homens que antes de agrupavam em volta dele para ouvi-lo cantar, agora reclamavam baixinho de serem privados de seu entretenimento. “Vamos lá, moi druk.”

Tom apenas o seguiu. Como poderia não seguir? Koschei Bessmertny realmente parecia ter saído de um conto de fadas russo, com as vestes negras cobertas de bordados prateados formando desenhos de pássaros de fogo e cavalos magníficos. Além disso, ele parecia fazer todos os outros se encolherem tanto por respeito quanto por receio. Era incrível, era como ver suas histórias tomarem vida logo na sua frente.

“Trouxa?” o homem perguntou, assim que desceram até a praia, fazendo com que Tom se surpreendesse de novo.

“Aborto,” ele mentiu. Era sempre complicado não se denunciar nessas horas, mas, com o tempo, acabou pegando o jeito de sempre entregar a resposta falsa automaticamente.

“Deixe-me dizer uma coisa, moi druk... E, por favor, não tome isso como uma ameaça! Mas eu já vivi muitos e muitos anos,” ele explicou, parando de andar por um momento para observar o mar. Naquela noite, as nuvens haviam decidido dar uma trégua e a lua cheia grande e amarelada criava um bonito reflexo nas ondas. “Já fui enganado por muita gente, tantas e tantas vezes que consigo sentir o gosto da mentira quando ouço uma... Então, Beedle, vamos começar do início: qual o seu nome?”

“O senhor já sabe,” ele falou. “Beedle.”

“Nomes são coisas poderosas, sabia? Entendo a razão para você não querer revelar o seu tão facilmente, mas Beedle... Beedle não combina, não é um nome que se molda à você,” o homem falou, voltando a olhar o outro.

“E que nome o senhor acha que... Se molda à mim?”

“Thomas,” Koschei falou automaticamente, fazendo com que o outro arregalasse os olhos. “Sim, já conheci muitos Thomas, Tomáz, Fomá e todas as suas variantes. Você é sempre um deles.”

“Como assim sou sempre um deles?” perguntou Tom, franzindo o cenho. “Você é um bruxo?”

“Eu já disse: vivi muitos e muitos anos,” o homem falou. “E sim, sou isso mesmo. E você não é um aborto e nem um bruxo, mas irei manter isso em segredo. Só quero uma ajudinha: sabe onde posso encontrar outros como eu? Ouvi dizer que havia uma vila deles por perto, mas encontrei apenas essa aqui.”

“Fica mais ou menos sete milhas ao sul. De vez em quando eu vou até lá ou alguém de lá vem até mim,” disse Riddle. “E aqui você consegue encontrar pelo menos duas famílias mágicas.”

“E você.”

“Como o senhor mesmo disse, eu não sou um de vocês,” o homem falou, encolhendo os ombros. “O que veio fazer por aqui? Está bem longe da Rússia.”

“Estou a procura de uma amiga. Se você a ver, diga-lhe que Koschei a está procurando para sentar e conversar um pouco,” o bruxo falou, sorrindo de leve enquanto voltava a caminhar.

“Nem mesmo sei quem é que o senhor procura.”

“Acredite em mim, Tom, se você a ver, irá saber de quem se trata,” ele riu. “Ouvi algumas pessoas falando sobre você quando cheguei aqui. Dizem que conta belas histórias... Até mesmo histórias sobre um feiticeiro do leste que escondeu a própria morte em um ovo.”

Riddle arregalou os olhos e parou de andar por um momento. É, talvez não tivesse sido algo tão bom conhecer o próprio Koschei, o Imortal, depois de contar as histórias dele tantas vezes.

“Meus pais as contavam-“

“Ora, largue de ficar assim preocupado!” Koschei riu, esticando uma mão para agarrar o ombro do outro e o puxar para voltarem a andar. “O ovo já foi a razão para eu viver muito, mas há tempos que só ele não poderia me segurar por aqui... Sabe, há muitas formas de se tornar imortal e uma delas é através das histórias. E, como você já sabe, a magia é uma coisa engraçada que faz coisas loucas...”

“Quanto mais histórias contam sobre você, mais você vive,” murmurou Riddle. Aquilo fazia tanto sentido que parecia ridículo... Tanto no mundo mágico quanto no trouxa, as histórias mantinham as pessoas vivas. Não era de se surpreender que algo tão simples e eficaz pudesse fazer a magia criar algo como uma imortalidade real.

“Incrível, não?” o bruxo perguntou. “Imagine a minha surpresa ao chegar em um vilarejo minúsculo na costa da Inglaterra e descobrir que as crianças brincavam fingindo ser eu enquanto contavam sobre a vez em que a minha Masha roubou a minha morte! Eu tive que rir, mas confesso que fiquei... Lisonjeado.”

“A morte escondida é verdade, então?” perguntou Tom, quase sem perceber que a pergunta havia pulado de seus lábios.

“Claro. Como disse, a magia é capaz de muitas coisas... Algumas muito belas enquanto outras são terríveis,” Koschei explicou, abaixando-se para pegar duas metades de uma concha que ainda estavam grudadas uma na outra, apesar de já aberta. “A magia nos permite tirar um pedaço de nós mesmos e esconder em outro lugar. Apenas os mais desesperados fazem isso, não é algo bonito, é algo que dói e nos assombra pelo resto de nossas vidas... No início dos tempos, eu estava desesperado,” ele confessou, enquanto fechava as duas metades da concha. “Me arrependi depois, quando a minha morte foi encontrada pela primeira vez, mas, naquela época, a minha história já era muito conhecida e a magia já estava feita: apesar da quebra do ovo não me matar mais, parte de mim continuava lá, arrependido ou não, e essa era a parte que os outros podiam controlar.”

“E... Você foi o único a fazer isso? Esconder a própria morte?”

“Claro que não,” o bruxo falou. “Muitos outros fizeram a mesma coisa, mas a maioria foi corrompida pela magia negra. Acredito que foi Masha quem me salvou disso... Sabe quando dizem que o amor é a magia mais poderosa que existe? Infelizmente, é verdade. Ou felizmente. E foi isso que me fez sentir remorso ao mesmo tempo que foi o amor que me fez viver para sempre de outra forma.”

“Koschei, o Imortal, sempre procurando por uma princesa que o amasse,” murmurou Riddle.

“Koschei, o Imortal, encontrou uma rainha que o amava,” o homem sorriu largamente. “Mas ela não era como as outras princesas. Ela era teimosa e forte, ela foi atrás da minha morte, ela encontrou um Ivan... Deuses, como eu odeio os Ivans! Ela me traiu e me amou, ela fez com que os outros contassem a nossa história e, assim, nos tornou imortais, cada um a sua maneira.”

Tom apenas o encarou enquanto continuavam a caminhada pela areia. Agora conseguia perceber que o rosto do homem parecia mudar dependendo de como a luz da lua caía sobre ele: de vez em quando parecia mais jovem e, um segundo depois, bem mais velho.

“Se não fosse pelo amor dela, o que teria acontecido com você por ter retirado a sua morte?” perguntou Riddle.

“Arrancar uma parte de si nunca é bom, você sempre arranca mais do que o necessário. Algumas pessoas enlouquecem, outras perdem a capacidade de raciocínio, mas quase todas perdem a capacidade de amar,” ele explicou. “Às vezes é por isso mesmo que fazem isso: querem parar de sentir e, para isso, arrancam fora o coração.”

“Pensei que fosse a morte-“

“A morte vai embora junto.”

“E tem como conseguir juntar tudo de novo? Quero dizer, você disse que conseguiu...”

“Como já disse: remorso,” Koschei falou.

“E o que acontece com essas partes que são tiradas foras?” Tom perguntou. “Nas histórias, a sua morte está no ovo...”

“Elas ficam guardadas em objetos e, assim, não podem ser machucadas. Mas são como se fossem outros seres: uma vez que você coloca parte de uma vida dentro de um ovo, aquele ovo terá vida própria também... Ele é parte seu e parte outra coisa completamente diferente,” o bruxo explicou. “Esse é o perigo. Você nunca sabe o que essa nova vida vai fazer.”

Riddle não fazia a menor idéia de aonde estavam indo, apenas continuou caminhando, alternando entre olhar o mar e o homem ao seu lado. Se perguntava quantos reis Koschei já vira cair, quantas pessoas já haviam passado pela sua ilha de Buyan, quantos bruxos e trouxas ele já havia conhecido, quantas princesas ele já havia tomado como esposa, quantas rainhas o haviam traído... Quantas vezes a sua história se repetiu para torná-lo imortal, para ele conhecer exatamente o que iria acontecer e aceitar isso de braços abertos.

“Acho engraçado como as pessoas gostam de fingir ser outras,” disse o bruxo, finalmente quebrando o silêncio entre eles. “Você, um trouxa se passando por um bruxo que finge ser trouxa, usando um nome falso e tudo mais, mesmo sabendo que nunca será esse personagem: na história do mundo, você é o trouxa chamado Thomas que se envolveu demais com magia sem nem perceber. Esse é o seu papel e é uma pena que, dessa vez, não teve os outros personagens necessários para tornar o seu conto algo bom.”

“Você fala como se soubesse o que me aconteceu,” murmurou Tom. “É um pouco assustador.”

“Não sei o que aconteceu com você em especial, mas já ouvi falar sobre outros Thomas envolvidos com magia. Todos eles com uma curiosidade maior do que a lógica, o coração maior do que a razão e a sorte maior do que o juízo.”

“Sempre faz isso com as pessoas? Advinha a vida delas para intimidá-las?”

“Ora, não quero lhe intimidar.” O homem riu e a risada dele parecia se confundir com o som das ondas. “É só o meu jeito de lidar com as coisas. Depois de ver tantas pessoas durante a vida e saber do destino de muitas delas, é impossível não deixar algo escapar.”

“Se você já conheceu tantos Toms como eu,” Riddle começou a falar, parando de andar e olhando o mar. “Tem algum conselho para me dar?”

O bruxo suspirou. Aquilo não parecia ser algo bom, aos olhos de Tom, mas apenas continuou em silêncio, esperando alguma resposta.

“Você, moi druk, tem mais força do que imagina,” ele finalmente falou. “Você é o trouxa teimoso que consegue abrir uma excessão nas leis da magia sem nem perceber. Lembra do Ivan que chegou até Buyan nadando nas suas histórias? Você é como ele.” Koschei riu, apoiando uma mão no ombro do outro e apontando para o céu. “Esse aqui não é exatamente um conselho meu, mas tudo bem: não pare de olhar pelas estrelas. Elas parecem ser atraídas por você, mal’chik.”

***

Beatrice estava contente com o fato de Tom ter cumprido a sua promessa de lhe contar a história de Maria Morena de novo, além de ter ganhado um desenho do palácio de Koschei Bessmertny. As outras crianças, também pareciam satisfeitas - Riddle ainda não entendia como elas conseguiam ouvir a mesma história contada por ele tantas vezes sem ficarem entediadas - e ir até a taberna para ver se conseguia ouvir algo novo foi tudo o que sobrou para o homem fazer depois de entregar as infusões que precisava entregar e contas as histórias que havia prometido contar.

Os adultos do vilarejo o conheciam mais como curandeiro do que como contador de histórias (os dois títulos ainda eram estranhos à ele), então fora uma surpresa quando um homem - Dimas Ashdown, uma das pessoas das quais Riddle desconfiava ser um bruxo a julgar pela sensação engraçada que sentia na ponta dos dedos sempre que estava perto do homem - simplesmente pediu para que ele contasse uma história. Foi automático os olhares irem parar em Tom, fazendo-o sentir vontade de se esconder debaixo da mesa para evitá-los.

“Meu filho disse que o senhor conta belas histórias,” disse Ashdown, erguendo a caneca de cerveja como se quisesse incentivar o outro.

“Eu realmente não sei se elas seriam do agrado de todos,” murmurou Tom. Uma coisa era contar histórias para crianças, outra era para adultos, que já entendiam bem o mundo e muitas vezes desdenhavam a fantasia.

“Pare com isso e conte logo, homem,” disse o dono da taverna. “A noite está parada mesmo.”

Riddle observou todos os homens ali - e a filha do dono do lugar, que estava ocupada limpando as canecas e pratos -, tentando pensar em algo bom para contar. Por fim, lembrou-se da conversa que havia tido com Koschei à beira do mar... Bruxos que tiravam suas mortes e seus corações e acabavam perdendo a si mesmos.

“Há muito houve um br- nobre... Um nobre muito rico e belo que não se conformava com o fato de que seus amigos ficavam bobos e leves quando se apaixonavam. Determinado a não agir daquela forma, o rapaz recorreu à... à magia para cuidar de tal problema,” Riddle começou a contar. A história que se desenrolava em sua cabeça envolvia um bruxo, mas ainda tinha um pouco de medo de apresentar personagens que expressassem tanto magia. Ainda mais magia negra, algo mais real do que as loucuras que inventava para as histórias russas. “O nobre nunca ficou bobo por amor. Na verdade, ele nunca se apaixonou... Os anos passaram e muitas moças tentaram chamar a atenção dele, mas nenhuma delas tocava o seu coração. Aos poucos, os seus amigos iam envelhecendo e casando e tendo filhos, e o nobre percebeu que eles ficavam ainda mais bobos com isso tudo. E ele permanecia frio e racional.”

“Um dia, no entanto, o nobre ouviu dois de seus servos falando sobre si: um deles dizia que sentia pena da forma como o homem nunca achara amor, enquanto o outro zombava, afinal, como alguém com tanto dinheiro nunca conseguira arranjar uma esposa?” o homem continuou. “Irritado, o nobre decidiu que iria se casar. E não se casaria com qualquer mulher: a sua esposa deveria ser a mulher mais bela, aquela que inspiraria inveja e desejo em qualquer outro homem, além de ser tão rica quanto ele. Anos passaram-se até ele encontrar tal moça e, quando o fez, o nobre empregou todas as palavras belas e doces que conhecera apenas por meio de poemas e músicas para conseguir conquistá-la. A jovem, apesar de fascinada com tudo, ficava receosa, pois conseguia sentir a frieza por debaixo de toda a cortesia.”

“Na noite do casamento, durante a enorme festa, o nobre continuava a cortejar a sua nova esposa até que ela lhe disse que realmente estava lisonjeada com todos os elogios, mas que tudo aquilo seria muito mais emocionante caso soubesse que ele realmente tinha um coração,” disse Tom, e tentou não rir quando viu a filha do estalajadeiro parecer segurar uma risada. “O nobre então pegou-a pela mão e levou-a até as masmorras de seu castelo, dizendo que iria provar à ela que ele tinha, sim, um coração. No cômodo mais protegido e mais bem escondido, ele lhe mostrou um baú e, ao abri-lo, a moça quase desfaleceu: lá dentro havia um coração murcho e escurecido, coberto de longos pêlos negros e grossos.”

Todos que ouviam fizeram uma careta de nojo, o que fez com que Riddle mordesse o lábio inferior para conter um sorriso satisfeito.

“A moça logo implorou para que ele colocasse aquele coração de volta ao lugar certo e, assim, o homem puxou uma adaga, abriu o próprio peito e colocou o coração no lugar...” ele continuou, vendo as expressões enojadas se intensificarem. “A esposa ficou emocionada e o abraçou, dizendo que agora sim eles poderiam ser felizes. Mas o coração peludo havia ficado tempo demais preso, tempo demais sem sentir o cheiro de flores, sem ouvir uma voz musical, sem sentir um toque carinhoso e tudo isso foi intenso demais para ele.”

“Os convidados notaram a ausência de seus anfitriões depois de algumas horas e saíram à procura destes. Ao encontrarem a masmorra mais protegida e mais bem escondida, eles se depararam com a imagem do corpo da noiva no chão, o peito dela aberto enquanto o noivo segurava o seu coração - ainda vermelho e brilhante - na mão, implorando para que o coração peludo em seu peito desse espaço para aquele novo órgão,” disse Tom. “Mas o coração estava forte demais e se recusava a sair. O homem então pegou a adaga de novo e cortou fora o coração peludo. Por alguns segundos, ele ficou ali parado, triunfante, com um coração em cada mão, feliz por não estar mais sendo controlado pelas emoções, mas isso não durou muito e logo ele caiu, morto, junto com a sua esposa.”

O silêncio que tomou conta da taverna surpreendeu Riddle, assim como as expressões assustadas nos rostos daqueles que o ouviam.

“Eu... Nunca contei essa para as crianças, nem pretendo, para falar a verdade,” o homem disse, preferindo deixar aquilo claro para os outros. “Achei que talvez preferissem algo diferente.”

“E quem ficou com a fortuna dele?” perguntou um dos homens, parecendo interessado.

Era engraçado como os adultos ficaram o enchendo de perguntas da mesma forma que as crianças faziam. Alguns queriam saber do castelo, outros queriam saber como aquele homem sobrevivera sem um coração, um outro ainda ficou curioso sobre a aparência da jovem da história. Apenas depois de algumas horas foi que Tom conseguiu sair da taverna, depois de ouvir as teorias mais malucas sobre a sua própria história. A maioria dos homens que estavam lá dentro continuaram a noite de bebidas e risadas, o único que decidira encerrar o entretenimento junto com ele fora o Sr. Ashdown.

“Ele era um de nós, não?” perguntou Ashdown assim que se viram alguns metros longe da taverna. “O nobre da sua história.”

Riddle observou o homem que caminhava ao seu lado com a postura meio encolhida, como se quisesse se camuflar nas sombras. Apenas mencionar magia, mesmo da forma mais sutil possível, já fazia com que certos bruxos ficassem apreensivos.

“Sim,” o homem falou, sorrindo fraco. “A moça também.”

“Faz bem mais sentido,” disse Dimas. “Posso contar aos meus filhos?”

“Claro... Quero dizer, não é como se uma história pudesse me pertencer,” disse Tom. “Apesar de que achei que talvez fosse meio forte...”

“Magia é exatamente assim, Sr. Beedle,” Ashdown falou. “Ela é linda, mas também consegue ser sombria e cruel. Sua história trata da magia verdadeira e nossas crianças precisam entender que ela também pode ser tão ruim quanto é boa.”


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Notas finais do capítulo

1) Koschei Bessmertny: Koschei, o Imortal, como já foi mostrado no capítulo anterior, é um personagem recorrente em contos de fada russos. Ele, junto com a Baba Yaga, assume o papel de vilão na maioria das histórias, sempre sequestrando princesas e tals. A história em que ele tem mais destaque é uma que envolve uma rainha guerreira, Maria Morevna, que o captura e o mantém como refém. Uma releitura dessa história pode ser vista no livro Deathless, da Catherynne M. Valente;

2) Moi druk: meu amigo, em russo

3) Mal'chik: garoto/menino, em russo

4) Robin Hood's Baye: hoje em dia conhecida com Robin Hood's Bay é uma vila de pescadores em North Yorkshire, perto de Whitby;

Mais um capítulo com muita viagem em relação a como magia funciona e algumas referências à "a águia e a raposa", que também tem uma participação do Sr Koschei :B

Informação inútil do dia: sabia que existe um aspecto radiológico de raio-x de tórax chamado 'coração peludo'? Acontece quando tem um infiltrado em vasos nas entradinhas dos pulmões e isso acaba borrando o contorno do coração e faz parecer que ele está peludão.

Como sempre, reviews, gente! Eles são lindos e dão um estímulo ainda mais lindo na hora de continuar :))



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