Os Jogos de Johanna Mason escrita por Tagliari


Capítulo 21
Capítulo 20 ― Campo de margaridas


Notas iniciais do capítulo

Olhem só que título legal e despretensioso: Campo de margaridas.
Aposto que vocês devem estar se perguntando algo do tipo "Nossa, o autor prometeu sangue, mas claro que não vai ter sangue nesse capítulo porque é só ver o título. Nada de ruim aconteceria em um capítulo com 'margaridas' no nome" (ok, talvez ninguém esteja se perguntando isso, mas vamos ignorar os fatos e nos ater ao imaginário). Mas, claro que não enganei ninguém e que vai ter sangue e mortes gratuitas, sim (o melhor tipo, né?).
Então, sem mais delongas. Boa leitura!

REVISADO EM 25.04.2017



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ENCARO O CÉU AZUL como se isso trouxesse-me mais informações, mas Claudius Templesmith se fora, deixando tudo no mais completo silêncio. Repasso suas últimas palavras na minha cabeça repetidas vezes. O que ele quer dizer com a Cornucópia estar inabitável devido a acontecimentos recentes? Pergunto-me se o chifre dourado sofreu com a erupção do Vulcão Norte. Será se a extensão dos estragos foi assim tão pior do que eu pensei?

Por um segundo, imagino a imensa escultura de ouro reduzida a cinzas e metal derretido após ser atingida por uma enorme bola de fogo. O pensamento me faz sorrir. Se a Cornucópia realmente estiver destruída e, o melhor de tudo, inabitável, onde os carreiristas estarão? E os suprimentos ― restara algum? Agora, se meu novo melhor amigo, Claudius Templesmith, estiver correto, quais vantagens o restante dos carreiristas têm sobre mim? Nenhuma.

Antes de mergulhar em um mundo alternativo de pensamentos e sonhos felizes onde vencerei os Jogos Vorazes sem problemas ou dificuldades, lembro-me da citação do comentarista sobre formigas mostrarem o caminho e campos de margaridas indicarem o local. Forço as engrenagens da minha cabeça a cooperarem. São instruções, imagino, de como chegar até onde o ágape será realizado, uma vez que a Cornucópia ― geralmente utilizada para sediar tal evento ― está fora de cogitação.

As formigas mostram o caminho. O campo de margaridas indica o local, as palavras do homem da Capital ecoam em meus ouvidos.

Sinto um irritante formigar em minhas canelas, os insetos liberados durante a noite pelos Idealizadores escalando-me como seu eu fosse uma árvore. Olho para o chão. Centenas de formigas pontilhando o tapete de folhas secas. É quando noto o comportamento anormal dos espécimes. Independente de onde as formigas partem ― troncos, musgos e formigueiros ―, elas sempre caminham em uma única direção: o leste da arena. É como se estivessem ouvindo um chamado inaudível apenas para mim. Finalmente a frase de Claudius faz um sentido absurdo em minha cabeça. Não é uma metáfora o que ele disse. Longe disso. É algo óbvio. Eu simplesmente devo seguir as formigas.

Agora que matei a charada, faço um pequeno muxoxo, pensativa. Ir ou não ir ao banquete? Basta sentir o peso da mochila nas costas para saber que tenho comida o suficiente para passar no mínimo mais uma semana. E, além do mais, sempre há mortes nos ágapes. É seguindo esse pequeno raciocínio que tomo minha decisão. Espano as formigas das pernas, pego ambos os machados e vou para o leste sem tirar os olhos de minhas pequenas bússolas.

Já passei tempo demais nesse inferno. Está na hora de ir para casa, para minha família, e se tiver que matar algum carreirista arrogante no processo, bom, quem sou eu para não fazê-lo? Estou chegando, Distrito 7, penso com um sorrisinho atípico querendo aparecer em meu rosto.

•••

As cinzas pararam de cair e aos poucos vão sendo varridas pelo vento, a floresta retornando ao seu antigo esplendor mesmo que de forma lenta.

Sigo as formigas sem problemas, uma vez que a arena ficou infestada delas em questão de minutos. Enquanto caminho, tento imaginar como os Idealizadores conseguiram fazer com que os insetos tivessem esse comportamento, mas nada me vem à mente. Concluo que, seja lá o que for, está acima das minhas habilidades intelectuais.

Percebo que estou marchando para uma parte da floresta antes nunca desbravada por mim e isso me faz ficar atenta a qualquer tipo de armadilha ou bestantes. Na metade do dia, avisto uma pequena porção de cerejeiras carregadas de frutas. Desvio rapidamente do percurso e colho algumas para ir mastigando. Guardo a máscara de proteção respiratória quando percebo que não há mais indícios do odor forte de enxofre. O ar finalmente não se encontra em estado venenoso.

O sol das três horas arrasta-se quando começo a ficar impaciente. Não importa para onde eu olhe, nunca encontro o tal campo de margaridas. Há apenas faias, bétulas, cedros, rochas e arbustos. Decidida, engulo a inquietação que cresce dentro de mim e sigo em frente, um passo de cada vez. Afinal, Claudius Templesmith mandou-nos ir rápido antes de desaparecer na estática, certo? Quem sabe o quão longe está o banquete do ágape?

Apresso o passo. Tenho apenas até o pôr-do-sol.

Não faço pausas para descansar. O máximo que me permito é diminuir o ritmo da caminhada para passar uma nova camada da pomada milagrosa furtada da minha última vítima. Agora resta quase nada do remédio.

A vida na floresta é exaustiva e demanda muita energia. Já estou bem mais magra do que antes, perdendo os quilos a mais conseguidos durante minha estadia na Capital. O desejo insaciável de devorar todos os meus enlatados e engolir os bolinhos de uma vez só vai ficando forte, quase incontrolável. E isso instintivamente me faz lembrar que a última vez que vi um animal vivo na arena foi na noite da erupção do vulcão. Não há qualquer indício de mapaches, cervos ou até mesmo as corujas que não me deixavam dormir à noite. É como se tivessem desaparecido ― o que é possível, afinal, este é os Jogos Vorazes.

Acabo abrindo uma lata de canja de galinha e bebericando durante a caminhada. O que eu não daria por algo mais suculento e fresco? Assopro meus desejos para longe quando penso que deve haver tributos mais desesperados e famintos do que eu, agora que houve o sumiço repentino da fauna local, restando somente formigas e insetos irritantes. Isso me preocupa.

O desespero faz coisas engraçadas com as pessoas. Quando elas não têm mais o que perder, tornam-se perigosas, às vezes mortais. Bom, foi isso que aconteceu com Rhesus, o antigo açougueiro da parte rica do Distrito 7. Em um belo dia recebeu a notícia de que sua esposa grávida fora morta e violentada por um Pacificador bêbado. Ouvi dizer que Rhesus ficou furioso e conseguiu encontrar o agressor, que nem se deu ao trabalho de negar o ato ― o que foi trágico, pois o açougueiro levava consigo o facão que usava para cortar os pedaços mais gordos de carne. Na manhã seguinte, acordei com os tiros do pelotão de fuzilamento. Disseram que o homem designado para arrumar a bagunça na casa do Pacificador assassinado demorou três dias para limpar todo o sangue.

Penso em sete tributos loucos e desesperados por um pedaço de pão no mesmo lugar e estranhamente sinto uma pontada de contentamento. Haverá mortes, com certeza, e não será o meu rosto a aparecer no céu essa noite.

Então percebo que o fluxo de formigas está maior do que antes, mais intenso. Mal consigo distinguir o que é chão e o que é inseto. Estou chegando, concluo. Basta o pensamento cruzar minha cabeça para que eu note as árvores rareando, ficando mais espaçadas entre si.

E é assim, em um passe de mágica, que me deparo com uma pequena clareira de no máximo uns vinte metros de diâmetro. O que há no meio da campina? Um imenso campo de margaridas de pétalas brancas e miolos amarelos, é claro, chegando à altura dos joelhos. O aroma inebriante das flores cobre até mesmo o insiste odor de enxofre que toma toda a arena. “As formigas mostram o caminho. O campo de margaridas indica o local”, recito mentalmente. O ágape acontecerá aqui.

Não vejo a luxuosa mesa do banquete em qualquer lugar, tampouco indícios de outros tributos, e isso me deixa inquieta. Tenho que lembrar-me que o ágape terá início apenas no findar do dia, ao pôr-do-sol, e ainda falta cerca de uma hora e meia para tal.

Respiro fundo.

Sei o que devo fazer.

Acelerando o passo, circundo a clareira, tendo a proteção das árvores às costas, à procura de perigos ou ciladas. A volta dura menos de quinze minutos e retorno ao ponto de partida. Devo ter sido a primeira a chegar. Abro uma pequena distância do campo de margaridas e encontro um belo arbusto espesso que chamara minha atenção durante o trajeto. É denso o suficiente para esconder uma pessoa ou, no meu caso, meus pertences mais vitais.

Com cuidado, coloco minha mochila dentro do arbusto, antes bebendo um longo trago de água, assim acabando com a última gota ― quando sair daqui tenho que encontrar outras fontes termais. Afasto-me alguns passos e aprecio meu trabalho. Melhor do que está, impossível.

― Não me deixem na mão ― sussurro aos meus machados enquanto aliso os cabos com os dedos.

Retorno ao meu ponto de observação, atrás de uma triste faia negra, repassando o plano. Não vim aqui pelos suprimentos, mas para dar uma acelerada nos acontecimentos ― matar. Decido que o melhor lugar é onde estou, uma vez que estaria desprotegida demais no centro do campo de margaridas, pois a última coisa que quero é ter que lutar contra a garota do tridente em um lugar aberto. Devo observar meus adversários e atacar apenas quando tiver certeza da vitória. Pegá-los despreparados, distraídos. Enterrar minhas lâminas em suas nucas.

Conforme os minutos se arrastam, mais inquieta fico. Onde estão? Onde todos estão? Pergunto-me se alguém chegará a tempo para o ágape, se os tributos estão dispersos demais pela vasta arena. Mas lembro-me do Vulcão Norte cuspindo fogo. Isso com certeza deve ter servido para deixá-los no mesmo rumo, certo? Espero que sim, pois a ideia do Vulcão Sul entrar em erupção para nos arrebanhar novamente não me atrai.

Atrás da faia, espio o campo de margaridas pelo que me parece ser a milionésima vez. O sol está se escondendo , deixando o céu alaranjado, quase cor-de-rosa. A cada batida frenética do coração, mais certa de que ninguém virá estou. O que até chega a ser uma boa ideia. Assim, terei todo o banquete apenas para mim.

É quando sinto um leve tremor sob meus pés. Meus músculos retesam, pois o chão tremeu da mesma maneira segundos antes do vulcão entrar em erupção. Entretanto sinto apenas o aroma agradável das margaridas camuflando o leve odor do enxofre. Então as flores de pétalas brancas tremem e, bem no centro da clareira brota uma bela mesa luxuosa. O compartimento terrestre ocultado pelo campo florido fecha-se com um segundo tremor na terra.

Minha boca saliva.

Não estou tão longe da campina e posso ver tudo perfeitamente. Há três castiçais dourados com velas acesas ao longo da mesa impressionante. À distância, identifico perus, porcos, frangos, uma vaca inteira fincada em um rolete e imensas bacias de saladas e batatas. Uma parte da mesa foi designada apenas para doces, bolos e manjares. Avisto uma pequena pirâmide com docinhos idênticos aos que sobraram em minha mochila.

É tudo tão apetitoso e convidativo ― um digno convite para a morte. Engulo a saliva e tento clarear meus pensamentos. É uma armadilha, tudo obra dos sádicos Idealizadores dos Jogos.

Estou ponderando se devo me aproximar e pegar uma coxa ou duas do peru absurdamente enorme quando dois borrões cruzam meu campo de visão. O primeiro parte da esquerda e o outro, da direita. Demoro uns instantes para distinguir quem eles são. A primeira pessoa que identifico é a ruiva do Distrito 4 empunhando seu mortífero tridente de ouro. O segundo sujeito é um garoto magricelo que não me lembro a qual distrito pertence ― talvez o 3. Ele segura uma faca, acho. Um tributo corre para os braços do outro.

Savera Spectrone posiciona a ponta da sua arma de tal maneira que tenho certeza que o garoto morrerá com um golpe certeiro, mas o tributo do Distrito 3 mergulha no mar floral no último segundo, desviando-se da fatalidade, agora oculto de mim pelas margaridas. A carreirista hesita por um segundo, obviamente surpresa por ter errado, e vira nos calcanhares. Ela encara onde imagino estar o inimigo e, usando o tridente como uma lança, enterra a ponta onde provavelmente localiza-se seu peito. Não ouço o tiro de canhão. Ela errou, mais uma vez.

O tempo que a carreirista do Distrito 4 demora em retirar a ponta dourada do solo é o suficiente para que o oponente consiga se levantar a um metro de distância. Concluo que ele deve ter rolado para o lado para não ser atingido. Esperto. Ele avança na direção da garota, brandindo a faca, raivoso. Penso que finalmente chegou o fim de Savera Spectrone, a queridinha da Capital, mas acontece que esta também tem seus truques. Das costas, a carreirista retira uma brilhante adaga tão dourada quanto a Cornucópia e desfere um golpe que acerta o braço direito do adversário.

O garoto do Distrito 3 leva a mão para estancar o ferimento, mas é tarde demais. Com uma única estocada, Savera consegue que seu tridente perfure a garganta do inimigo com a ponta do meio da arma. Ele cambaleia, dá dois passos para trás e três para a direita. Em seguida, cai ― algumas margaridas agora com as pétalas brancas pintadas de vermelho. Dez segundos depois, ouço o tiro do canhão.

Cerro os dentes.

Estúpido. Somente sendo extremamente burro para achar que, empunhando algo tão insignificante quanto uma faca de manteiga, conseguiria desarmar e matar uma carreirista que deve ter treinado a vida toda para esse dia. A morte do tributo do Distrito 3 foi, no mínimo, merecida devido a sua brilhante estupidez.

Savera não perde tempo sentindo pena de sua vítima e vira-se para a mesa do banquete, deixando o tridente de lado. Somente agora percebo que ela carrega nas costas uma mochila preta vazia. Ela abre o zíper e começa a fazer um limpa geral nos suprimentos, escolhendo frutas e carnes com rapidez. Em um dado momento, a ruiva coloca um pão na boca e vai mastigando-o enquanto joga um grande pedaço de porco na mochila quase cheia.

Imagino que esse deve ser o momento perfeito para agir. O campo de margaridas está limpo de tributos enquanto Savera encontra-se totalmente distraída recolhendo alimentos. Penso no quão fácil será esgueirar-me sorrateiramente e então acertar o topo dessa cabeça irritantemente perfeita com um de meus machados. Eu não podia ter pensado em circunstâncias melhores.

Respiro fundo. Estreito o aperto nos cabos dos machados.

Estou quase abandonando meu esconderijo proporcionado pela faia negra quando noto que um movimento suspeito na orla da clareira chama a atenção de Savera, fazendo-a virar a cabeça para a esquerda.

Como se fosse um boi raivoso, o tributo que reconheço ser do Distrito 10 investe violentamente contra a carreirista despreparada. A lança que o garoto atarracado segura chega a dar um ar cômico na cena, como se a arma fosse de brinquedo na mão absurdamente grande do tributo. Savera não tem tempo para reagir, uma vez que seu precioso tridente encontra-se no lado oposto da mesa ― mas, claro, ela ainda tem a faca.

Estou tentada a ignorar o bom senso e partir para a luta também, afinal, ambos estarão absortos demais no combate para perceberem minha aproximação. Tenho certeza que posso dar conta dos dois, um machado destinado para cada omoplata.

Dou o primeiro passo em direção ao campo de margaridas quando uma voz me para:

― Apreciando a paisagem, Distrito Sete?


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Notas finais do capítulo

E como o previsto, esse ágape conseguiu atrair os tributos, né? Tem a ruiva do D4? Tem! Tem Johanna Mason? Tem! Tem garoto aleatório do D3? Tem!
E então, galera, alguma teoria de quem seja a tal pessoa que aparece no final? Será Sapphire McLean? Será o fantasma de Silas Underwood? Ou será algum tributo antes nunca apresentado a vocês? Vamos lá, então me digam o que acham.
Até quinta!