Os Jogos de Johanna Mason escrita por Tagliari


Capítulo 24
Capítulo 23 ― Ziguezagueando


Notas iniciais do capítulo

Aooooooo, galera!!!
Espero que gostem do capítulo, mesmo ele estando um pouco paradinho. Mas juro que é um elo muito importante para a ligação do anterior com, finalmente, o penúltimo capítulo da Arena dos Quatro Vulcões. E então, ansiosos?
Boa leitura, cambada!

REVISADO EM 27.04.2017



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― ACHO QUE EU PODERIA comer tudo isso sozinha ― Sapphire McLean diz, a boca cheia de bolo de carne recheado com queijo e especiarias. Ambas as suas mãos estão igualmente ocupadas; uma coxa de ganso em uma e um punhado de cenouras cozidas na outra.

Felizmente não estou em condições de questionar os hábitos na mesa de minha aliada, uma vez que estou enfiando um bolinho de chocolate recheado com licor atrás do outro em minha boca há dez minutos. Pego um doce com sabor de limão que não gostei muito e lambo apenas a cobertura açucarada, em seguida jogo o que sobrou no chão. Tenho a impressão que a comida da Capital conseguiu ficar ainda mais gostosa desde a última vez em que experimentei-a antes de vir para a arena.

Não demora muito para que nos sintamos satisfeitas, uma vez que parece que meu estômago fora reduzido ao tamanho de uma noz após quase duas semanas na arena. Encaro a enorme mesa do banquete no centro do campo de margaridas agora salpicadas de vermelho, de repente entediada, cansada. Ainda há muita comida ― pilhas e pilhas de frutas, doces e carnes. Os óculos de visão noturna furtado quando matei a carreirista negra há dois dias ajuda-me em identificar todos os simples detalhes da extensa mesa.

A noite caiu por completo, as estrelas pontilhando o céu azul-escuro de um branco brilhante. O único som é o chilrear das corujas, que despertaram para caçar junto com a lua. O campo de margaridas apresenta uma beleza estonteante e ao mesmo tempo fantasmagórica. É como se a qualquer momento algum bestante fosse surgir pela orla da floresta e me devorar.

― Coloque o máximo de comida que conseguir nas mochilas e vamos embora. Que os aerodeslizadores levem logo os corpos antes que comecem a feder ― comento ao tentar enfiar uma travessa de vidro inteira de batatas em forma de aperitivos dentro da minha.

― Sim, senhora, chefe ― Sapphire concorda enquanto lambe a gordura do ganso da ponta dos dedos.

Muito rapidamente enchemos duas mochilas com suprimentos frescos, dando prioridade para os menos perecíveis. Luto alguns segundos para fechar o zíper da mochila e passo as alças pelos braços. A garota do Distrito 10 faz o mesmo.

― E então, onde fica o esconderijo da carreirista? ― pergunto. Após muito hesitar, acabei entrando no jogo de Sapphire. Ainda não acredito em tudo o que ela disse, mas concluí no instante em que aceitei chamá-la de aliada que tudo não passa de uma questão de sorte e vantagens. Se tem uma coisa que aprendi após anos e anos assistindo aos Jogos é que não se pode subestimar um carreirista e Sapphire pode ser de grande ajuda para eliminar nosso último inimigo em comum.

A garota da pele manchada estreita os olhos.

― Você realmente está pensando que eu vou sair andando por aí agora? É noite, Mason. Não quero me encontrar de novo com aquelas malditas borboletas azuis.

Franzo o cenho.

― Borboletas azuis?                                       

Sapphire volta a atenção para o ferimento no braço desferido pela ruiva do Distrito 4. O sangue trespassou a atadura improvisada feita com um pedaço da camiseta do garoto do 3. Ainda tenho um pouco da pomada da Capital na mochila, mas a ideia de usar o último vestígio dela em uma pessoa que pode tentar me matar enquanto durmo não parece atrativa.

― É. Bestantes. No começo dos Jogos fui acordada por um bando delas. Eu juro que aquelas coisas brilhavam no escuro. Elas me perseguiram por um quilômetro ou dois. Estavam quase me alcançado quando de repente elas pararam e voltaram para trás. No começo achei esquisito. Então o cara do Distrito Cinco apareceu. Foi por pouco.

Aceno positivamente uma vez com a cabeça.

Não é necessário dizer mais nada. Às vezes os Idealizadores usam armadilhas ou bestantes para guiar os tributos desgarrados para um combate corpo a corpo, atraindo-os para outros oponentes.

― Ao menos não eram lagartos com penas ― concluo com certo tom ácido, pensando na morte horrível que Silas Underwood teve.

Sapphire arqueia uma sobrancelha.

Encolho os ombros.

― Longa história. É quanto tempo daqui até esse tal esconderijo?

― Cerca de um dia de caminhada. Isso é, sendo otimista.

Penso nos perigos que poderemos enfrentar nesse período ― bestas, armadilhas, ciladas, traições ― e o que mais desejo é partir nesse exato momento, pois quanto mais cedo partirmos, mais cedo poderei ir para casa. Mas não sou a única que dá as cartas, uma vez que estou em uma aliança potencialmente estúpida.

― Certo. Que tal acamparmos aqui perto e começarmos amanhã cedo?

Ela sorri.

― Você leu meus pensamentos.

Andamos para o leste, em silêncio. Assim que saímos do campo de margaridas não demora muito para que o aerodeslizador apareça para recolher os corpos. Quando olho para trás, até consigo notar um rápido vislumbre do cabelo alaranjado da carreirista sendo erguida pela garra metálica. Restam três de nós. Apenas três.

Encontramos um atraente aglomerado de rochas e escolhemos o local para passar o resto da noite. Jogo a mochila no chão e recosto-me sobre a superfície dura e irregular de uma pedra. Não é a última palavra em conforto, mas bem que poderia ser pior. Sapphire senta ao meu lado e começa a brincar despreocupadamente com o chicote, retorcendo-o e fazendo nós arbitrários em sua extensão. O clima está agradável e não há necessidades de uma fogueira, o que acho excelente.

― Você esteve sozinha esse tempo todo? ― a garota do 10 pergunta após longos minutos de silêncio.

Umedeço a barra da minha camiseta na boca do cantil e uso-a para limpar o sangue dos machados.

― Sim ― minto.

― Sério? ― ela questiona, não acreditando.

― Com certeza. Eu era apenas uma chorona vítima das circunstâncias, lembra?

― Ah, é.

Quando acabo de alisar as cunhas, as lâminas estão novas em folha.

― Matou mais alguém além dos carreiristas do Quatro? ― Sapphire torna a questionar, curiosa.

Cerro os dentes, começando a ficar irritada. Perguntas demais nunca é uma boa coisa, porque quanto mais perguntar, mais respostas você terá. E quanto mais respostas, mais próximo da pessoa você ficará.

― Não ― minto novamente.

― Ah. Certo. Eu matei uma garota na Cornucópia, além do cara do Distrito Cinco. Ela parecia ter nem treze anos; estava desesperada. Era uma criança e eu tirei sua vida. Isso é um saco, não é?

Penso em Dahlia, minha irmã mais nova. Nem consigo imaginar a dor que a família dessa tal garota morta deve estar sentindo.

― Você ainda está viva, certo? E se você não tivesse a matado, provavelmente alguém o faria. É a vida.

― Não ― Sapphire discorda. ― São os Jogos Vorazes.

O hino de Panem surge nesse momento, pondo um fim definitivo na conversa. Junto com as notas graves, os rostos vão surgindo no céu. O primeiro a aparecer é o garoto do Distrito 3 que resolvera enfrentar Savera sozinho, logo após seguido pela própria assassina e seu companheiro de distrito. Eros Redpath não parece assim tão encantador em uma foto pairando no ar. Por fim, é a vez do parceiro de Sapphire. Malthus brilha no céu por um instante antes de sermos embaladas novamente no escuro e no silêncio.

― Devemos dormir ― digo.

A garota do chicote concorda com a cabeça.

― Eu fico de guarda primeiro.

Uma risada seca e sem humor surge em minha garganta.

― Não. Primeiro eu.

Agora é a vez de Sapphire rir, negando o convite.

― Certo. Acho que essa será uma longa noite sem dormir para nós duas, Johanna Mason.

― Concordo.

•••

Não me lembro de ter fechado os olhos, mas devo ter dormido, pois quando percebo, o céu está passando do cor-de-rosa para o azul da aurora. Olho para o lado e me deparo com uma Sapphire McLean totalmente adormecida, a boca aberta e ressonando com suavidade. O chicote encontra-se frouxo enrolado em suas mãos ― porque foi assim que ela dormiu, agarrada à arma.

Observo os detalhes de seu rosto, coisa que nunca fiz antes. Ela até que é bonita, se eu ignorar as manchas branco-leitosas proporcionadas por algum tipo de deficiência na pele. Seus lábios são pequenos e delicados, ainda mais quando não estão emoldurando seu típico sorriso sarcástico que diz “Eu sei de algo que você não sabe”. Tão serena. Tão tranquila. É difícil de acreditar que essa mesma garota não hesitará um segundo em estrangular-me com seu chicote. Mas essa é a verdade. Ponto.

E é assim que percebo que estou cometendo um grande erro. Porque, quanto mais eu penso, mais os contras superam os prós quanto a nossa frágil aliança. É como se uma vozinha irritante ficasse sussurrando repetidas vezes: Ela está tramando contra você. Ela vai ganhar os Jogos se você deixar. E você, Johanna? Você vai estar morta.

Mas eu não posso permitir isso, certo? Tenho que voltar para casa, para minha família. Dahlia, Aggie, meus pais. Eles precisam de mim. Então isso tem que acabar logo. Preciso vencer.

Sem desgrudar os olhos de Sapphire, que ainda dorme como uma pedra, tateio o chão de folhas secas à procura de um dos meus machados. Fecho os dedos ao redor do cabo familiar de madeira. Afinal, já matei com ele ― a carreirista negra, a ruiva do 4 e seu parceiro de distrito. Todos mortos. E a garota do chicote será apenas mais uma ― um rosto a mais para me assombrar, um passo mais perto para a insanidade. Entretanto, eu o farei. Porque é o que pessoas egoístas fazem. Na verdade, não matarei porque quero voltar para casa ou porque alguém precisa de mim, mas sim porque simplesmente não quero morrer.

De repente determinada e corajosa, ergo o machado do chão, fazendo as folhas estalarem. Infelizmente, esse é o som que desperta Sapphire. Ela abre os olhos, mas não se meche, me encara e franze o cenho. Por fim, sorri.

Suspiro fundo, pois sei que deixei a oportunidade passar. Por enquanto, minha aliada continuará viva. E também sorrio.

Não trocamos palavras. Apenas nos levantamos e tomamos um café da manhã reforçado. Em poucos minutos, não é mais necessário a nossa estadia aqui na orla do campo de margaridas e logo arrumamos nossos pertences para partir. Adentramos ainda mais na floresta, nos afastando definitivamente do campo de margaridas. Pergunto para minha aliada onde realmente fica o esconderijo da última carreirista, mas ela ri e diz que somente sendo muito louca para partilhar a informação que se tornou o elo mais forte em nossa sensível aliança. Gostaria de ter contestado, mas a garota está correta.

Em algum momento, Sapphire fica entediada e tenta puxar assunto como se não estivéssemos caçando um ser humano para depois matá-lo a sangue frio ― começo a perguntar-me se a garota do 10 realmente sabe que tudo isso aqui é real, que é matar ou morrer.

― E então, como você fez aquele lance com a ruiva do tridente? ― ela pergunta enquanto afasto alguns galhos baixos de nossos rostos. ― Sabe, arremessar o machado. Nunca tinha visto algo parecido antes, nem mesmo com os carreiristas das outras edições.

Respondo, apenas porque estava de bom humor.

― Aquilo? Foi fácil. Eu mirei e atirei. ― E então acrescento: ― Por quê? Vocês não aprendem a lançar machados no Dez?

Sapphire revira os olhos.

― Eu sei o que é sarcasmo ― diz secamente, pondo fim na conversa.

•••

Nas primeiras horas de caminhada, chego a pensar que Sapphire está andando a esmo, sem um destino verdadeiro, pois até mesmo alguém sem um pingo de cérebro perceberia que ela está ziguezagueando pela arena ― ora dirigindo-se para leste, ora para oeste e algumas vezes dando meia-volta, em sentido sul. Estou prestes a questionar seu senso de direção quando finalmente percebo sua real intenção. Possivelmente a única coisa que nos mantém unidas é o conhecimento portado pela garota do 10. Talvez ela tema que se eu souber onde fica o tal esconderijo, eu resolva partir seu crânio em dois. Portanto, navegar aleatoriamente pela floresta de faias e bétulas, além de deixar-me confusa, também é a apólice de seguro de Sapphire. Confesso que acabo sentindo um pouco de inveja da garota do chicote por nunca ter pensado nisso.

― E então, qual é a tal vantagem que você disse que a carreirista do Distrito Um tem? Foi por isso que você resolveu deixá-la em paz, certo?

Minha aliada acena positivamente com a cabeça.

― Ela tem uma maldita zarabatana.

Franzo o cenho.

― Zarabatana? ― questiono. Após anos e anos assistindo aos Jogos, acabei me familiarizando com a escolha de armas dos carreiristas. Geralmente são as de aparência mais mortífera e de curto alcance, como espadas e facas.

― É. Uma zarabatana. Eu tentei atacar ela na Cornucópia quando o gongo soou e quase fui atingida. Mas eu aprendi uma coisa muito interessante no treinamento: toda arma tem sua falha. A falha da zarabatana é que pode ser lançado apenas um dardo por vez. A minha esperança é que a carreirista tenha tempo de atirar uma única vez e, enquanto ela recarrega, matamos a desgraçada. Mas, claro, ela não parece ser o tipo que erra.

Então entendo. Tenho vontade de rir e afastar-me nesse instante, porque minha aliada é muito mais esperta do que eu pensei. Imagino que ela não acredite que nós duas iremos conseguir eliminar a carreirista. Longe disso. Como Sapphire mesmo disse, é apenas um dardo envenenado por vez. Quando a garota do 1 der o primeiro tiro ― e matar uma de nós ― a outra estará à espera para acabar com os Jogos. Sapphire não espera que o último combate seja entre nós, mas sim entre ela e a carreirista.

•••

O sol das quatro horas está sobre nós quando resolvo perguntar a que distância estamos do esconderijo da carreirista. Sapphire McLean morde o lábio enquanto pensa a respeito disso. Cinco segundo depois dá de ombros e apenas diz que não falta muito. Ela ainda não desistiu de ficar ziguezagueando pela arena, sem nunca seguir em linha reta, e está começando a me irritar.

Sapphire vira bruscamente para a esquerda quando noto o primeiro floco cinzento rodopiar no céu. Algum vulcão está acordando e sei o que isso significa. Essa é a maneira dos Idealizadores dos Jogos dizerem que estão com pressa, que eles precisam de um vitorioso o mais rápido possível.

― É melhor nos apressarmos ― digo. ― Não quero dar motivos para que ativem outro maldito vulcão.

A garota do Distrito 10 concorda e vira novamente para a direita, marchando mais rápido do que antes. Algo me diz que não ziguezaguearemos mais.


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Notas finais do capítulo

Vamos, vamos! Façam as suas apostas!
Até quinta!



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