Fim de Semestre escrita por Mahucp


Capítulo 1
Único




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As quatro cabeças expressavam o puro terror. Não tinham mais esperanças. Era como estar diante dos portões do inferno, mas ao invés de demônios e torturas, tinham em frente o gigantesco 2,5 garrafal do professor, escrito em caneta de tinta vermelha. O trabalho valia toda a nota do semestre, e eles receberam dois e meio.

Sem tirar os olhos da nota baixa, Júlia ouviu uma sirene de carro de polícia passar célere, enquanto o professor continuava a entoar o típico discurso sobre a responsabilidade de se dedicar aos estudos e apresentar um bom trabalho. Bem, talvez não fosse um carro de polícia, não dava para saber estando no quinto andar do prédio da reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Ilha do Fundão. Podia ter sido qualquer outra coisa: ambulância, bombeiros, ou até mesmo a patrulha municipal.

Júlia, uma descendente de japoneses, tinha os cabelos lisos, na altura do ombro, com uma franja cobrindo os olhos. Era bem baixa.

— Beleza, agora seria uma boa hora para os aliens aparecerem, e detonarem tudo — disse Luana. — Daí, dá ruim geral e o profe vai ter que marcar outro trabalho, ou outra prova, e anular essa porra.

A situação estava tão desesperadora que só mesmo uma invasão alienígena poderia resolver a parada. Aliás, que problema uma invasão alien não resolveria? Tipo, se os extraterrestres aparecessem, o mundo não teria mais problemas. Talvez não tivesse mais mundo também...

Luana tinha a pele negra e belíssimos cabelos crespos, os quais ela tinha muito orgulho em ostentar. Usava uma blusa azul clara, com uma calça branca e sandálias havaianas.

Durante muito tempo teve vergonha de suas origens, mas superou. Via que aquela postura era fruto de um racismo social, que ela acabava reproduzindo involuntariamente. E agora que ostentava seus cabelos crespos ouvia muitas coisas ruins.

Quando ia procurar vaga de estágio, falavam que seu cabelo “não passa uma postura profissional”, tipo, oi?, como se a capacidade de aprendizado fosse medida pelo penteado. Era revoltante.

Também era revoltante quando falavam que ela tinha de ser forte, que não era para chorar, ficar brava, que era para ignorar... E no fim, qual seria a diferença entre isso e o senhor de engenho que castigava os escravos, impedindo que eles tivessem qualquer consolo?

Reprimir os sentimentos não é um ato positivo.

— A gente pode alterar a nota — sugeriu Júlia, com um riso criminoso. — Eu tenho essa borracha que apaga caneta.

— Não! — Os outros três gritaram em uníssono.

— Aí, credo. Tá não vamos cometer nenhum crime — resmungou Júlia.

— A gente pode chorar pro professor mudar a nossa nota — opinou Luana, cruzou os braços. — Ou chorar pra ele dar um trabalho extra que vale uns mil pontos na média.

Alguém de fora podia pensar que não havia motivos para exacerbar a situação, mas havia. E muitos. A começar por ter que fazer a matéria de novo.

— É uma boa ideia — opinou Fernando. — Pô, se fosse uma matéria mais maneira, té que ia. Mas essa aqui é sinistra, nem rola.

O jovem espreguiçou-se, inclinando o corpo para trás, sentou-se na mesa, ao invés da cadeira.

Fernando tinha cabelos loiros, cortados rentes e olhos verdes. Usava uma regata vermelha, deixando os músculos do peitoral bem a mostra.

No braço direito tinha uma tatuagem da cabeça de um tigre. Super clichê. Estava ligado, mas pelo menos não era uma tatuagem, sei lá... do Wesley Safadão. No ombro esquerdo faria algo mais significativo. Só não sabia o quê. E agora ele não tinha mais esse direito, pois fora tolhido de suas escolhas, ficando preso para sempre no curso de arquitetura. Nunca conseguiria tatuar o corpo todo.

— Mores, isso aqui não é novela não é realidade — interrompeu Daniel, falando a última palavra sílaba por sílaba, em um tom bem teatral e exagerado. — Olha essa nota. A gente pode chorar a água de Jesus, que ele não vai altear.

Daniel tinha cabelos castanhos e ondulados, os quais eram rapados nas laterais, deixando o corte somente em cima, numa espécie de moicano. Os olhos castanhos, e o rosto bem maquiado. Sempre estava com roupas bem extravagantes e chamativas.

— E o que tu sugere? — perguntou Luana, apoiando o queixo na mão direita. Estava sentada na frente de Daniel.

— Vamos seduzi-lo. Oh, to até empolgado essa parceira do crime arraso.

— Bicha, ele é casado — disse Júlia decepcionada. Tudo o que queria era que o plano do amigo fosse mais tangível com a situação em que se encontravam. — E super fiel. Ou tu acha que é o primeiro a pensar nisso?

Irritada, Júlia virou o trabalho para baixo, impedindo que xeretas vissem a nota negativa. Não bastasse o grupo não chegar a conclusão alguma, ainda tinha que aturar um bando de janota, querendo se meter na vida alheia.

Agora era quase certo que ela pegaria dependência e faria a matéria de novo. Lá se vão os sonhos românticos de se formar com Rebeca e Marta, suas namoradas. Sim, um namorado a três. Um romântico e delicioso namoro a três. Três garotas chocando a família tradicional brasileira e destruindo um paradigma tão inquestionável dentro da sociedade.

E agora o professor destruiu o sonho das três de formarem juntas. Seria a formatura mais linda de todos, todos, todos os tempos. Uma formatura complemente destruidora e aparatosa. Seria.

Obviamente, ela não podia pedir para Rebeca e Marta reprovarem por querer, só para manter o sonho de pé. Seria muita falta de caráter. Todo mundo quer se formar em cinco anos, afinal. Não importa se estão em um namoro lindo ou não. Rebeca fazia Direito, enquanto Marta engenharia civil.

Bom, pedir para elas reprovarem era uma canalhice sem fim, mas torcer secretamente para elas reprovarem em uma matéria não era tão ruim assim, certo? Eram cursos difíceis, não era como se todo mundo passasse sem ter nenhuma dependência.

— Afe... vivemos praticamente numa era de aquarius da putaria, e as pessoas ficam nessa coisa de namoro santo — resmungou Daniel, não vendo mais esperança de alteração na nota.

Criado em uma família religiosa e tendo estudado em um colégio católico, Daniel odiava a ideia da renúncia para poder amar. Esse auto sacrifício em nome do amor, da família, de Deus e seja mais o quê. Para o jovem, era como transformar as pessoas em robôs. Fala-se que o amor próprio é errado, que os próprios desejos são pecaminosos e fim. Todas as vontades individuais foram castradas, sobrando só o que a pessoa deve fazer de bem pela família, pela sociedade, pelo amor.

Daniel queria um amor melhor do que isso, queria um amor que ele não precisasse abrir mão de si mesmo para ser feliz, um amor que não o normatizasse.

— Vou te conta que eu curto essa parada de namoro santo — confessou Fernando. Ergueu-se, chegando por trás do amigo, dando-lhe uma mordida no pescoço. — Especialmente se for com tu — sussurrou no ouvido do colega de curso, dando uma mordida no pescoço.

— Bicha, se for com tu, eu caso na igreja agora mesmo! — Daniel exclamou, gesticulando com ambas as mãos, levou a mão ao coração, como se o órgão estivesse bem acelerado.

O loiro sorriu. Na verdade ele não sabia bem o que estilo de namoro curtia, só sabia que curtia Daniel e queria ficar junto do amigo.

Muitas vezes, ele tinha receio de se tocar, se olhar, se sentir, até se apaixonar. Tinha medo de sair pelas ruas; frequentar um local que seja necessário apresentar os documentos; as chamadas na faculdade, nas consultas médicas.

Fernando vivia evitando relacionamentos. Era difícil dizer se a pessoa de quem gostava, tinha a mente aberta o suficiente para não se importar, ou quando ele se via na obrigação de dizer que não tem um pênis, mas uma vagina. Depois disso, a pessoa amada passava a enxergá-lo como um nada, como uma pessoa que não se deve namorar, conviver. Era assustador. Era nojento. Os seres humanos não se apaixonavam pelo que as pessoas são, mas pelo órgão genital dela.

Com Daniel, Fernando sabia que podia ter uma pequena liberdade. Esse era o estilo de namoro de que ele gostava.

— Pô, vão se comer depois — interrompeu Júlia, batendo palmas. — Estamos no meio de um assunto sério aqui.

— Podemos contratar alguém pra hackear o sistema — comentou Fernando, afastou-se de Daniel, voltando a se sentar na cadeira. — Nem deve ser caro, se a gente se junta numa vaquinha.

— Problema é a confiança, né mon, migo? — Daniel criticou, colocando uma mão na cintura. — Sempre pegam essas coisas. É praticamente um suicídio social. Críticas pelo Brasil todo.

Fernando coçou o queixo pensativo. Perscrutar uma situação em que uma nota foi, do nada, alterada no sistema, fazia sentido. Não valia a pena arriscar; não só pelo suicídio social, mas também por uma possível expulsão da universidade.

— A gente pode fazer um pacto com o Diabo! — Júlia exclamou, erguendo-se da cadeira, entusiasmada.

Vendo que a cara de bunda dos amigos se prolongaria por mais alguns minutos, Júlia decidiu explicar melhor o plano.

— Nem sei o que a gente pede, alterar nossa nota, trabalho extra, os dois, qualquer coisa. — A japonesa continuou, andando de um lado ao outro, entre as quatro cadeiras, em que se reuniam. — Eu vi na internet que dá certo.

***

Os quatro afastaram-se do aglomerado de gentes e quiosques, que tomava conta da Lagoa Rodrigo de Freitas durante a noite, procurando um local mais deserto e escuro para fazer o ritual. Caminhavam em fila indiana, com Júlia na frente, Luana e Daniel logo atrás, e Fernando por último.

Segundo a internet, o certo seria realizar a cerimônia em meio à natureza, longe da civilização, mas como estavam sem tempo teria que ser na Lagoa mesmo. Sem falar que só queriam passar de semestre, não era algo muito ambicioso como imortalidade, um trilhão de dólares ou dominar o mundo.

Tudo o que precisavam fazer era justapor esforços para passar de semestre. Esforços que o professor deveria reconhecer e valorizar.

— Se essa merda der errado e a gente acabar no inferno — disse Daniel. — Tudo o que eu peço é que tenha um vale dos homossexuais lá. Vou me divertir horrores sendo bem viada.

— E eu só quero que de certo — comentou Fernando, aproveitou e acertou um tapa no traseiro do colega, que riu com o atrevimento.

— Vai dar certo sim. Tá na internet, queridos — retrucou Júlia, sem olhar para trás.

— Só acho que podiam pegar só um tiquinho da nossa alma. Nosso pedido nem é tão fodão assim. E eu ainda quero ouvir blues — manifestou-se Luana.

O blues era o sentir, sem uma alma os sentimentos não tinham como efluir, tornando a pessoa uma casca vazia, incapaz de apreciar a beleza do blues.

Ainda podiam ouvir um pouco do barulho da cidade, mas ali era o mais profundo que podiam chegar numa suposta natureza. O ritual seria ali mesmo.

Desenharam com carvão preto um grande “c” no chão, quase se fechando num círculo, com uma pequena abertura voltada para a cidade de Jerusalém.

Em cada ponto cardeal, os estudantes colocaram uma vela preta, acessa. Contornaram o círculo dezoito vezes, em sentido anti-horário. Ninguém sabia o significado daqueles símbolos, nem mesmo Júlia, que pesquisou na internet. Porém, não importava, só precisava funcionar.

Júlia ficou no centro do círculo, enquanto os demais, em seu entorno. A japonesa ajoelhou-se e encostou a testa no chão, chamando o demônio.

Segundos depois, um pequeno ser estava parado na abertura do círculo, mas diferente do que pensavam o petiz não tinha uma aparência demoníaca. Muito pelo contrário, era bem humano. Nada denotava uma origem sobrenatural. Tinha cabelos negros encaracolados, olhos azuis claros e pele branca.

— Hm... sempre pensei que a humanidade fosse mais resiliente, mas me enganei, vocês são bem frágeis — disse o demônio, inclinou a cabeça para o lado e sorriu. Um sorriso diabólico, que lhe tirava toda a aparente humanidade. — Sou Mariel — apresentou-se, curvando-se.

— Caralho, deu certo — falou Fernando abismado. O loiro esfregou os olhos, mas a criança demônio estava mesmo lá. — Tu vai ajudar? — perguntou receoso.

— Talvez... — A criança respondeu.

— Sabe o que queremos? — Júlia perguntou, erguendo a cabeça.

— Sei, mas vocês sabem? — perguntou, colocou as mãos nas costas.

Apesar da aparência infantil, de forma alguma ele se comportava como uma criança. Lembrava mais um renomado diplomata.

— Passar de semestre e vender só um pedaço da alma? — sugeriu Luana.

Assim como todos, ela estava com medo. A internet tinha que ser levada mais a sério.

— E acham que conseguiriam escapar do inferno, mesmo assim? — testou Mariel.

— Termos do contrato? — Daniel arriscou perguntar.

Mariel fechou os olhos e deu uma risada irônica.

— Eu não deveria falar isso, mas o inferno não é a festa dos condenados, o inferno não é o feudo do senhor Diabo. O inferno é simplesmente o inferno — Mariel falou. — Não queriam ir para lá. A alma é indivisível, meus clientes fofinhos, e vocês não vão vendê-la para mim. Aceitem o dois e meio, e estudem para semestre que vem nada disso acontecer.

Mariel encerrou a fala, deixando os quatro jovens sem fala. Aquele demônio era... bonzinho?

***

Depois de receber uma lição de moral do demônio, os amigos decidiram passar o resto da noite na Lapa. Enchendo a cara e matando as mágoas, por terem pegado uma dependência em uma matéria tão chata.

A atmosfera da Lapa era verdadeiramente incrível. Ali era uma espécie de underground do samba, sempre rolava um som novo. Conversas e namoros perdiam-se em meio aos pandeiros e cavaquinhos, misturando-se ao piano, violoncelo e violino.

Os estudantes sentaram em uma mesa da calçada, com uma toalha vermelha distendida sobre a madeira clara. Conversavam, bebiam cerveja e se acabavam no lanchinho, que poderia dar dor de barriga no dia seguinte.

Luana havia marcado de sair com o namorado, André, mas – assim como Júlia – resolveu passar o resto da noite com a galera. Afinal, não era qualquer dia que um demônio recusava parte da alma. Ainda não sabiam se aquilo era bom ou ruim, mas não importava.

De uma forma ou de outra, estavam felizes. Estavam juntos.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado!