Recomeço escrita por Katherslyn


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Quando vi o tema do desafio NYAH desse mês, fiquei bem intrigada. Ouço falar da AIDS na televisão, na escola, só que nunca me aprofundei.
Enquanto eu escrevia, fui pesquisando informações na internet.
Escrever essa história tem sido um aprendizado, e espero que seja pra vocês também.
Boa leitura.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/664543/chapter/1

"Um recomeço, eu digo. Todos os dias, luto pra continuar viva. E por mais difícil que seja, jamais desistirei. Só cairei quando não me restar mais nada"

Eu gostaria de dizer que essa história vai ser como um conto de fadas, sobre uma garota que conhece um cara legal. Qualquer coisa, que fugisse dessa minha realidade.

Eu queria que isso acontecesse comigo. Que meu maior problema na escola fosse não conseguir chamar a atenção do garoto popular, que minha vida fosse problemática porque eu tivesse crises adolescentes e meus pais não me entendessem.

Gostaria de dizer que a minha vida é como a de qualquer garota da minha idade, e já chorei muito desejando isso.

Quantas vezes eu li um desses livros românticos, desejando que alguma coisa ali acontecesse comigo? Incontáveis. É bom, sabe, pra esquecer um pouco de tudo e poder relaxar.

Mas vamos encarar os fatos, eu sou Melanie. E isso quer dizer que sou uma bagunça. E não é de uma forma legal ou bonitinha, do tipo "meu quarto é uma zona, tenho problemas com garotos, sou indecisa e não sei o que fazer no futuro." O que posso dizer é que meu quarto é impecável, não tem nenhum garoto, que eu saiba, fazendo uma fila na porta do meu coração e faço uma boa ideia de como será minha vida daqui a uns anos.

Talvez, ao ler as próximas palavras, você queira parar. Pode sentir nojo de mim, uma parte de você pode não quer saber sobre isso. Seja qual for a razão, se você é sensível demais ou acha que só porque tudo isso não faz parte da sua realidade, não tem que saber nada, beleza. Eu invejo sua ingenuidade.

Mas se sentir vontade de me acompanhar, de tentar enxergar as coisas com um olhar diferente, me dê as mãos e vamos juntos nessa viagem.

Eu tenho HIV.

Causei uma repulsa em você? Se vai continuar lendo, bom. Só não tente ter pena de mim, por fazer. Toda vez que me olham com aquela cara de compaixão, uma célula minha morre.

Brincadeirinha, pode ter compaixão sim. O que? Até uma pessoa como eu tem senso de humor, às vezes. A gente acaba tendo que olhar para um lado bom em cada situação, porque se pensar em um ruim, a gente surta.

Melanie, Melanie, Melanie dos Santos Ferraz. Acho fascinante o meu nome. Significa escura, negra. Não que esse seja o tom da minha pele, o que eu não teria nada contra. Eu levo mais para o lado... Como dizer isso sem ofender alguém... Suja, é isso que meu nome poderia significar. Já me chamaram tantas vezes de suja que quase acreditei nisso.

Eu tenho sangue impuro, um sangue contaminado, sou portadora de um vírus mortal. Quer saber quantas vezes ouvi isso? Ou quantas vezes não tiveram coragem de dizer em voz alta, mas eu percebia as acusações em um olhar?

Pois é, essa é minha história, a minha vida. Uma garota, quase terminando a faculdade, que nasceu dodói.

O sobrenome Santos veio do meu pai, Rodolfo Santos. Não sei muita coisa sobre ele, já que morreu quando eu tinha dois anos. Nenhuma lembrança, nada. Se não fossem as fotografias, ao pensar no meu pai eu não teria uma única imagem.

Ele era portador do vírus, e passou pra minha mãe. É meio complicado entender a história toda, porém, pelo que sei, meu pai traiu minha mãe com uma mulher que tinha AIDS, e contraiu a doença sem saber.

Passou pra minha mãe, e não se sabe se foi durante a gestação dela ou enquanto ela me amamentava que contraí o vírus. Só sei que desde pequena eu tenho isso.

Quando meu pai foi descobrir a doença, ela já estava forte nele. Ele tentou lutar contra ela, mas como já sabem, faleceu.

Contudo, o que mais me dói é falar da minha mãe. Eu fico imaginando o quanto ela sofreu. Pegou o vírus do marido, passou para a filha. Ela morreu quando eu tinha uns treze anos, Mariana era o nome dela. Eu a amava, eu ainda a amo, sinto saudades da minha melhor amiga.

Tive que ver minha mãe desistindo da vida, do mundo, de mim. Ela se rendeu, e eu jurei que nada me faria parar.

Um dia, eu sabia que teria que ir dessa pra seja lá o que nos aguarda, só que eu lutaria. O máximo que puder.

Fui escolhida pra ser porta voz de uma campanha contra a AIDS, e se aceitei fazer isso, foi em nome de todos que, assim como eu, sofrem em silêncio. Não mais, eu digo. Sem culpa.

É difícil. Você quer se enturmar com alguém da sua idade, quer ter amigos. É pior na infância. E você sabe que assim que descobrirem, vão se afastar.

– Não toque nela, ela é contaminada.

Quantas malditas vezes ouvi isso? Eu odeio ficar lembrando de tudo.

É por uma boa causa, eu digo a mim mesma. Uma boa causa.

E então eu estou chorando, porque relembrar acaba comigo. E eu sei que quando isso acabar, todos saberão sobre mim, e não vou poder fugir de novo.

Meu rosto estampado em outdoors, em comerciais na tv.

Sabe, eu nunca roubei nada na minha vida. Nunca. Mas eu fujo como se fosse uma condenada, como se eu tivesse matado alguém ou coisa pior.

Tomo sete remédios por dia, e se eu esqueço de tomar algum ou tomo fora do horário, tenho espasmos.

Já aconteceu comigo dentro de uma sala de aula, eu tive um ataque. Não é algo que eu queira falar agora.

Eu fico tonta, enjoada, vomitando sem parar.

Tem dias que me sinto uma doente mental, que tem que tomar todos os remédios pra manter a sanidade . É mais fácil aceitar isso do que a verdade, que eu tomo todos aqueles coquetéis de comprimidos pra me manter viva.

Não vou dizer que as coisas foram as mil maravilhas, seria mentira. Seria mentira dizer que sou forte o tempo todo, é uma luta constante. Fisicamente, mentalmente. Tem dias em que você só quer desistir, parece libertador se entregar.

Mas eu estou aqui pra dizer que tem como superar sim. Tem como levantar a cabeça, dar um sorriso e tentar viver com o que temos.

Confesso, foram várias as vezes em que pensei em dizer não pra essa campanha. Então eu lembrava daquelas pessoas, aquelas pessoas que com um sorriso e algumas frases, me renovavam a esperança.

Eu tenho a chance de retribuir a ajuda que tive, e espero que essa corrente não se quebre.

A lição de moral que vou tentar passar é essa. Você não tem que se relacionar com alguém que tenha essa doença. Não tem que ser um dos apoiadores, ninguém vai te obrigar a falar com pessoas como eu.

Tudo o que estou pedindo é um momento de silêncio, pra que eu possa entrar na sua mente. Tudo o que peço é respeito.

Sem as palavras que machucam, sem os olhares incriminadores, sem aquele preconceito.

Quero que tente enxergar que, por trás de uma pessoa isolada, pode existir alguém incrível, que só precisa de uma chance. Uma chance para ser ouvido, uma chance para ter amigos. Uma chance pra mostrar que não somos sujos.

Não vamos contaminar você, não queremos o seu mal. Só não queremos ser excluídos.

Eu ainda me lembro da primeira pessoa que disse que eu era podre. Tomei muitos banhos, esfreguei a esponja no meu corpo até minha pele arder. Só que tem coisas que fogem do nosso controle, não posso limpar meu sangue. Acha que se eu pudesse, eu não teria lavado meu sangue?

Quando se está na beira de um abismo, qualquer corrente de ar pode ser um empurrãozinho para despencar.

E acham mesmo que, no meio de tanta gente, isso não faz mesmo parte da sua vida? Beleza. Continue achando que aquele garoto da sua sala, que prefere ficar sozinho e vive tomando remédios para "gripe, dor de cabeça", ou qualquer outra desculpa não tem nada demais.

Continue achando que todos tem uma vida como a sua, ou como os filmes que você assiste.

Sabe, qualquer um poderia ter nascido com o meu... "Probleminha". Foi o que, uma questão de sorte? Ou de azar, no meu caso.

Ninguém é perfeito, todos temos algo a esconder. Mas, por que razão nos escondemos? Do que temos medo? Da condenação?

Existe um grupo de pessoas que se consideram santas. Elas julgam qualquer um que não partilham de seus ideais.

O que me faz lembrar de outro detalhe importante. Qual é a primeira imagem que se vem na cabeça ao pensar em AIDS? Um casal de homossexuais, é o que a maioria poderia responder.

E o que esse grupinho de pessoas que só sabem criticar dizem?

"Essa doença vem como castigo pra essa raça, por terem escolhido essa vida pecaminosa".

E como me explicam? Eu nasci uma pecadora? E isso é algo horrível de se pensar. Eu tenho amigos homossexuais com AIDS, acha que julgá-los vai ajudar em algo? Criticar uma adolescente por ficar grávida, vai melhorar?

Quem não ajuda, devia não atrapalhar.

Vamos deixar isso pra depois, produção. Vamos aos poucos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

O que acharam? Tem algo que precisa ser melhorado? Vão dar uma chance pra essa história? Beijos