Os Jogos de Johanna Mason escrita por Tagliari


Capítulo 2
PARTE I: MENTIROSA / Capítulo 1 ― Apenas um nome


Notas iniciais do capítulo

Tan-tan-tan! Como o prometido, aqui estou eu!
Galera, muito obrigado a todas as pessoas que comentaram no capítulo anterior (vocês com certeza conseguiram um lugar no céu!), me dando esperanças de que essa história não irá flopar.
Sem mais delongas, aproveitem o capítulo.

REVISADO EM 23.03.2017



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EU ADORO OS DOMINGOS. É o único dia em que posso descansar totalmente, sem me preocupar com escola ou longas tardes cortando árvores no Setor 8 da floresta. Para dias assim até estabeleci um pequeno e acolhedor ritual: de manhã, minha mãe permite que eu durma até um pouco mais tarde e, quando acordo, passo algumas horas distraindo Cahlia, minha irmã mais nova, e conversando sobre qualquer assunto irrelevante com Aggie, a mais velha; à tarde, saio pela cidade com Siena, minha única amiga, geralmente para flertar com Aloe, o filho do sapateiro. Entretanto hoje é um domingo diferente. Não sairei com Siena ou passarei horas tagarelando com Aggie ― sequer consigo dormir até um pouco mais tarde. Afinal, hoje é o dia da colheita.

Na cama de molas, quase posso sentir o sol se erguer lentamente, rompendo a fina névoa matinal. Mexo-me no colchão, tentando arranjar uma posição mais confortável, fazendo-o ranger desagradavelmente. Há mais duas pessoas no quarto de persianas cerradas. Não preciso ver para saber que minhas irmãs estão acordadas e fingindo dormir, assim como eu.

Olho fixamente para o teto. É escuro, opaco e sem vida... Assim como tudo no Distrito 7, concluo com tom de humor melancólico. Logo, os Jogos Vorazes tomam espaço em minha mente do mesmo jeito que vem acontecendo na última semana. Mas eu não devo temer, pois as chances nunca me desapontaram. Faz muito tempo que alguém perto de mim foi sorteado. Eu tinha apenas dez anos quando Mistie, a filha de um casal de amigos da minha família, foi para os Jogos. Meus pais tiveram esperança de que ela poderia voltar viva, pois Mistie era uma ótima lenhadora. “Ela maneja um machado melhor do que qualquer outra pessoa que conheço. Ela com certeza tem mais chances que qualquer um de lá”, meu pai disse enquanto assistíamos a garota vestida em uma fantasia horrível de árvore. O distrito ficou eufórico com sua bela nota dez nas avaliações individuais e a esperança crescia no peito de cada um. Então as plataformas subiram e os tributos entraram na arena. A pequena lembrança de casa que Mistie levou aos Jogos ― uma bola de madeira polida ― caiu antes dos sessenta segundos. Bum!, foi o que ouvi quando ela explodiu em milhares de pedacinhos vermelhos e úmidos. Esse é um lembrete especial para o Distrito 7 de que não importa o quão grande suas chances sejam nos Jogos Vorazes, você sempre vai morrer.

Fecho os olhos e apenas torço para que não seja o meu nome a ser lido na colheita. Nem o de Aggie ou Siena, ou até mesmo o de Genus, o sujeito incrivelmente irritante que estuda na mesma sala que eu. Quero ser apenas uma expectadora distante disso tudo. Não quero torcer pela sobrevivência de ninguém. Não quero me decepcionar.

As molas da cama ao lado estalam.

― Johanna? ― uma voz doce soa. É Cahlia.

― O quê?

Mais um ranger de metal enferrujado.

― Você está com medo de hoje? ― sussurra.

Nem hesito ao responder.

― Não ― felizmente, eu minto com a mesma naturalidade que respiro. ― Por quê?

Consigo identificar o vulto pequenino de minha irmã. Sinto que seus olhos estão me encarando.

― Por nada ― ela responde e, no ritmo constante de três respirações, sei que sua cabecinha maquina outra pergunta. Por fim ela diz: ― Há muitos papeizinhos com o nome de vocês duas lá?

Sinto um aperto no peito. Sim, há muitos, eu gostaria de ter dito. Mais papéis do que eu tenho de dedos nos pés e nas mãos.

― Não ― respondo. ― Não tem. Hoje será tranquilo como uma manhã de primavera, florzinha ― tranquilizo-a, pondo fim à conversa.

Logo, minha mãe abre a porta, nos chamando para o café da manhã. Tapo os olhos quando ela ergue as persianas, permitindo que a luz do sol entre no quarto. Cahlia salta da cama, bocejando. Ela é pequena até mesmo para uma garotinha de nove anos, o cabelo castanho embaraçado dando um ar selvagem em suas feições esfomeadas. Ouvi dizer que ela está tendo sérias dificuldades em manejar o machado em suas primeiras lições com o instrumento.

Aggie se recusa a levantar, dizendo estar exausta demais após uma longa semana trabalhando na fábrica de papel. Mas sei que é mentira. A verdade é que ela passa tempo demais com o namorado, o filho da dona da loja de ferragens. Também sei que Aggie está contando nos dedos os dias que faltam para ter dezenove anos, quando poderá sair de casa e se casar com o garoto. “Faltam apenas cento e vinte e sete, Jo”, ela disse para mim na noite anterior. Essa será a última colheita dela.

Trinta minutos depois, estamos todos reunidos ao redor da mesa comendo um pão duro feito de grãos. Engolir a massa é quase tão difícil quanto mastigá-la. O silêncio sobre a refeição chega a ser desconfortável. Meu pai tenta puxar assunto algumas vezes, porém não obtém sucesso. Ele exibe um sorriso forçado que deveria parecer despreocupado e acolhedor. Mas não é difícil imaginar o que ele realmente deve estar pensando. Será se uma de suas duas filhas terá o azar de ir aos Jogos Vorazes esse ano? É de dar pena.

Brincando com um pedaço de pão, estou absorta demais pensando o que o dia de hoje me guarda. Haverá trinta e seis papeizinhos escritos Johanna Mason e quarenta e dois contendo o nome de Aggie. E não posso esquecer que daqui três anos será a vez de Cahlia a enfrentar esse terror.

Tento ocupar meus pensamentos com outras coisas e acabo decidindo que, logo após a colheita, irei conversar com Aloe, o filho do sapateiro. Siena sempre insistiu que o garoto sentia algo por mim e nunca deixou de incentivar possíveis investidas amorosas. Mesmo não gostando de perder meu tempo com baboseiras sentimentais, acho que lá no fundo ― bem no fundo mesmo ― Siena pode estar certa. Eu poderia ter um futuro tranquilo e razoavelmente feliz aqui no Distrito 7, como meus pais. Aloe e eu poderíamos casar quando fôssemos mais velhos. Talvez eu pudesse largar o ofício de lenhadora e ir trabalhar na sapataria quando os pais dele morressem. Não seria uma vida pomposa e luxuosa, mas estaria acima da realidade de muitos cidadãos do 7. Sim. Acho que está decidido. Apostarei todas as minhas fichas em Aloe.

Quando percebo, já está na hora de nos arrumarmos para a colheita.

Minha mãe prepara nosso banho com calma. A primeira a se lavar é Aggie, depois eu e por último Cahlia. Brigo com a escova no momento de pentear o cabelo porque ela sempre enrosca em algum ponto. Quando termino, tenho certeza absoluta que metade dos cachos está caindo com perfeição em madeixas comportadas e a outra metade encontra-se nas cerdas da escova. Acabo usando um vestido azul um tanto quanto velho com cheiro de mofo que pertencera primeiro a Aggie. Essa é a sina da minha família: uma roupa só é descartada quando estiver corroída pelas traças e remendada ao ponto de ser irreconhecível.

Na sala, encontro o resto de meus familiares, todos prontos e me esperando. Quando chego, ouço meu pai limpar a garganta e já prevejo vozes embargadas e carícias na cabeça. Ele se aproxima e envolve Aggie e eu em um abraço apertado, uma filha em cada braço.

― Boa sorte para vocês duas, meus amores ― ele apenas diz após beijar nossas testas.

•••

Há muitas pessoas nas ruas e ruelas do distrito, deixando o espaço ainda mais apertado que o habitual. Elas marcham para a mesma direção: a Praça Principal. Os moradores dividem o caminho com Pacificadores uniformizados que estão segurando armas ameaçadoras em punho. Hoje eles ficam mais atentos do que de costume, afinal, nada pode dar errado, pois este é o começo dos Jogos Vorazes.

O clima vai mudando conforme chegamos mais perto de nosso destino. É como se alguém tivesse estendido um manto invisível de pesar e medo que cobre toda a praça. Nos topos dos prédios de comércios fechados, vejo equipes inteiras de filmagens empoleiradas para que as câmeras peguem o melhor foco do evento.

Não deixo de encarar o Edifício da Justiça, uma construção feita de mármore e colunas imponentes encobertas por hera, enquanto caminho. O palco de madeira já foi erguido e nele há quatro cadeiras, um pódio e duas bolas gigantes de vidro ― uma para os garotos e a outra para as garotas. O palanque está vazio por enquanto.

Aggie e eu abraçamos Cahlia e nossos pais rapidamente antes de nos dirigirmos para a inscrição obrigatória. Após ter o dedo espetado e o sangue coletado, Pacificadores nos guiam até o local onde ficaremos durante todo o desenvolvimento da colheita ― minha irmã vai para o grupo das garotas de dezoito anos e eu para as de dezessete. Conheço a maior parte das meninas daqui, portanto sinto-me obrigada a trocar algumas palavras vazias de conforto. Ficando na ponta dos pés, procuro o aglomerado das meninas de quinze anos, onde Siena deve estar, entretanto sou pequena demais para enxergar além da cabeça da garota negra e alta à minha frente.

Conforme o tempo passa, a Praça Principal vai ficando lotada demais, claustrofóbica demais. Não há espaço para todas as dezenove mil pessoas do Distrito 7 aqui, portanto os atrasados são obrigadas a ficarem nas ruas adjacentes, onde o evento será transmitido ao vivo por telões.

Quando volto a olhar para o palco, vejo que as cadeiras estão sendo ocupadas. Os primeiros a chegar são Blye Lockheart e Phox Prine, os mentores desse ano. Eles são seguidos por Seamus Bishop, o prefeito, e Maxell Seekirk, nosso representante por mais de dez anos. Somente a visão de Maxell já me deixa com náuseas. Nunca suportei esse sujeito. O sotaque da Capital, o visual bizarro e até mesmo o sorriso extremamente branco me deixam enraivecida. Todo ano eu torço para que venha uma pessoa que seja no mínimo menos irritante, porém nunca tive sorte o suficiente.

Duas horas em ponto o prefeito Seamus levanta-se da cadeira e vai ao pódio. Após conquistar o silêncio absoluto da população, começa com a leitura do Tratado da Traição, cujo qual já o tenho decorado na cabeça. Depois lê a lista dos vitoriosos que o Distrito 7 já teve. Somando os que morreram, tivemos nove.

Mesmo estando com o coração na boca e quase desmaiando de tanta expectativa, reviro os olhos quando o prefeito anuncia Maxell, que toma a palavra. Então o acompanhante desata a falar por quase dez minutos ― que para mim se parecem horas ― sobre como está honrado em poder representar um distrito tão imponente como o 7. Ainda salienta em como a simplicidade do nosso distrito o encanta. Pergunto-me o quão trágico seria se ele engolisse o microfone e morresse engasgado.

Assim que o falatório termina, Maxell faz uma pausa e sorri como se esperasse por uma salva de palmas alegres ou a explosão delirante da multidão. Entretanto, recebe apenas o silêncio. O sorriso dele se desmancha e dá lugar para outra expressão, uma ligeiramente mais sombria, mas com um toque de satisfação. É quando ele diz:

― Então vamos à colheita. Garotas primeiro.

Engulo em seco.

Todo o ódio que sinto pela Capital e pelos Jogos Vorazes dão lugar ao medo. Nem consigo desejar sorte para Aggie ou Siena. Penso apenas em mim. Esqueço-me de tudo e todos, focando somente em Johanna Mason. Atenho-me em torcer para que não seja eu a selecionada. Pode ser o nome de qualquer uma, não me importa quem. Apenas não o meu. Odeio essa sensação de autopreservação quando a situação fica complicada. Sinto-me egoísta e desprezível, mas simplesmente abomino o coletivo quando apenas um pode se sair bem. Entretanto isso faz parte de mim, de quem eu sou. Egoísta. Desprezível. Johanna.

O coração acelera quando Maxell paira sobre a bola contendo o nome das garotas. Com a mão estendida sobre a boca de vidro, posso jurar que ele olha diretamente para mim, um sorrisinho prazeroso no rosto tatuado de dourado.

Por favor, por favor, que não seja eu, que não seja eu, torço mentalmente. Por favor, por favor, por favor!

A mão do acompanhante mergulha no mar de papeizinhos como se fosse o bote de uma serpente. Quando a recolhe, há apenas uma tirinha entre o polegar e o indicador. Mantendo o papel ainda dobrado, vai para o pódio e dá dois toques no microfone. Aposto que ele deve ser pago pelo suspense.

Maxell pigarreia. Desdobra o papel. Lê o nome.

É Johanna Mason.


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Notas finais do capítulo

E então? Curtiram? Bem, vale à pena ressaltar que Johanna Mason era uma pessoa, hum, "normal" antes dos Jogos. Portanto, obviamente, não seria sensato já começar com ela toda azeda odiadoadora da vida, porque isso será uma progressão através de todos os obstáculos enfrentados por ela.
Ah, e onde estão todos os leitores que acompanham a fic mas não deram as caras? Vamos lá, galera, não se acanhem. Eu não mordo.
Até.