Os Jogos de Johanna Mason escrita por Tagliari


Capítulo 22
Capítulo 21 ― Afável


Notas iniciais do capítulo

Só quero lembrar que esse título ("Afável") não é aleatório. Leiam e descobrirão que há um motivo para isso (hehe).
E muito obrigado por esse incrível feedback que a história está tendo!

E pela minha mãe.
Pela minha família.
Pelo meu cachorro cego.
Pelo meu primo distante de quarto grau.
Pelas tias da cantina.
Por Darth Vader.
Por Esparta.
Eu voto NÃO!

REVISADO EM 26.04.2017



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BURRA, BURRA, BURRA!

Como pude ser tão estúpida? Uma completa idiota! Acontece que eu estava tão absorta, tão concentrada no combate acontecendo no campo de margaridas, que simplesmente esqueci-me de algo muito importante: que ambos os tributos do Distrito 4 ainda estão vivos. E se os dois ainda vivem, é quase certo que estejam metidos em uma aliança para matar o resto de nós. Agora, não é difícil descobrir a estratégia deles ― um surrupiaria os suprimentos do banquete enquanto o outro daria cobertura na orla da clareira. Simples e fácil.

A campina não é imensa, mas tem uma boa extensão. Assim, há muitos lugares para o aliado de Savera montar tocaia, atento, apenas esperando para surgir se necessário. Entretanto, seja uma coincidência ou o destino rindo na minha cara, o sujeito optou logo pela área sul do descampado, onde eu estou. Pergunto-me se realmente existe algo chamado sorte.

O tributo masculino do Distrito 4 arqueia uma sobrancelha, o ar divertido no rosto. Ele tem as mesmas características que a maioria dos carreiristas do 4 têm ― alto, magro, forte e bronzeado. Seu cabelo naturalmente encaracolado encontra-se desgrenhado pelos longos dias sem pentear. O garoto segura uma espécie de espada de duas pontas que, assim como o nome deixa claro, tem duas lâminas afiadíssimas, uma em cada extremo.

― Você parece estar meio cansada, Coronna. Não quer sentar um pouco? ― ele pergunta em tom cortês como se não estivesse pensando em me matar. Um perfeito cavalheiro.

Johanna ― digo antes de controlar a língua. ― Meu nome.

Ele franze o cenho, confuso.

― Johanna? Hum, vocês do Sete tem um gosto questionável para nomes, se me permite dizer. Ainda prefiro Coronna ― o garoto solta um risinho seco. ― Afável. Esse é o seu significado em uma língua muito antiga que você nunca deve ter ouvido falar. Combina com você. ― O tributo rodopia a espada de duas pontas lentamente apenas com o polegar e o indicador, demonstrando a habilidade de quem passou anos praticando com a arma. ― Eu sou Eros Redpath, Distrito Quatro, mas imagino que você já saiba, certo?

Errado.

Eros anda em minha direção e instintivamente dou um passo para trás. Minhas costas batem no tronco duro da faia que eu usava como esconderijo até um minuto atrás. Mesmo se eu quisesse, não há como fugir.

Atrás de mim ouço o ruído do choque de metal contra metal, Savera enfrentando o tributo do 10 no ágape. Se estiver curioso para saber o que está acontecendo com sua parceira de distrito, Eros não demonstra, pois não tira os olhos de mim.

― Você realmente parece ser uma boa pessoa, Coronna. Mas você sabe o que eles esperam que eu faça, não sabe? ― Ele dá mais um passo em minha direção enquanto conversa e para. ― Torço para que entenda que a culpa não é minha, mas sua por ter vindo aqui. Bom, não aqui nos Jogos, mas aqui no banquete, sacou? Hum, deixa para lá. Você não parece ser burra. Deve ter entendido. ― Logo percebo que o tributo tem a mania de andar enquanto fala, talvez na tentativa de soar ainda mais ameaçador.

O carreirista está a três metros de distância. Meus machados estão prontos, em mãos, mas sei que se eu tentar atacar agora, sua espada de duas pontas, que é bem mais longa que o alcance de minhas armas, me decapitará em meio segundo. Preciso dele perto de mim, sentir sua respiração em minha pele. Terei apenas uma única chance.

Ignoro o coração martelando em meu peito e engulo em seco.

― Mas você não precisa fazer isso ― digo sem convicção, embora saiba perfeitamente que ele necessita disso. ― Por favor, não me mate.

― Ah, eu preciso sim. Você sabe que eu preciso se quiser voltar para casa. ― Mais dois passos.

Falta pouco. Tão pouco...

Eros alisa a lâmina de sua arma com o polegar. Por um instante a espada posiciona-se de maneira que reflete a débil luz do crepúsculo em meu rosto.

― E o que vai fazer com sua parceira? ― questiono mesmo sabendo a resposta, cerrando os dedos em meus machados. Eros parece ignorar completamente as armas em minhas mãos.

― O que tem que ser feito. Matá-la. Mas garanto que sentirei falta de Saah depois disso ― o carreirista comenta enquanto chega ainda mais perto de mim. Dois metros de distância, no máximo. Ele suspira e franze o cenho. ― Você é realmente inofensiva, não? Mags disse para nós tomarmos cuidado com você, que você podia estar armando algo, mas olhe só, tão inocente, tão afável e acima de tudo tão desprotegida, mesmo com dois macha...

Subitamente os olhos de Eros Redpath arregalam-se como se estivesse lembrando-se de algo ou acabado de notar ambos os machados em minhas mãos. Não resisto e solto um sorrisinho travesso quando o tributo do Distrito 4 atrapalha-se ao andar para trás e erguer a arma em defesa. É tarde demais.

Em um golpe, traço uma linha horizontal com a lâmina do machado, mirando no belo pescoço bronzeado do inimigo. Nesse exato segundo ele consegue virar-se para correr e abrir distância entre nós, sendo que a vantagem principal da espada de duas pontas é o alcance. Posso ter errado o alvo, mas enterro a cunha bem entre as omoplatas do adversário, que cai ao chão.

O golpe não é o suficiente para que ele morra, mas deixa-o bastante debilitado. Chuto a espado para longe de suas mãos, fazendo-a bater em uma árvore. O carreirista tenta se levantar, mas os braços cedem sobre o peso do corpo. O máximo que consegue é rolar no chão para encarar-me. Um esguio filete de sangue escorre por seus lábios entreabertos.

Sei que deveria sentir pena dele ou repulsa de mim, mas a única sensação que me preenche é o mais puro e líquido ódio fervendo em minhas veias. Inofensiva e inocente, foi disso que ele me chamou. Inofensiva. Inocente. Afável. Estas são coisas que não sou há muito tempo. Eu mostrarei a ele do que sou feita.

― Adivinha só? Apesar de velha, sua mentora estava certa. Você deveria ter tomado cuidado, seu merdinha. Mas, claro, você foi burro demais para ouvir, não é? ― digo em tom ríspido e faço uma pequena pausa, talvez esperando que ele implore por piedade ou algo do gênero.

Como resposta, Eros fecha os lábios com esforço e junta uma pequena quantidade de saliva e sangue. Acho que o cuspe deveria ter atingido meu rosto, mas o máximo que o carreirista consegue é fazer uma baba cor-de-rosa escorrer pelo queixo.

Veremos se você ainda me achará afável depois disso.

― Pois bem. Está na hora de pagar pela burrice, Eros Redpath.

Ergo um dos machados acima dos ombros e, antes que mude de ideia ou a raiva se dissipe, desço a lâmina com força contra a garganta bronzeada do tributo, separando-lhe a cabeça do corpo. O canhão soa. No mesmo instante, o membro decapitado rola até meus pés, os olhos vidrados. Mortos.

Encaro o fluxo constante de sangue que escorre do corte no pescoço. É estranho, mas eu não tenho a ânsia de vômito ou a culpa que senti pela garota que matei um dia atrás. Há apenas um vazio no peito, seco. Estou mudada, sei disso. Mas a verdade é que me sinto diferente desde o instante em que Maxell Seekirk anunciou meu nome na colheita há tanto tempo ― apenas não quis aceitar isso antes. Afinal, os Jogos Vorazes mostram o pior das pessoas desde o primeiro segundo.

Com as mãos suadas, coloco mais força no aperto dos machados para que não escorreguem por entre meus dedos. Respiro fundo uma, duas, três vezes. Um segundo tiro do canhão tira-me do torpor. Não preciso olhar para o campo de margaridas para saber que Savera já acabou com o tributo do Distrito 10, mas mesmo assim o faço.

Não sei o que aconteceu durante o tempo que eu demorei em lidar com o carreirista do 4, mas a clareira se transformou. À luz do sol poente, as flores, antes brancas com miolos amarelos, estão salpicadas de um vermelho-vivo. A visão deveria ser grotesca e repulsiva, sei disso, mas encaro o quadro e noto uma certa beleza intangível, hipnotizada. Tão bonito. Tão singular. O corpo do inimigo de Savera está oculto pelas margaridas enquanto a própria carreirista respira ofegante, as mãos manchadas de sangue.

Pergunto-me se eu conseguiria matá-la agora, uma vez que Savera encontra-se exausta após matar dois tributos. Em comparação, eu estou cheia de energia. Foi fácil eliminar seu parceiro de distrito. É nesse exato momento que os olhos da carreirista encontram os meus. Sua boca abre-se em uma exclamação de descrença quando percebe quem está aos meus pés. Sim, otária, eu o matei, gostaria de ter dito, embora dificilmente ela escutasse de onde está.

Não sei se é realmente eu ou se são os Jogos Vorazes tomando conta de mim, mas sinto-me deliciosamente satisfeita diante de toda a situação. Para provocá-la, chuto a cabeça de Eros para o lado, um sorrisinho estampado no rosto. Venha me pegar.

Savera solta um ruído que vem da garganta e logo se transforma em um grito gutural de ódio destilado. Ela tira a mochila cheia das costas, jogando-a sobre as margaridas pintadas de escarlate. Segura o tridente com ambas as mãos e corre, avançando em minha direção com um único objetivo estampado nos olhos faiscantes: matar-me.

Dou alguns passos para o lado, afastando-me do corpo de Eros. Paro. Respiro fundo. A carreirista se aproxima tão imponente quanto a locomotiva que me levou do Distrito 7 para a Capital. Estico os braços como se fosse um pássaro prestes a levantar voo, um machado em cada mão. Deslizo os pés alguns centímetros para ter um bom apoio. Espero.

Conforme ela corre, tenho a impressão que Savera pretende me atropelar em um belo ataque frontal. Aguardo a carreirista estar bem perto de mim para fazer o primeiro movimento. Tem que ser perfeito.

Um dos passatempos favoritos dos lenhadores do Distrito 7 é um jogo criado para os dias tediosos após o expediente. Nem todos participam. Nós nos esgueiramos por ruelas completamente abandonadas até chegarmos atrás da Aldeia dos Vitoriosos, onde há uma pequena floresta de olmos. O jogo funciona assim: você tem que lançar seu machado o melhor que puder e torcer para que ele finque-se no tronco. Os pontos são contados a partir da distância do lançamento e precisão do impacto. No time das mulheres, sempre fico em quarto lugar. Bom, se algum Pacificador nos pegar, nós todos seríamos castigados severamente ao passarmos alguns longos dias presos no Pilar da Vergonha, nus e famintos. Mas ouvi dizer que Blight Fairbain, o vencedor da quinquagésima nona edição dos Jogos Vorazes, sempre oferece favores aos chefes dos Pacificadores para que o jogo fique em segredo. Claro, os boatos nunca foram confirmados.

É exatamente assim que pretendo matar Savera, uma lâmina voadora cravada entre os olhos. Então, finalmente, ela está no ponto exato para o golpe. Não penso duas vezes. Movo o braço direito para trás e lanço-o para frente como se fosse um chicote, soltando o machado uma fração de segundo depois. Não há tempo para torcer ou questionar meus métodos, apenas observar o borrão que a arma é, rodopiando.

No último instante, Savera ergue o tridente. O machado choca-se com o metal dourado e ouço um ruído metálico agudo. Um piscar de olhos depois, minha preciosa arma cai ao chão, inútil. Até parece que ela estava esperando por isso. É tarde demais. Ela está bem em cima de mim, os olhos castanhos fechados em fendas.

Ergo o segundo machado na esperança da carreirista cometer um deslize e deixar uma brecha para eu agir. Infelizmente ela deve ter calculado cada movimento. Estou perdida. Morta. Ferrada.

Então ela tropeça e cai violentamente de encontro ao chão, rolando algumas vezes. Incrédula, sinto que deixei algo passar. Afinal, Savera não parece o tipo de pessoa desastrada que pisa nos próprios pés. Analiso a cena rapidamente enquanto a carreirista tenta se levantar, tonta demais para obter sucesso imediato. É quando percebo.

Enrolado no calcanhar dela encontra-se a cauda de uma serpente negra e esguia. Não. Estou errada. Não é uma cobra, mas, sim, a ponta de um chicote. Acompanho a extensão da arma até notar o par de mãos delgadas que a segura. A pessoa que me encara, um sorrisinho convencido no rosto, é ninguém menos que Sapphire McLean, a garota da pele manchada do Distrito 10.


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Notas finais do capítulo

Não, galera. Afinal, não foi Sapphire a aparecer pra dizer oi pra Jojo no último capítulo, mas sim um tributo aleatório com um nome aleatório usando uma arma aleatória de um distrito aleatório. E então, curtiram o diálogo? E o que acham que vai acontecer agora que a Sapphire apareceu? Teorias? Então comentem aqui. Juro que não mordo.
Até.



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