Os Jogos de Johanna Mason escrita por Tagliari


Capítulo 5
Capítulo 4 ― Garotinha assustada


Notas iniciais do capítulo

Feliz Natal, cambada!
Em pensar que em algum lugar de Panem, Johanna Mason está se divertindo à beça com sua família imaginária criada por ela mesma após o fim da Revolução.

*Ah, olhem só, o tio Moreon Mason se jogou de novo na tigela do ponche. Onde está a tia Cerce Mason pra ajudar o marido? Ah, é, ninguém dessa festa de Natal da Johanna existe porque todos morreram.*

E é nesse clima de festividades vazias e sem essência que deixo vocês com mais um capítulo fresquinho de OJDJM.
Aproveitem o capítulo!

REVISADO EM 24.03.2017



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MAXELL SEEKIRK, O ACOMPANHANTE do Distrito 7, não para de tagarelar durante a curta viagem de carro até a estação de trem. Ele fala sobre coisas sem sentido e sua vida irrelevante. As palavras jorram de sua boca num fluxo constante que deveria ser humanamente impossível, sem nenhuma pausa para respirar. Ele suspira, exclama e abana as mãos quando tenta descrever uma cena que exige mais do que habilidades verbais. Entretanto ninguém está prestando atenção. Posso ver isso nos olhos cansados dos vitoriosos e na expressão angustiada de Silas.

― Ah, foi incrível. Acreditam que eles me deixaram pegar o mangual que Cecilia usou para matar o último tributo? E eu juro que ainda tinha o sangue dele nos espinhos. Sangue! Eu quase vomitei no chão ali mesmo porque, vocês sabem, o sangue não parecia ser tão assustador na minha televisão ― ele conta animadamente. ― Eu passei o resto do dia meio enjoado e, mesmo passando mal, fui ver o zoológico. Vocês não vão acreditar, mas Beeboo, o urso que matou aquela garotinha logo no começo, ainda estava vivo! A cinquenta e sete foi a melhor edição que já teve. Com toda certeza foram as melhores férias da minha vida.

Olho com um pouco mais de atenção para Maxell. Os lábios pintados de azuis e o terno branco dão a impressão de que ele está passando por sérios problemas de saúde, mas essa não é a característica mais marcante do acompanhante. Tatuagens douradas emolduram a parte superior de seu rosto. O intricado arabesco de formas delgadas e caricatas surge perto das orelhas e sobe até se encontrarem no centro da testa, descendo e contornando a linha dos olhos. Se fosse para apostar, eu diria que elas devem brilhar no escuro.

Durante o falatório incessante, sou surpreendida pela vontade quase que esmagadora de jogar o sujeito para fora do carro, fazê-lo rolar na rua e, com um pouco sorte, ser pisoteado por um cavalo enlouquecido. Acho que não serei bem vista se transformasse em realidade esse meu pensamento, então mudo o rumo de minhas decisões e permito-me entrar em uma bolha particular, onde os desafios do mundo exterior não conseguem penetrar. Penso nas pessoas que vieram se despedir de mim quando minha família foi embora. Os abraços efusivos de Siena, minha amiga; o choro constante de Vibia, a mulher que trabalha no Setor 8 da floresta comigo; as poucas palavras ditas por Argos, o vizinho idoso que sempre anda olhando para os próprios pés. Também surgiu gente que até então eu achava que nem sabia da minha existência.

Quando chegamos à estação de trem, somos abordados por repórteres estranhos, dezenas de câmeras apontando para o meu rosto. Durante o tempo em que elas devoram nossas imagens, tento forçar o choro a surgir, sem sucesso. Estou esgotada. Enquanto os flashes espocam aqui e ali, passo os braços ao redor da barriga e desvio o olhar para baixo. Ocasionalmente viro a cabeça para o lado e deixo o cabelo cair sobre parte do rosto como se não quisesse ser filmada. Na verdade, espero que todos me vejam. “Olhem para mim”, quero dizer. “Sou uma garotinha assustada e estúpida”.

Suspiro quando entro no trem. Tudo é novo, brilhante, ostentativo e limpo. Se eu pudesse descrevê-lo com poucas palavras para um telespectador, apenas diria: luxuoso e confortável. Maxell me guia até um quarto cuja cama contém mais travesseiros que uma pessoa poderia imaginar e diz que ele será meu até a chegada à Capital. Segundo ele, posso desfrutar de cada centímetro enquanto não for chamada para o jantar.

Pela janela do vagão consigo ver o Distrito 7 passar. Os trilhos do trem são ladeados por cercas altas de arame farpado, mas mesmo assim é possível identificar as árvores tão familiares ficando para trás. Meu lar agora não passa de um borrão escorregando por entre meus dedos.

Tiro a roupa e vou para o banheiro. No começo, tenho certa dificuldade ao lidar com o chuveiro, mas após uns cinco minutos xingando e insistindo, consigo configurá-lo para um banho tranquilo com água quente. Quando volto ao quarto, percebo que minhas roupas desapareceram e que há uma troca dobrada com perfeição sobre a cama. Fico alguns instantes encarando as peças com desconfiança como se estivessem contaminadas com alguma doença mortal. Mas no final, o bom senso ganha e as visto. Antes vestida com roupas da Capital do que andando inteiramente nua na frente de completos estranhos.

Jogo os travesseiros no chão e deito-me na cama com a intenção de tirar um cochilo, pois preciso repor minhas energias, uma vez que precisarei delas para convencer os outros sobre minha fragilidade. Porém não consigo dormir. Tampouco manter os olhos fechados por mais de cinco segundos. Como descansar sabendo o que me aguarda quando sair do trem? É simplesmente impossível.

Pensar nos Jogos é angustiante. Pensar em casa é doloroso. Acabo passando a próxima hora revirando na cama e revezando meus pensamentos entre a competição e minha família. Em que arena eles nos jogarão esse ano? Como meus pais devem estar lidando com a situação? Quais serão os bestantes mais temíveis? Minhas irmãs estarão chorando por mim agora? Quantos dias essa edição deve durar? Dois? Cinco? Vinte? Ficaria feliz se ao menos tivesse a resposta de apenas uma dessas perguntas.

Maxell bate na porta, me chamando para cear. Levanto da cama em um pulo, decidida a colocar uma pedra sobre minha antiga vida e encarar a nova que está por vir ― mesmo que seja breve. Não serei uma competidora fácil de ser eliminada.

A mesa já está cheia quando chego e sou obrigada a sentar no único lugar disponível: entre Maxell e Phox. À minha frente encontra-se Silas, uma expressão abatida e solitária no rosto. Encarando sua monocelha, pergunto-me se deve estar sendo difícil para ele assimilar tudo isso. Espero que esteja. A última coisa que preciso é de um parceiro de distrito autoconfiante metido a carreirista.

Finjo estar focada no bordado do guardanapo sobre meu prato enquanto recebo olhadelas constantes de Silas e o olhar penetrante dos vitoriosos. Imagino que todos devem estar morrendo de pena de mim. E isso me deixa irritada. Nunca gostei de ser alvo de piedade alheia, mas será isso que receberei durante o tempo que estiver na Capital. Essa foi a minha escolha.

Fico tentada em dizer que estou fingindo, que foi intencional fazer do meu nome sorteado um espetáculo, entretanto mantenho-me em silêncio. Nada pode dar errado e confio em ninguém aqui. Então resta apenas dar continuidade à encenação. Ergo os olhos e pisco algumas vezes com doçura. Para completar, solto um sorrisinho contido e tímido, como se me desculpasse por algo. Pronto! Melhor do que isso é impossível.

A comida começa a chegar em diferentes estágios. A princípio, eu tenho certeza que não comerei nada, pois toda a agitação das últimas horas mexeu com meu apetite. Acontece que eu não poderia estar mais errada. Não resisto à entrada ― uma sopa branca de cebola com torradas moldadas em círculos perfeitos ― e muito menos ao prato principal e os que vieram depois. Estou empanturrada antes mesmo da sobremesa. Sinto como se eu comesse mais qualquer coisa, meu estômago se partiria em dois. Então vem a mistura molenga e inconsistente que Maxell nomeia de manjar. Acabo repetindo duas vezes. A Capital pode nos mandar para lutar até a morte e tratar isso como uma festividade, mas, convenhamos, a comida é de primeira qualidade.

Somente quando termino é que noto o olhar de repugnância que o acompanhante lança para mim. Nem pergunto o motivo, pois algo me diz que tem a ver com minhas maneiras à mesa. Eu desisti de talheres assim que as codornas recheadas com abóbora chegaram, uns quatro pratos atrás. Até alguns segundos antes, meus dedos estavam melados e engordurados. Eu não gosto dessa sensação de imundice e acabei limpando as mãos na própria toalha de mesa. Bom, ninguém mandou eles dificultarem minha batalha com o garfo e a faca ao trazerem uma codorna com tantos ossos. Fico ligeiramente aliviada quando percebo que Maxell usa a mesma expressão ao olhar para Silas. Seu queixo está pingando uma substância vermelha que parece ser o caldo de framboesa, mas descarto a ideia, pois isso foi servido logo no início da refeição.

Phox e Blye parecem não notar a repreensão silenciosa de Maxell, concentrados demais em seus respectivos pratos. Pergunto-me com que frequência isso deve ocorrer, já que Silas e eu não somos os primeiros tributos esfomeados do Distrito 7.

― Deve estar quase na hora da reprise ― Maxell diz assim que os pratos são retirados e nos guia pelos intermináveis corredores do trem.

― Se você quiser, já pode ir se deitar ― Blye fala ao tocar amigavelmente em meu ombro enquanto atravessamos o vagão restaurante. ― Não precisa ver o resto dos tributos.

Ela é uma mulher bonita. As maçãs do rosto são altas e coradas naturalmente, destacando os lábios fartos. Seu cabelo é tão negro que chega a transmitir reflexos azulados, assim como as asas de um corvo. Não me lembro dos detalhes de quando vi a reprise dos Jogos em que Blye ganhou, mas tenho certeza que não era tão bonita assim. Pergunto-me se Capital modificou mais alguma coisa na vitoriosa do que os traços do rosto.

― Não. Estou bem. Eu aguento ― digo baixinho, ainda no meu papel de garota-frágil-triste-e-inofensiva. Para completar, bato as pestanas algumas vezes.

Blye arqueia os lábios em um sorriso que não chega aos olhos.

― Se você diz.

Os adultos sentam-se nos sofás e eu vou para o chão junto com Silas. Ele manteve-se em silêncio desde o momento em que colocou os pés nesse trem. Na verdade, acho que nunca o ouvi falar qualquer coisa.

O símbolo da Capital aparece na televisão e a reprise da colheita começa. É agora que descobrirei as pessoas que terei que superar para morar em uma casa luxuosa na Aldeia dos Vitoriosos. Pouco a pouco os nomes são chamados e pessoas comuns e esquecíveis cruzam a tela, a maioria perplexa e lutando contra as lágrimas. Entretanto alguns tributos conseguem um lugar em minha memória. O sujeito baixo e atarracado do Distrito 1. A garota negra do Distrito 2, que sobe saltitando quando seu nome é chamado. No 4, a multidão solta vivas e aplausos quando uma garota ruiva de beleza estonteante dirige-se ao palco após se voluntariar por uma menininha sardenta; seu sorriso é encantador com um toque de crueldade.

Sinto-me estranhamente alegre quando chega a vez do Distrito 7. Quase é possível sentir toda a praça prendendo a respiração quando Maxell lê o meu nome. Depois dele insistir algumas vezes, finalmente dou o ar da graça em um espetáculo digno de nota. As câmeras focam em mim em questão de segundos quando o choro começa. O melhor de tudo é quando os Pacificadores têm que me arrastar até o palanque. Honestamente, eu fui incrível.

Tapo a boca com a mão para esconder o sorrisinho inconveniente que surge de lugar nenhum. Nesse exato momento, com toda certeza, eu devo estar sendo riscada da lista de alvos de todos os tributos. Nisso eu aposto meu braço esquerdo.


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Notas finais do capítulo

Bom, assim espero que tenham gostado do desenvolvimento psicológico da nossa boa e doce Johanna Mason.
E também espero por seus comentários!



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