Os Jogos de Johanna Mason escrita por Tagliari


Capítulo 4
Capítulo 3 ― Castelo de cartas


Notas iniciais do capítulo

Absolutamente nada a acrescentar.
Boa leitura, cambada!

REVISADO EM 24.03.2017



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O HINO DE PANEM acaba com uma última nota grave e sou escoltada por Pacificadores até uma sala elegante com cortinas azuis. Será aqui me despedirei de todos que amo.

Sento-me no sofá espaçoso de três lugares e imediatamente afundo na superfície inconsistente e macia. A sensação de ser engolida por um móvel não é das melhores e levanto-me o mais rápido que posso. Testo a poltrona vermelha no outro lado do cômodo com a mão, pressionando a palma no assento. É bem mais duro que o sofá, mas não deixa de ser macio ao toque. Fico satisfeita ao sentir-me confortável na poltrona escarlate.

Encaro a escultura feita de vidro sobre uma mesinha no canto da sala e tento identificar o que essa peça retrata. No começo acho que a linha delgada e tortuosa é o pescoço de um cisne, mas ela se divide em duas e logo acabo descartando a hipótese,  pois acho que uma ave não poderia ter duas cabeças. Permito-me ser engolida por uma intensa melancolia. Estou cansada. Não tinha ideia de que chorar poderia ser tão exaustivo. Acho que daria qualquer coisa por um belo copo de água para limpar a garganta.

Revendo os últimos acontecimentos comigo mesma, uma parte de mim pensa em fugir, escapar pela janela e me esconder em casa. Mas logo descarto a ideia, porque ela é ridícula. Estou no topo do Edifício da Justiça. Mesmo se sobrevivesse à queda ― o que seria pouquíssimo provável ―, ainda teria que lidar com a centena de Pacificadores fortemente armados que rondam a Praça Principal. Não há como escapar dos Jogos Vorazes. Resta agora encarar meu curto futuro.

A porta é aberta por um Pacificador e uma mulher baixinha de cabelo castanho desgrenhado irrompe com um andar cambaleante. Minha mãe está acabada. O rosto, que geralmente mantém um rubor natural, está em um tom de vermelho-vivo intenso e as lágrimas não ajudam em nada com sua expressão arrasada. Assim que me vê, ela literalmente joga-se em minha direção e aperta-me em um abraço esmagador, porém muito ansiado por mim. Retribuo o gesto e roço o polegar nas costas de minha mãe, que enterra o rosto em meu pescoço e começa a soluçar.

Percebo que meus olhos não estão tão secos quanto eu imaginava. Pisco várias vezes para obrigar as lágrimas a regredirem. Mesmo me fazendo de fraca para os outros, tenho que ser forte perto de minha mãe.

Antes do Pacificador fechar a porta, uma menininha de nove anos entra timidamente. Cahlia está pálida e seus olhos cor de lama encontram-se arregalados. Ela não passa de uma garotinha assustada.

― Está tudo bem, mãe ― digo. Minha voz está rouca e a garganta irritada, uma vez que apenas chorei e resmunguei por quinze minutos. ― Eu estou bem.

Isso faz com que ela se debulhe em lágrimas ainda mais, alheia às minhas palavras de conforto, soluçando compulsivamente. Ela começa a dizer algo, mas o choro dificulta meu entendimento. Tento fazer como minha mãe fazia quando eu era pequena e me machucava: dizer que tudo vai ficar bem e esfregar as mãos em círculos nas suas costas.

Em algum momento, o choro acaba, dando lugar para um suave fungar. Demoro um pouco, mas finalmente convenço-a a sentar-se no sofá de três lugares comigo. Olho para o canto da sala, lembrando-me de Cahlia, e a chamo para aconchegar-se ao meu lado. Ficamos assim, sentadas e caladas, por um bom tempo.

― Eu estou bem, mãe ― falo novamente após um minuto de pleno silêncio, pois sinto que é meu dever tranquilizar a mulher abatida ao meu lado. ― Estava apenas fingindo, entendeu?

O olhar de incredulidade que ela me lança chega quase a perfurar minha testa. Claro que ela não acredita. Acontece que eu gostaria de explicar meu plano com todos os detalhes, mas, além de cansada, não quero perder os últimos minutos com minha mãe falando sobre uma ideia possivelmente estúpida que acabará custando minha vida.

― Confie em mim, por favor ― sussurro por fim, esperando que isso coloque um ponto final em suas dúvidas.

Cahlia passa os bracinhos magricelos ao redor da minha cintura e afunda a bochecha no meu peito.

― Você prometeu que eles não iam levar você ― soluça, obrigando-me a lembrar-me das palavras que trocamos hoje cedo antes de nos levantar.

― Eu estava errada ― confesso e enterro os dedos no cabelo de Cahlia. ― Mas no final tudo vai dar certo. Eu vou voltar, florzinha.

Abraço minha mãe e minha irmã bem forte, memorizando a sensação e guardando-a em um lugar onde os Jogos Vorazes não a manchará. Precisarei de forças para enfrentar o que me espera e é da lembrança desse momento que as retirarei.

― Amo vocês duas mais do que tudo ― digo, um nó se formando na garganta. Dizer adeus é mais difícil do que eu imaginava.

― Nós também te amamos, querida ― minha mãe murmura e um sorriso trêmulo forma-se em seus lábios. Ela está mais calma agora, mas sei que o choro pode romper a qualquer momento. A mulher de rosto corado beija minha testa, bem entre os olhos. ― Volte para nós, Johanna.

Aceno com a cabeça, pois tenho medo de abrir a boca e vacilar na hora de mentir. Ganhar os Jogos ― e consequentemente voltar para casa ― não dependerá apenas de mim. Terei que passar por obstáculos mortais. Vinte e três empecilhos entre meu retorno e eu.

Repito o gesto de minha mãe e toco meus lábios acima dos olhos de Cahlia.

― Tenha juízo enquanto eu estiver fora, florzinha. E lembre-se: corra direto para casa se aquelas meninas más do colégio começarem a mexer com você de novo. E, se elas te encurralarem...

―...eu devo mordê-las até arrancar um pedaço ― ela completa. Um sorrisinho sutil e verdadeiro ameaça brotar em seu rosto.

Rio. O som parece um pouco forçado, mas, se Cahlia ou minha mãe notam, não dizem nada.

― Essa é a minha garota.

A porta se abre e sei que meu tempo acabou. O Pacificador as empurra sala a fora com maneiras rudes. Em um baque, a porta se fecha e fico sozinha mais uma vez. Quando ela é aberta novamente, quem entra é meu pai e Aggie. Assim que me vê, minha irmã lança-se em minha direção e envolve meu corpo em um abraço.

― Eu sinto tanto, Jo ― ela diz e começa a soluçar. ― Sinto tanto, tanto, tanto!

E pela segunda vez nesse dia, ajo como minha mãe. Abraço Aggie e falo que tudo vai ficar bem, quando sei que na verdade não vai. Meu pai vem atrás de minha irmã. Seu semblante toma uma expressão triste. Tenho que ser insistente para que Aggie se acalme e aja de maneira menos emotiva.

― Desculpe. Acho que você não precisa de uma louca chorando agora ― ela diz ao soltar um risinho nervoso e seca as lágrimas com a ponta do indicador.

Então é a vez de meu pai a embalar-me em um abraço apertado. Quando retribuo o gesto, ele funga e comprime mais força nos membros. São tantas lágrimas, abraços e soluços que sinto como se toda a minha família já estivesse se preparando para minha morte. Pergunto-me se algum deles acredita de verdade que eu possa vencer os Jogos Vorazes. Obrigo-me a descartar o pensamento amargo. Nem eu apostaria em mim mesma se fosse apenas um telespectador assistindo ao espetáculo na colheita. E é esse o meu objetivo, certo? Despertar pena nos outros e passar despercebida pelo resto do evento. Bom, estou conseguindo.

― Você é forte o suficiente para retornar, querida ― meu pai diz enquanto belisca o tecido aveludado do sofá. ― Não sei o que houve com você mais cedo, mas acredito que pode dar a volta por cima.

― Você é esperta, Jo. Aposto que consegue ficar viva se se esconder na arena e esperar que todos os tributos se matem. Ainda mais se tiver uma floresta. Você pode sobreviver de frutas e raízes, se tiver. Isso funcionou com Noreena, aquela velha do Cinco ― Aggie concorda.

― Eu sei o que estou fazendo. Serei mais esperta e forte que todos os tributos, eu garanto. Confiem em mim. ― Faço um muxoxo. Minha língua está coçando para que eu partilhe o meu plano com alguém, saber se o que estou prestes a fazer é realmente uma boa ideia. ― Lembram-se da Saffra, aquela garota do Distrito Nove, na última edição?

― Sim. Sei quem é ― meu pai diz e Aggie acena com a cabeça em concordância.

Saffra Baxwoll foi um tributo revelação dos Jogos Vorazes. Ela brilhou desde o momento em que tirou uma bela nota onze nas avaliações individuais e cativou toda a Capital com seu charme encantador na entrevista. Ela se deu bem até o momento em que o gongo soou. A garota foi caçada impiedosamente por todos os adversários até que morreu de forma agonizante quando os tributos do 4 deram-na ainda viva de comer para um bestante grotesco. Saffra foi invejada pelos Carreiristas, ovacionada pela Capital e assassinada pelos Jogos. Nem mesmo suas habilidades com a foice conseguiram salvá-la. Foi exatamente isso que eu pensei quando ouvi meu nome sendo anunciado.

― Acontece que o único erro dela foi chamar muita atenção antes dos Jogos. Os carreiristas caçaram Saffra como loucos apenas porque ela representava perigo ao bando, certo? Ela morreu por se destacar. E eu não quero o mesmo fim. Sei que passar despercebida não é garantia de que eu fique viva, mas acho que é uma vantagem.

― E você pensou em tudo isso agora a pouco? ― Aggie parecia incrédula, possivelmente me achando louca.

Mexo a cabeça em uma negativa.

― Não. Acho que já tinha isso na cabeça há algum tempo para o caso de... bem, você sabe... isso aqui acontecer.

Fito os olhos castanhos de meu pai. Ele está pensativo, absorto em suas próprias ponderações.

― E o que vai acontecer quando a hora de enfrentar os outros na arena chegar? Mais cedo ou mais tarde eles irão atrás de você. Já pensou nisso? ― comenta. É isso que amo nele, esse seu jeito de não se abater tão facilmente diante das circunstâncias. Meu pai será o pilar da família, sustentando todos na sanidade, se eu vier a morrer.

Limpo a garganta, pois sei exatamente o que responder.

― Sim. Eu sei que, se eu ficar entre os últimos, alguém vai me caçar. Mas a questão não é essa. Eles vão subestimar a garotinha assustada do Distrito Sete, não terão cautela comigo. Eu posso vencer, pai ― digo. Porque essa é a verdade. Eu precisarei de apenas um segundo de hesitação da parte de meu perseguidor para que possa matá-lo. E se eu tiver um machado em mãos, melhor ainda.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. E não se sintam intimidados em comentar, galera. Juro que não mordo. Venham, vamos conversar por essa bela caixa de diálogo logo abaixo das notas finais.
Até breve!