O Contador de Histórias escrita por themuggleriddle


Capítulo 3
O Contador de Histórias




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“Você vai ficar quietinho aqui hoje,” disse Evert, indicando o canto ao lado da lareira para o caldeirão, que ficou parado por um momento, antes de saltitar até o local.

Fazia sol de uma maneira que Tom não se lembrava de ver em Little Hangleton fazia já algum tempo. Ou talvez só não se lembrasse daquele clima porque normalmente se trancava em casa sempre que o céu ficava mais limpo... De qualquer jeito, o céu estava azul e todo o mato parecia mais verde e as flores, mais coloridas. Talvez tivesse sido por esse motivo que Evert decidira ir até a vila naquele dia específico: não havia a chance de chover e as pessoas estariam de mais bom humor.

“Acha mesmo que eu devo ir?” perguntou Riddle, enquanto prendia o broche que segurava a capa no lugar. Se conseguisse chegar em Hangleton sem tropeçar na própria capa, já estava bem.

“Acho. Não vai poder ficar aqui para todo o sempre, apesar de ser boa companhia,” o bruxo explicou. “Precisa ver como é lá fora, aprender a lidar com as pessoas. Não se preocupe, vai ser fácil.”

A caminhada fora longa, mas isso não foi um problema. Com o dia bonito como estava, era fácil se distrair olhando as flores que enfeitavam o caminho, além dos animais que eventualmente apareciam. Foi só quando avistaram a vila que Evert parou e virou-se para Riddle, parecendo mais sério.

“Qual o seu nome?” ele perguntou.

“Beedle,” disse Tom, franzindo um pouco o cenho. Aquele nome ainda não lhe parecia seu, ainda saía estranho de sua boca.

“E o que está fazendo aqui?”

“Visitando você,” ele respondeu.

O bruxo sorriu, assentindo com a cabeça, antes de continuar a caminhada.

O local ainda tinha o ar de vilarejo do interior com o qual estava acostumado em Little Hangleton, apesar de, pela localização, aquilo ali um dia vir a ser Great Hangleton. Por onde passavam, as pessoas levantavam as cabeças para olhá-los. Evert atraía a maioria dos olhares gentis, enquanto ele atraía os desconfiados.

“Nós ficamos aqui,” o bruxo explicou, apontando para o que parecia ser uma taberna. “O dono já me permitiu usar o lugar faz algumas estações.”

A taberna, por dentro, era escura e abafada. Os clientes pareciam já estar esperando a visita de Evert, já que logo se atiraram para cima deste, fazendo diversos pedidos: um queria a cura para um resfriado, outro queria que seu ombro parasse de doer, uma mulher implorava para algo que facilitasse uma gravidez, enquanto outra sussurrava algo sobre atrair um rapaz.

Era incrível ver como o bruxo guiava a situação: atrás de uma das mesas, com suas ervas e unguentos organizados sobre esta, Evert atendia cada um, tentando dar à eles o mais próximo do que eles pediam. De vez em quando um esforço manual um pouco maior era exigido, como quando um rapaz com um ombro deslocado veio pedir ajuda e ele e Tom tiveram que praticamente se pendurarem no braço do desconhecido para fazerem o osso voltar ao lugar.

“Vá descansar um pouco,” o bruxo falou, depois de verem o rapaz com o braço deslocado sair sorridente da taberna. “Eu cuido disso aqui por um tempo. Pode ir conhecer o resto da vila.”

Riddle assentiu, apesar de ainda achar que seria melhor ficar perto de Evert. Se não fosse o ambiente quase claustrofóbico da taberna, teria ficado, mas estava precisando de um pouco de ar fresco, precisava ficar um pouco longe de todas aquelas pessoas. Estava acostumado a viver apenas com os pais, sem muita gente por perto... Multidões sempre o deixavam desconcertado, mesmo que isso se fizesse presente apenas algum tempo depois de já estar no meio de muita gente.

Ver o que um dia seria Great Hangleton fez o homem sentir um aperto no peito, a mesma sensação que tinha enquanto estava prestes a pegar no sono e se lembrava de tudo o que havia acontecido: a morte de seus pais, seu filho, Merope, a viagem no tempo... Tudo parecia tão esquisito e horrível, fazia com que seu coração voltasse a acelerar e com que sua respiração ficasse dificultada, até que ele conseguisse controlar aquelas reações.

O homem viu um senhor sentado na entrada de outro estabelecimento, rodeado de crianças que pareciam entretidas no que ele falava. Decidiu que talvez fosse bom se distrair com algo e talvez ouvir algo alheio fosse ajudar, por isso se aproximou, devagar, até estar perto o bastante para entender que o velho estava contando uma história sobre um dragão e um cavalheiro. As crianças pareciam maravilhadas e não desviaram o olhar até a história acabar.

“E é isso, agora vão! Deixem o velho em paz!” disse o senhor, acenando com as mãos e rindo.

“Mais uma história, Sr. Ecberth!” pediu uma menina, ajoelhando-se e o olhando com grandes olhos brilhantes.

“Não tenho mais histórias por hoje, Abigail, já lhes contei duas,” ele falou, antes de olhar em volta e arquear as sobrancelhas ao ver Tom. “Por que não pedem àquele senhor? Ele veio com Evert, de certo sabe boas histórias.”

Riddle apenas arregalou os olhos ao ver as seis crianças se virarem para olhá-lo, todas parecendo esperar por algo enquanto o velho ria baixinho enquanto se levantava.

“Desculpe por isso,” disse o Sr. Ecberth, ao passar por ele. “Mas realmente não tenho mais o que falar e minha esposa vai me matar se demorar mais. Só conte qualquer coisa e elas ficaram satisfeitas.”

Tom observou enquanto o senhor se afastava, antes de olhar as crianças novamente. Ótimo. Ele devia ter ficado perto de Evert, não devia ter saído de dentro da taberna…

“O senhor sabe alguma história?” perguntou a menina, Abigail, apontando para o banco de madeira encostado na parede de uma casa, onde o velho antes estava sentado.

“Algumas,” o homem murmurou, indo até lá, um tanto hesitante.

Riddle olhou a porta da taberna, esperando um momento para ver se Evert não apareceria ali, mas as únicas pessoas que saíram de lá foram um casal. Suspirando baixinho, o homem sentou-se na cadeira e olhou as crianças. Quem diria que ele um dia voltaria no tempo para o século quinze e acabaria com o cargo de babá temporária.

“Havia um fazendeiro que tinha três filhos. Os dois mais velhos eram fortes e espertos, mas o mais novo, chamado Ivanushka, era meio tolo e distraído. Um dia, o fazendeiro descobriu que algo estava pisoteando o trigo que ele plantava e pediu para que os filhos ficassem vigiando a plantação para pegarem seja lá o que estivesse fazendo aquilo,” Tom começou. Sabia que contos russos normalmente conseguiam ser mais loucos que as coisas normais como Branca de Neve e Cinderella, mas era sempre a primeira coisa que lhe vinha em mente. “Os dois mais velhos pegaram no sono logo no início da noite, mas Ivanushka permaneceu acordado para ver aparecer no campo um belo cavalo castanho acinzentado com uma sela de ouro e rédeas de prata.”

As crianças arregalaram os olhos de um jeito que fez Tom rir baixinho.

“O cavalo disse à Ivan que, caso ele o deixasse em paz, ele iria ajudá-lo a realizar os seus sonhos. Ele disse: ‘Quando precisar de mim, venha até o campo, assobie e chame por Sivka-Burka’,” o homem continuou, sorrindo ao ver uma ou duas crianças murmurarem o nome diferente baixinho, parecendo se acostumar com o som deste. “Então Ivanushka aceitou o acordo e o deixou ir. Um dia, não muito depois do ocorrido, o tsar-“

“O que?” perguntou um menino, torcendo o nariz.

“Tsar, é o mesmo que um rei no leste,” Riddle explicou. “O tsar organizou um campeonato: ele colocou a sua filha mais jovem em uma torre e disse que o cavalheiro que conseguisse saltar até lá a cavalo e pegar o anel da mão da moça, ganharia a chance de casar-se com a princesa. Os irmãos de Ivan foram para a competição e ele, ao ficar sozinho, chamou por Sivka-Burka, que o transformou em um belo príncipe e o levou até o castelo.”

“Quando chegou lá, Ivan tentou três vezes saltar alto o bastante e, na terceira tentativa, conseguiu alcançar a mão da princesa, tirando o anel dela... Mas ele fez isso tão rápido que ninguém viu o seu rosto,” disse Tom. “Ele logo voltou para a sua fazenda e se transformou no pobre Ivanushka outra vez, enfaixando a própria mão para esconder o anel que pegara. Alguns dias depois, o tsar chamou todos os habitantes do seu reino para um banquete, para que o cavalheiro misterioso pudesse ser encontrado... Ivan foi com o pai e os irmãos. Ao final do banquete, sem que ninguém o reconhecesse até então, a princesa passou de mesa em mesa, servindo mel, e pediu para que Ivan tirasse a bandagem de sua mão. Quando ele o fez, ela viu o seu anel ali e declarou que fora ele o cavalheiro vencedor do desafio de seu pai-“

“E o rei deixou que ele casasse com a princesa assim?” perguntou outro menino.

“A princesa aceitou ele?” perguntou uma menina, Abigail. “Mas ele não era mais um belo príncipe!”

Tom encarou as crianças por um longo momento. Realmente, poderia ter escolhido uma história melhor... Aquela realmente era bem sem graça.

“Claro que o Tsar não iria aceitar aquilo,” disse Riddle, estufando o peito e tentando não rir de si mesmo. “Ele propusera o desafio achando que o vencedor seria algum nobre com um dos cavalos mais caros do reino, não o filho de um fazendeiro... A princesa não tinha muito o que dizer a respeito de tudo, afinal, ela tinha que fazer o que o pai mandava, não? Mas, antes que o Tsar pudesse fazer qualquer coisa, as portas do salão foram abertas e ali entrou um homem todo vestido de preto, com uma capa longa e esfarrapada que fazia parecer que ele era um tipo de pássaro enorme e assustador, mesmo que ele não fosse horrível de aparência. O recém chegado atravessou o salão em silêncio, fazendo com que todos os convidados ficassem em um silêncio mortal, amedrontados, até parar na frente do Tsar e da princesa.”

“Quem é esse?” murmurou Abigail.

“Aquele era Koschei Bessmertny, o maior feiticeiro de todos os reinos do leste,” disse Riddle, sorrindo de lado. “Ele havia saído da sua ilha, voado toda a distância até o reino do Tsar-“

“Como é que ele voou?”

“Ele é um bruxo, Peter! Ele deve ter voado sozinho, como o bruxo de Hangleton!” disse Abigail.

“Foi uma bruxa que tirou ele daqui!”

“Ele se transformou em uma coruja e voou até o reino do Tsar,” Tom completou a informação, vendo como as crianças pareciam mais satisfeitas assim. “E ele foi até ali porque estava ofendido de não ter sido convidado para o desafio... Ora, ele conseguiria alcançar o anel da princesa sem nem mesmo precisar de um cavalo! Mas o Tsar não queria saber disso, ele só queria que Koschei fosse embora e os deixassem em paz.”

“Koschei ficou ainda mais irritado com a atitude do Tsar e, antes que pudessem fazer qualquer coisa, transformou-se em uma enorme coruja negra, agarrou a princesa e a carregou janela afora, para longe, para a sua ilha,” o homem continuou. “O Tsar entrou em desespero e mandou todos os homens do reino atrás do feiticeiro: quem trouxesse a sua filha de volta, poderia se casar com ela. E Ivanushka ficou esquecido ali. Depois que todos os convidados foram embora, montados em seus cavalos e armados com suas espadas e arcos, sobraram apenas Ivan e a sua família... Seus irmãos estavam muito irritados com ele, por não lhes ter falado que havia ganhado o desafio, e seu pai, ainda mais irritado por ter deixado um cavalo mágico destruir a sua plantação. Os irmãos dele foram atrás da princesa, mas Ivan ficou em casa outra vez, apenas para escapar durante a noite, chamando Sivka-Burka novamente e pedindo para que ele o levasse até a ilha de Koschei.”

“Meu pai teria me matado se eu deixasse um cavalo destruir a plantação dele...” murmurou Peter.

“É... Bom, os dois atravessaram florestas e montanhas até chegarem nas margens de um lago enorme, o maior lago do mundo! Sivka-Burka então disse que a ilha de Koschei ficava em algum lugar no centro daquele lago e, montado no cavalo, Ivanushka adentrou a água gelada. Ele prendeu a respiração por um momento, enquanto ele e Sivka-Burka estavam submersos, mas antes que precisasse respirar de novo, eles voltaram a superfície e estavam em terra firme novamente,” Tom continuou. “O lugar parecia uma vila como qualquer outra, mas as pessoas eram meio estranhas... Havia belas mulheres que pareciam ser feitas de neve ou flores, que faziam as coisas levitarem ou transformavam ratos em pássaros; havia homens feitos de pedras e musgo, pássaros com cabeça de mulheres, homenzinhos pequeninos com barbas brancas que arrumavam toda a cidade, pássaros com penas feitas de chamas, cavalos que traziam a noite e o dia... Não foi muito difícil para Ivanushka encontrar a casa de Koschei, pois ali ele não era só um feiticeiro, mas sim o próprio Tsar. E o Tsar morava em um belo palácio de paredes brancas e cúpulas da cor do céu: durante o dia, elas eram claras e com manchas brancas como as nuvens; no entardecer, ficavam alaranjadas e então arroxeadas, e a noite ficavam escuras, salpicadas de estrelas.”

“Ivanushka correu até o palácio e assustou-se ao encontrar, no salão, vários outros rapazes: todos muito jovens, como ele, e todos dizendo que estavam ali para levar a princesa embora,” Riddle continuou, tentando não rir da bagunça que criava com a história. “Como ele chegou ao palácio durante o dia, quem estava recepcionando todos os rapazes era uma moça de cabelos loiros e vestido branco, chamavam ela de Pscipolnitsa, a Dama do Dia, e todos os rapazes lhes diziam a mesma coisa: eles se chamavam Ivan e estavam ali para resgatar a princesa. Havia um Ivan moreno e alto que dizia ser um guerreiro, havia um Ivan ruivo que dizia ter vindo montado em um enorme lobo cinza, havia um Ivan loiro com as roupas chamuscadas que havia se agarrado nas patas de um pássaro de fogo... Havia até um Ivan que estava encharcado e que havia nadado até a ilha por conta própria. E Ivanushka, ouvindo todos os feitos dos outros - o rapaz guerreiro era um comandante, o rapaz do lobo era um príncipe que já havia encarado diversos desafios antes, o rapaz do pássaro era o mais corajoso de sua vila, o nadador era o mais teimoso -, ficou com vergonha de se fazer presente, mas acabou apenas erguendo a mão e mostrando o anel da princesa que ainda carregava no dedo.”

“A mulher o olhou de uma forma cansada - já estava irritada por ter que ouvir tantos Ivans com suas histórias loucas -, mas mesmo assim o chamou e o levou palácio adentro, apesar dos protestos dos outros rapazes,” disse Tom. “Ela o levou até outro salão que quase parecia ser feito de gelo e prata: muito maior e mais belo que a sala do trono do seu Tsar... Do outro lado do salão, sentado em um trono, estava Koschei Bessmertny, ainda trajado em roupas escuras, mas parecendo mais jovem e menos irritado. Na verdade, ele parecia um verdadeiro rei ali. Ao lado dele, estava a princesa, com um belo vestido branco e uma coroa de gelo e brilhantes, e ela... Parecia incrivelmente confortável?”

“Como assim?” questionou Peter.

“Ela não parecia assustada. Na verdade, ela estava se portando como uma rainha ali... Nas mãos dela, havia um ovo negro incrustado com pequenos brilhantes, o qual ela acariciava com calma enquanto sorria para o recém chegado, que se apressou para perto deles, sacudindo o anel no ar,” disse Riddle. “A princesa simplesmente pediu para que ele parasse, pois não importava se ele havia chegado até ali pela terra, pelo ar ou pela água, ela não iria voltar para casa e muito menos se casar com ele. Estava bem ali, Koschei não era tão ruim - na verdade, ele era bem quieto e gostava de simplesmente ficar sentado perto dela, ouvindo as histórias que ela contava - e ali ela podia ser uma rainha que realmente fazia coisas... Ivanushka ficou boquiaberto, sem entender o que estava acontecendo-“

“Mas ele é um bruxo! Koschei é um bruxo!” protestou uma das crianças.

“Sim, mas a princesa tinha total controle sobre ele,” o homem explicou, gesticulando com as mãos. “O ovo que ela estava segurando? Koschei certa vez arrancou a própria morte e a escondeu dentro de uma agulha, que ficava dentro de um ovo, que ficava dentro de um ganso, que ficava dentro de uma lebre, que ficava dentro de um baú de vidro enterrado debaixo de um velho carvalho na ilha onde ele morava... Quem conseguisse colocar as mãos na morte de Koschei, tinha total controle sobre ele. E a princesa conseguiu aquilo. Enquanto os Ivans atravessavam o mundo para encontrar a ilha, ela vasculhou o local atrás do ovo, passou por desafios até o encontrar e agora ela tinha total controle sobre o feiticeiro Koschei.”

“Então ela poderia matar ele?”

“Se ela quisesse, sim, mas acho que ela acabou gostando de Koschei... Afinal, ele não era tão ruim, apesar de todo o drama. Mas Ivanushka ficou inconformado, é claro,” disse Tom. “Para tentar consolá-lo, a princesa pediu que lhe fosse dado alguma recompensa por este lhe devolver o seu anel: ele ganhou uma espada e um bom banquete de janta - o qual dividiu com todos os outros Ivans. E Koschei pediu para que dessem alguma coisa para o pobre Ivan que havia nadado até a ilha, algumas roupas novas e um saco de ouro. Ivanushka e os outros Ivans tiveram que voltar para suas respectivas casas, com uma boa história para contar, enquanto a princesa e o Tsar Koschei ficaram reinando em Buyan.”

O homem permaneceu em silêncio enquanto as crianças o olhavam, também sem falar nada. Até que um dos meninos começou a questionar sobre o grande lobo cinza que um dos Ivans usara para chegar até Buyan, enquanto uma menina perguntava baixinho sobre a Dama do Dia. Tom apenas riu, tentando respondê-los e se surpreendendo com o entusiasmo com o qual a sua mistura de histórias foi recebida.

O dia acabou quando Evert finalmente saiu da taberna, parecendo cansado enquanto procurava por Riddle e o encontrava ainda junto com o grupo de crianças. Nenhuma nova história havia sido contada em todo aquele meio tempo, tudo o que o homem fez foi ficar respondendo as perguntas incessantes dos pequenos, que ficaram desapontados quando perceberam que ele teria que ir embora.

“Passou a tarde ali?” o bruxo perguntou, enquanto voltavam para a cabana no meio do bosque.

“Desculpe,” Riddle murmurou. Realmente, havia se perdido no tempo e acabara por deixar o outro sozinho.

“Não se preocupe, Tom,” o homem falou. “Pelo menos conheceu a vila e viu como o negócio funciona. Posso saber o que falou para aqueles pestinhas para eles ficarem tão alvoroçados?”

“Só uma história,” disse Tom, encolhendo os ombros.

“Fique esperto e já vá pensando em outra história para contar da próxima vez,” Evert falou, rindo. “Eles não vão lhe deixar mais em paz.”

***

Realmente, as demais idas até Hangleton sempre contaram com mais histórias: o grupo de crianças aumentou, assim como a exigência delas. Agora, sempre que chegava ao vilarejo, acompanhava Evert no atendimento dos moradores e, depois de um tempo, ia para a praça, onde os pequenos pareciam já o estar esperando. Contava para eles histórias que já conhecia fazia tempo - as velhas Branca de Neve, Bela Adormecida, Princesa e o Sapo -, histórias que ficara conhecendo por causa do amor de seus pais pela Rússia ou histórias que ele acabava criando através de misturas de outros contos. De vez em quando, arriscava cantar algo para eles, afinal, músicas também eram histórias... Era estranho usar música e não ter um piano por perto, mas acabava conseguindo, mesmo que as coisas ficassem meio bagunçadas.

Já havia se passado mais de três meses desde que chegara ali e acompanhar Evert, ocupar-se em contar histórias para as crianças e sair para colher ervas eram as coisas que Tom mais fazia ali por um motivo muito simples: manter-se ocupado o distraía, fazia com que ele se esquecesse de Little Hangleton, de seus pais, de seu filho, do futuro... Quando estava contando sobre Koschei, o Imortal, para as pessoas da vila, ele não era mais Tom Riddle, o homem louco que perdera os pais fazia pouco tempo, mas Beedle, o ajudante do curandeiro que conseguia entreter os outros com histórias. Era ótimo poder esquecer de tudo aquilo durante o dia, apesar de as noites ainda serem repletas de pesadelos, que nem sempre eram espantados pelas xícaras de chá de raiz de valeriana e camomila.

Foi quando estava cravando runas um tanto tortas em pedacinhos de madeira, no final de uma tarde de Outubro, que uma moça apareceu na frente da cabana de Evert. Ela parecia preocupada demais e sem fôlego por conta da corrida enquanto tentava explicar a situação: seus pais e seus irmãos estavam doentes e ela precisava que alguém fosse vê-los. Eles moravam longe da vila e por isso era difícil que alguém conseguisse ir até a taberna quando Evert estava lá... Mas agora o bruxo não estava ali e Tom também não conseguia deixar que a menina voltasse para casa de mãos abanando.

“Não sei se posso fazer algo, mas posso olhá-los para passar as informações para Evert,” disse Riddle, sorrindo ao ver o alívio no rosto da moça.

“Muito obrigada, senhor,” a garota agradeceu.

“Só espere um minuto, vou pegar algumas coisas.”

Depois de deixar um pedaço de pergaminho explicando aonde fora aos cuidados do caldeirão saltitante e pegar a bolsa de couro na qual estava estocando as coisas que considerava útil de levar quando acompanhava Evert, Tom seguiu a moça enquanto ela lhe explicava o que havia acontecido com a família.

“Edward foi o primeiro a ficar doente,” disse a garota, Mary, enquanto eles chegavam a casa que, realmente, ficava mais distante da vila do que ele esperava. “Pouco depois de voltar de Londres.”

O homem acompanhou a moça casa adentro. O local estava quase todo fechado e tudo o que Tom pôde pensar foi em como Ellen, sua amiga enfermeira, entraria em desespero de ver todas aquelas janelas fechadas em um lugar onde havia gente doente. Mary o levou para um dos quartos e, para a sua surpresa, lá dentro não estava apenas uma ou duas pessoas, mas cinco: os pais da garota na cama de casal e mais três rapazes em camas improvisadas no chão.

“Fica mais fácil de cuidar de todos no mesmo lugar,” ela explicou, entrando no quarto e o iluminando com a vela que trazia consigo.

“Quem ficou doente primeiro?” perguntou Riddle.

“Edward,” ela falou, apontando para o rapaz mais velho que estava todo encolhido no chão, coberto até quase a cabeça.

“Edward?” ele chamou, aproximando-se e se ajoelhando ao lado do outro enquanto apoiava uma mão no ombro dele para virá-lo, o que não foi difícil de fazer. “Como está se sentindo?”

O garoto, que não devia ter mais de vinte anos, gemeu em resposta e Tom assustou-se ao ver o rosto deste coberto de pequenas elevações circulares. Franzindo o cenho, o homem afastou a coberta e ergueu a camisa do rapaz, vendo mais bolinhas no abdômen e peito deste.

“Não estava assim antes,” disse Mary. “Ele começou com umas manchinhas vermelhas... E antes disso, era só a febre, a tosse e dores no corpo.”

Riddle começou a sentir o coração acelerar e a respiração querer ficar dificultada. Naquele momento, lembrou-se que não passava de alguém que nunca concluíra uma faculdade e o que estudara formalmente fora apenas sobre Arquitetura... O que sabia de Medicina era o que Ellen lhe ensinava e a anatomia. Não podia fazer nada por aquelas pessoas, principalmente se fosse o que achava que era.

Respirando fundo diversas vezes, o homem foi olhar as outras pessoas: os pais e os outros dois irmãos mais novos tinham manchas avermelhadas pelos corpos, algumas já formando pequenas pápula ou pústulas. As lesões apareciam em todo o corpo, até mesmo nas palmas das mãos e dos pés.

“Eu... Tenho que falar com Evert para ver o que ele pode fazer,” disse Tom, quando finalmente saiu do quarto. “Mas até lá, por favor, abra as janelas, deixe o ar circular. E não fique muito tempo perto deles, não fique... Tão perto,” ele pediu. “A única coisa que sei que pode ajudar eles agora é baixar a febre para melhorar o mal estar. Talvez... Talvez infusão de flor de sabugueiro,” o homem murmurou, abrindo a bolsa e procurando por um potinho cheio de pequenas florzinhas brancas, antes de entregá-lo à garota. “Pode ficar.”

“Obrigada, senhor,” ela falou, segurando o potinho com força, como se fosse a coisa mais importante do mundo. “Muito obrigada.”

“Se você começar a ficar mal também... Tome a infusão, mas tente não ficar tão perto deles. E mantenha as janelas abertas!”

***

“Você entrou na casa deles!? Você entrou em um quarto cheio de gente com varíola?!”

Certo, não esperava uma reação tão forte de Evert depois de contar o que havia acontecido naquela tarde. O homem simplesmente ficara apavorado assim que ele terminou de lhe falar sobre a família adoecida e, certo, fazia sentido, afinal aquilo era contagioso.

“Entrei, mas... Não se preocupe, é sério!” Riddle falou, sorrindo de leve. “Eu não vou pegar.”

“Você ficou pelo menos uma hora lá dentro, um lugar abafado e cheio de gente tossindo e tocando nas lesões... Tom, se você ficar doente, não tenho o que fazer!” ele explicou.

“Se acalme,” ele pediu, erguendo as mãos como se esperasse que aquilo fosse acalmá-lo, antes de tirar o casaco e desfazer o laço que fechava a camisa para poder puxá-la até expor parte do antebraço esquerdo, deixando a mostra uma cicatriz arredondada. “No... Da onde eu venho, os médicos... Curandeiros... Criaram um tipo de tratamento que evita que a doença sequer apareça. Eles colocam o que causa a doença no nosso sangue, assim o corpo pode reconhecer mais rápido e evitar que a doença se instale. Nós chamamos de vacina. Essa cicatriz é da vacina contra a varíola, ou seja, eu não posso pegar, meu corpo já consegue reconhecer o causador da varíola antes mesmo que a doença aconteça.”

O bruxo observou a marca por um momento, antes de se aproximar e tocar a cicatriz com calma.

“Você entrou em uma casa cheia de gente com varíola, saiu de lá bem e vai continuar bem... E tem uma marca diferente no braço,” Evert murmurou, antes de fazer uma careta. “Se aquelas pessoas morrerem e falarem para alguém que você esteve lá, você estará mais encrencado do que eu achei, homem.”

“Como é?” Certo, agora não estava entendendo nada mesmo.

“Quem é que consegue andar por entre os doentes e não pegar a doença? Quem é que é marcado por ser diferente?” o homem perguntou. “Bruxos! Feiticeiros! Essa marca no seu braço? A marca do demônio! Se descobrirem que você foi até lá... Se alguém morrer por lá!”

O resto da noite foi agitado. Evert estava realmente preocupado, andando para lá e para cá, com o caldeirão pulando no seu encalço, enquanto Tom apenas voltou para o seu canto na cama, encolhido e se odiando por ter tido a brilhante idéia de ir até aquela casa sozinho. Devia ter ficado ali, devia ter esperado, devia saber que não era nada da sua conta ir até lá... Agora havia colocado a si mesmo e ao bruxo em perigo.

“Me desculpe,” murmurou Tom, enquanto observava o homem comer um ensopado em silêncio, mais tarde naquela noite. Ele mesmo não havia conseguido colocar no estômago mais do que três colheradas.

Evert ergueu o olhar do prato, observando-o por um momento antes de suspirar fraco.

“Quem sabe eles melhorem,” o bruxo falou. “Quem sabe nem relacionem o que aconteceu à você...”

“Não há nada que possa fazer por eles?” perguntou Riddle. “Quero dizer, magia...”

“Magia não é milagre,” ele explicou. “Posso cuidar dos sintomas, como você já deve ter feito, mas não posso curá-los. Não sei como a nossa magia funciona para evitar que fiquemos doentes com essas coisas.”

“Entendo,” Tom murmurou, olhando rapidamente para o caldeirão, que estava muito quieto. “Posso perguntar uma coisa?”

“Claro.”

“Onde o achou?” o trouxa perguntou, apontando para o caldeirão.

“Ah, era do meu pai,” Evert explicou. “Ele era um curandeiro também. Quando eu era pequeno, ele me dizia que era o caldeirão quem preparava as poções para ele. Depois entendi que na verdade o encanto dele é só pela praticidade de se ter o recipiente das poções perto de você o tempo todo.” O bruxo riu baixo, sacudindo a cabeça. “Antes de morrer, no entanto, meu pai enfeitiçou-o para que ele me azucrinasse caso eu me recusasse a cuidar dos outros.”

“Como assim?”

“Veja bem, eu não era tão... Amigável com trouxas antes,” ele falou, encolhendo os ombros. “Já havia visto bruxos serem queimados ou enforcados por causa da magia e não entendia por que devia tratar das pessoas que nos caçavam. Meu pai sabia disso, então ele me deixou um caldeirão que não pararia de me seguir pulando feito um louco até que eu aprendesse a cuidar dos outros.”

Tom apenas encarou o outro, franzindo o cenho. Bruxos eram estranhos, realmente.

“Estava pensando,” disse Riddle. “Talvez fosse melhor eu... Ir?”

“Ir aonde?”

“Embora,” ele falou. “O episódio de hoje pode lhe trazer muitos problemas e eu não quero repetir isso. Você me ajudou muito, me ensinou muita coisa, e não quero colocá-lo em perigo. E como você já disse, eu não posso passar o resto da vida aqui.”

Evert largou a colher sobre a mesa e ficou em silêncio por alguns minutos, antes de se levantar e ir se sentar ao lado do outro homem na cama. O bruxo ergueu uma mão, tocando a têmpora de Tom por alguns segundos, fazendo com que esse sentisse como se houvesse algo cutucando sua cabeça por dentro, antes de rir fraco e se afastar.

“Sua mente continua forte, isso é bom... Quando chegou aqui, tentei olhar os seus pensamentos e memórias, para entender o que havia acontecido, mas não tinha jeito de entrar na sua mente,” ele explicou. “Isso é bom. Uma mente forte é boa entre os bruxos, ainda mais se quer esconder alguma coisa. Olhe, eu deixo você partir se me prometer uma coisa.”

“Diga.”

O bruxo esticou uma mão para segurar o pulso de Riddle, gerando a reação automática do homem se retesar todo, tentando se conter para não puxar o punho dos dedos do outro. Evert arqueou uma sobrancelha, antes de virar a mão do trouxa para cima, deixando a mostra uma cicatriz reta e longa no pulso dele.

“Você não vai repetir isso,” ele falou, soltando Tom. “Não sou cego, já percebi como você fica... Distante quando não está fazendo nada, já ouvi você acordando de pesadelos. Quanto mais conhecimento alguém tem sobre cura, mais conhecimento tem sobre a morte também. Me prometa que não vai usar isso para se machucar de novo.”

O homem o encarou, sentindo um aperto surgir em seu peito. Queria ter a capacidade de fazer aquela promessa sem culpa alguma, queria ter força para conseguir cumprir aquilo.

“Não posso lhe prometer isso, desculpe,” ele murmurou. “Posso... Posso apenas lhe prometer tentar ao máximo não fazer isso.”


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Notas finais do capítulo

1) Ivan e Sivka-Burka: realmente tem uma história sobre um Ivan que encontra um cavalo mágico chamad Sivka-Burka e consegue casar com uma princesa porque consegue pular e pegar o anel dela, mas, assim como o Tom, enquanto eu lia essa história e passava ela pro word/traduzia, fui ficando "mano, que coisa mais sem graça..." e dai deixei o Tom viajar na imaginação e misturar vários contos que nós conhecemos em uma coisa louca só;

2) Eu vi no hospital dois ortopedistas e um acompanhante tentando colocar o ombro de um paciente no lugar. Era a coisa mais louca que já vi lá dentro... Todo mundo se pendurando no braço do cara;

3) "O bruxo de Hangleton": referência a outro personagem meu da fic "A águia e a raposa", que se passa na época dos fundadores de Hogwarts;

4) Varíola: é uma doença infectocontagiosa causada pelo vírus da Vaccinia e que, na história da humanidade, já matou muita gente (e já foi usada inclusive como arma química contra certas populações, como os nativos americanos que recebiam cobertores de doentes de varíola e se ferravam porque não tinham nenhuma imunidade). A varíola foi erradicada em 1979 graças à vacinação em massa realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS)... Ou seja, antes de ficar falando que não vai vacinar os seus filhos ou que é contra vacinas, por favor se lembre que a gente está livre dessa doença exatamente por causa da vacina e que em breve, quem sabe qual vai ser a próxima doença a ser erradicada? (existe uma previsão de que o câncer de colo de útero vai decair de uma maneira incrível se todas as meninas que tem idade para se vacinarem pelo governo realmente tomarem a vacina, porque irão, junto com isso, proteger os rapazes e parar com a transmissão do vírus do HPV daqui alguns anos :D). Anyway, o quadro clínico da varíola começa como um resfriado e evolui para dores pelo corpo e, então, manchas que depois viram pústulas pelo corpo e que acometem também as mucosas. A transmissão ocorre pelas vias aéreas, ao inalar o vírus. Tirando a vacina (que quando dada em até 3 dias depois da exposição ao vírus, ainda alivia o quadro), não existe tratamento... A única coisa que se pode fazer é aliviar os sintomas até que a doença passe por conta própria. Nem sempre a varíola é fatal, mas o problema é que nessa época da fic, acontecia exatamente o que o Tom viu: muita gente doente amontoada dentro de um lugar fechado. Na verdade, isso continuou por muito tempo e muitas doenças que a gente encontra hoje em dia, continuam existindo por essa mesma razão (ex. tuberculose em presídios). Em 1853, o Reino Unido iniciou a vacinação compulsória contra a varíola e é por isso que o Tom é vacinado. Hoje em dia, se você nasceu antes de 1979, você provavelmente tem a marquinha da vacina... Se foi depois, a marca que você tem é da vacina da BCG (contra tuberculose).

5) Marcas de bruxas: em várias caças às bruxas, existia essa procura por marcas de bruxas. Como a maioria da caça às bruxas se deu na idade moderna, grande parte das informações vêm dai, mas cheguei a ver sobre caçadores de bruxas da idade média que despiam e depilavam o/a acusado/a pra ver se achava alguma coisa. Se você é um viajante no tempo desavisado, uma marquinha de vacina pode ser vista como uma marca de bruxa (como Outlander me ensinou -q), ainda mais depois de andar por entre doentes e não ficar mal como eles


Lição do capítulo: vai todo mundo tomar vacina, por favor -qq não, mas sério, isso é importante.

Como sempre, reviews sempre são lindos e ajudam muito :3



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