Os Jogos de Johanna Mason escrita por Tagliari


Capítulo 11
PARTE II: TRAIÇOEIRA / Capítulo 10 ― Quatro picos


Notas iniciais do capítulo

Sangue. Sangue! SANGUE!!!
Agora sim a jiripoca vai piar! Acabou a enrolação. Acabou a encenação. Acabou o Pré-Jogos. Finalmente chegou o capítulo mais esperado (ao menos por mim). Galera, é com muita honra que vos trago o banho de sangue da septuagésima primeira edição dos Jogos Vorazes!
Aproveitem o capítulo e tenham um bom Jogos Vorazes.

NOTA: Ao encontrarem os [ * ], cliquem neles.

REVISADO EM 10.04.2017



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“Não enfrentes monstros sob pena de te

tornares um deles, e se contemplas o abismo,

a ti o abismo também contempla.” ― Nietzsche


UMA VEZ MINHA IRMÃZINHA encontrou um ninho abandonado de gansos selvagens e dentro dele havia quatro ovos. Eu pensei que tiráramos a sorte grande, pois ovos são uma raridade no Distrito 7. Tive que implorar para Dahlia, e posteriormente ameaçar enfiar sua cabeça em um buraco tão fundo que ela acabaria morrendo com minhocas entrando pela boca, até que finalmente a convenci a me entregar os ovos para fazer uma bela omelete para nós duas. Percebi o meu erro assim que quebrei a fina casca e despejei o conteúdo na vasilha. O cheiro de ovo podre é notavelmente desagradável, até mesmo pior do que a gororoba que servem uma vez por semana na escola, e me fez derrubar tudo no chão.

O mesmo odor pungente está em todo lugar, tornando-se levemente mais intenso quando o prato de metal chega a seu destino. Não é insuportável, mas não nego que dá náuseas. O problema é: de onde ele vem?

O sol brilha no céu azul com escassas nuvens aqui e ali, momentaneamente ofuscando minha visão. A Cornucópia deve estar a uns cinquenta metros de distância ― o percurso até ela limitando-se a um chão plano de terra vermelha batida com alguns tufos assimétricos de grama. Os suprimentos deixados pelos Idealizadores dos Jogos encontram-se todos amontoados em duas pilhas suspeitas, perto da boca do chifre dourado. Isso cheira a armadilha.

Olho ao redor para ter uma ideia do que enfrentarei nos próximos dias. Além dos jovens separados de modo equidistante existe uma densa floresta verde. À distância, não posso dizer se conheço as espécies das árvores, mas mesmo assim já sinto-me grata. Ao menos terei um bom esconderijo. Porque essa é uma vantagem muito útil dos tributos do meu distrito quando há vegetação abundante. A maior parte das crianças é colhida de lenhadores ― que é a maioria do distrito ―, portanto sabemos nos virar em um ambiente assim. Já ouvi dizer que tem pessoas de outros distritos que acham isso uma grande injustiça, mas não tenho o que reclamar. Melhor para mim.

Em meus flancos encontro dois tributos postos em seus respectivos pratos de metal. Um garoto magricelo do Distrito 5 em um lado e Sapphire McLean no outro. Ao perceber que estou olhando para ela, a garota da pele manchada dá uma piscadela bem-humorada, sorrindo.

Volto minha atenção para as duas pilhas na Cornucópia, mas antes vislumbro o que há logo após a floresta. Montanhas. Eu deveria ignorá-las, uma vez que nem cogito a ideia de usá-las como refúgio, entretanto algo me deixa curiosa. A princípio não sei exatamente qual o motivo. É então que percebo. Há três montanhas no meu campo de visão. Uma à frente da Cornucópia, na direção norte. A segunda está no meu lado direito, a leste. Por fim, a última, no oeste da arena.

Estreito os olhos para a Montanha Norte. Ela deve ser absurdamente alta para que eu possa vê-la daqui do chão. As árvores que circundam o chifre de ouro dificultam minha vista para o sopé da montanha, de modo que não sei dizer se há vegetação na superfície íngreme ou apenas rochas. Mas consigo enxergar o pico com facilidade. De tão longe, até parece um doce da Capital com o topo salpicado de açúcar branco e cristalino. Imagino ser neve. Essa conclusão me deixa ainda mais preocupada. O clima está quente demais para haver neve. Noto também que a montanha acaba de modo abrupto. É como se um machado gigantesco tivesse feito um corte perfeito, arrancando o topo rochoso e deixando-o plano.

Viro a cabeça e encaro as montanhas em meus flancos consecutivamente. Elas são idênticas à primeira. Gigantescas. Topo plano e liso. Neve. Uma sirene soa em minha mente. Vejo três delas ― uma no norte, outra a leste e a terceira a oeste. Não preciso olhar para trás para saber o que encontrarei, mas mesmo assim o faço. Giro no círculo de metal com cuidado e encaro a quarta montanha. Ela é como as outras, porém porta uma pequena particularidade. Fumaça densa e branca sai do pico como nuvens fofas, fumegando.

Então sei que não se trata de montanhas, mas sim de vulcões. Simples assim. Lembro-me deles em alguma reprise de uma edição antiga cujo vitorioso está morto há muito tempo, e o estrago que pode causar quando ativo, cuspindo lava e bolas de fogo. Forço a memória para resgatar mais alguma informação útil daquela edição. Se não me engano, o comentarista falou algo relacionado ao mau cheiro, que logo desperta outra lembrança. Enxofre. O odor de ovo podre vem do enxofre. Tenho quase certeza disso.

Estou ferrada.

Como se não bastasse ter que lidar com vinte e três tributos loucos por sangue, também tenho que me preocupar com a ameaça eminente de virar churrasquinho quando algum Idealizador entediado quiser animar as coisas.

Bufo pesadamente, odiando todas as pessoas que estão nesse exato momento em uma sala fria de controle, nos monitorando. Quero vê-los mortos. Entretanto julgo que esse não é o momento certo. Não chegarei a lugar algum desprezando-os ou sequer ficando inquieta com a erupção quase certa de um desses vulcões. E se fosse para apostar, diria que o primeiro a explodir será o que está atrás de mim, liberando a fumaça malcheirosa que impregna tudo aqui.

Volto a atenção para a Cornucópia. Não sei quantos segundos faltam, mas sei que perdi tempo demais analisando o ambiente. Inclino-me para frente, colocando pressão no meu pé de apoio, esperando. Tic-tac, tic-tac. Fixo os olhos nas duas pilhas. Para qual devo ir? Falta pouco, Johanna, muito pouco mesmo, penso. Tic-tac, tic-tac.

O gongo soa.

Não há tempo para últimas ponderações, apenas para correr. Correr o mais rápido que posso ― até alcançar meu objetivo, até que meus pulmões explodam com o esforço. Os coturnos são ótimos, amortecendo o impacto dos pés na terra vermelha, deixando-me mais rápida. Por mais forte que a curiosidade seja, não me atrevo a olhar para trás afim de ver se há alguém em meu encalço, pois isso me tornará mais lenta, mesmo que por um pequeno instante. Correr, apenas correr e correr.

Sou um dos primeiros a alcançar a Cornucópia e preciso de apenas um segundo para identificar as duas pilhas. Uma é de apenas suprimentos como sacas de frutas, contêineres de comida, odres, cordas e sacos de dormir. Na outra há apenas armas. Uma distância significativa de quinze metros separa as duas. Não haverá tempo para assaltar ambas e sei disso. Tenho que escolher uma, mas qual? Sentindo que me arrependerei futuramente, mergulho na pilha de suprimentos. Acho uma mochila grande e coloco lá dentro as primeiras coisas que encontro ― latas com comida em conserva, cantis, frutas secas. Mergulho a mão no monte de provisões e fecho os dedos em um objeto de metal que julgo ser o suficiente para nocautear uma pessoa pequena com um único golpe. A bolsa está pesada de mantimentos quando decido fechar o zíper e fugir.

Ergo os olhos e vejo que os carreiristas finalmente chegaram à pilha de armas. A garota negra do Distrito 2 segura a sua com ambas as mãos. No começo penso se tratar de uma lança, então percebo que em uma das extremidades há uma lâmina que se assemelha com a cunha de um machado seguida por um esporão na ponta. Lembro-me de ouvir algumas conversas dos carreiristas no refeitório. A garota do 2 chamou sua arma de “alabarda”*. Basta o nome desse instrumento mortífero chegar em minha mente para que a menina vire a cabeça em minha direção. Acho que ela está sorrindo. Afasto a possibilidade de ela possuir algum tipo de telepatia e concluo que está na hora de sair daqui.

Outros tributos estão correndo para o chifre, os pés vacilando ao pensarem em qual pilha chegar. Já há sangue no chão, pessoas feridas, alguns sobreviventes deslizando de mãos vazias para o abrigo da floresta. Somente quando chego à proteção das árvores é que me permito uma última olhadela para a Cornucópia. Viro a cabeça bem a tempo de ver a ruiva do Distrito 4 descer o tridente contra a barriga de alguém.

Corro o mais rápido que o peso nas costas permite até julgar ter coberto uma distância razoável do banho de sangue. Então começo a caminhar em um ritmo acelerado no sentido diagonal, seguindo para o sul, em direção ao vulcão fumegante. Se os tributos agirem de modo previsível, ninguém irá se aventurar nessa parte da floresta, tão perto da montanha gigantesca que cospe fogo. Estarei segura lá ― ao menos até que os Idealizadores dos Jogos decidam dar uma esquentada nas coisas. Mas quando isso acontecer, eu posso fugir para uma zona segura.

As folhas mortas sob meus pés ocultam minhas passadas e tomo um cuidado extra para não deixar vestígios que mostrem para onde estou indo. Sei me deslocar com facilidade em um ambiente assim, mas não de maneira sutil. O problema é que, mesmo com tantos anos trabalhando na floresta, nunca me preocupei com pegadas ou rastros, uma vez que minha obrigação era apenas cortar árvores.

Procuro memorizar cada centímetro da arena, atenta a qualquer perigo. Noto a variedade de espécies vegetais, contente por saber nomear a maior parte ― carvalhos, bétulas, uma imensidão de azinheiras e faias de todos os tipos. Também há grandes conjuntos de pedras e rochas cujas quais prefiro contornar em segurança a aventurar-me subindo e correr o risco de torcer o tornozelo. Se prestar bastante atenção, posso identificar alguns dos animais que há aqui. Ouço o zumbido de insetos trabalhando. Vejo o borrão cinzento que uma ave qualquer se tornou ao cruzar a copa das árvores. Percebo até mesmo as asas coloridas de borboletas rodeando um arbusto espinhoso.

Minutos depois ouço as balas de canhão. O banho de sangue teve seu fim. Finco os pés onde estou, perto de um aclive, e conto os tiros. São nove. Nove tributos mortos. Nove obstáculos a menos para superar. Bom, agora faltam quatorze. Pergunto-me se Silas caiu junto com os outros, assim como Sapphire, a garota do 10, mas afasto o pensamento para longe. Espero que sim, pois dessa maneira fica mais fácil para mim. Não que eu tenha receios em matar Silas, pois o faria de olhos fechados sem hesitar. O problema é Sapphire. De todas essas pessoas, ela é a que menos odeio. Mas mesmo assim eu a mataria. Bom, ao menos é o que fico dizendo para mim mesma.

Volto a seguir para o sul por mais duas horas até que a fadiga e o calor me vencem. Está quente demais. A cada vez que tento respirar, sinto como se o mormaço estivesse se empenhando ferreamente para me sufocar. Olho para o céu. Através das copas da árvores, consigo identificar as mesmas nuvens imutáveis de horas atrás. Não acho que haverá chuva. Jogo a mochila no chão e decido descansar por quinze minutos.

Abro o zíper para saber de fato o que peguei da Cornucópia. Oito latas de comida pronta, um pedaço de corda com no máximo um metro de comprimento, um saco de frutas cristalizadas, um pequeno frasco contendo um líquido azul que não sei o que é, uma única maçã brilhante e apetitosa e dois cantis com nada além de ar dentro. Também há o objeto metálico que percebo apenas agora se tratar de uma frigideira. É isso. Peguei uma frigideira para me defender. Nesse momento devo estar sendo a maior otária de Panem.

Volto meus suprimentos para a mochila e lembro-me do problema referente ao uniforme. Tiro a camiseta para estudar as duas listras fluorescentes que provavelmente brilham no escuro, não me importando em talvez estar sendo transmitida por todo o país nua da cintura para cima. Suspiro aliviada quando vejo que as listras foram costuradas na camisa e não impressas, de modo que posso arrancá-las. Procuro no chão uma pedra afiada o bastante para usar como faca ― há bastante delas por aqui. Dez minutos depois acabo jogando-a longe, pois é inútil para desfazer os pontos. No final das contas, uso os dentes. Depois de muito trabalho ― e um rasgo de vinte centímetros na altura da barriga ― finalmente consigo me ver livre desse empecilho e sinto-me orgulhosa.

Não me atrevo a devorar minhas provisões ainda, portanto continuo com a caminhada antes de ser tentada. Com a mochila nas costas e frigideira na mão, finalmente chego ao final do aclive. À frente há apenas uma descida íngreme e escorregadia pelas pedras soltas. Minha missão é encontrar água*.

Caminho por mais meia hora e começo a mordiscar duas tiras pequenas de laranja cristalizada. Depois de tanto tempo comendo as especiarias da Capital, fica difícil de engolir algo tão simples, mas devo me acostumar logo. É quando as árvores vão ficando mais escassas e espaçadas entre si. Logo o tapete de folhas secas vai dando lugar para um chão áspero de pedra. Dou mais algumas passadas e me deparo com um pequeno cânion rochoso, largo o suficiente para abrigar uma fábrica de papel do meu distrito.

O vapor esgueira-se por rachaduras no chão do topo do vale, enevoando a visão de modo que enxergo apenas alguns metros à frente, impossibilitando saber a profundidade do cânion. Coloco a mão sobre uma dessas cortinas vaporosas. É quente, mas não queima, deixando uma sensação gostosa de formigar. Hesitante, avanço um pouco mais, evitando pisar nas rachaduras, com medo de desencadear qualquer tipo grotesco de armadilha. Após andar alguns metros, pensando em contornar a cratera nebulosa, encontro uma atraente escada obviamente construída pelo homem. Os degraus de pedra são de perder de vista por causa da cortina vaporosa. Talvez não seja uma boa ideia, mas eu desço, usando o paredão como guia para não pisar fora do degrau e cair. Quando chego ao fundo, concluo que tem pouco mais de quatro metros de profundidade. Então percebo que há mais coisas do que pedras e vapor. Lagoas pequenas e grandes dividem espaço com o chão rochoso, a neblina desgarrando-se da superfície e encobrindo o ar. Água.

Caminho até a fonte mais próxima, perdendo momentaneamente o cuidado com as rachaduras. Entretanto, se fosse para algo acontecer, acho que eu já estaria morta. Depois de testar o piso perto da borda para saber se suportará meu peso, ajoelho-me e movo os dedos para a água. Está morna, algumas bolhas de ar subindo e estourando na superfície.

Com as mãos em formato de concha, pego uma quantidade significativa e levo-a aos lábios ― além da garganta seca, também devo ter suado litros durante a caminhada. Nunca pensei que seria tão fácil encontrar água. A primeira coisa que faço quando o líquido entra em contato com minha boca é cuspir tudo de volta na lagoa fumegante. O gosto é horrível, assemelhando-se a ferrugem. Algo me diz que não é aconselhável ingerir a água dessa fonte.

É quando os pelos de minha nuca se arrepiam.

Talvez fosse o silêncio absoluto ou ar enevoado conspirando contra mim, mas eu estava certa de estar completamente sozinha. Entretanto, estou errada ― perdidamente errada. É a sutil mudança do vento que me alerta de sua presença.

Juntando coragem, olho para trás.

Ele está parado atrás de mim, perto o suficiente para eu enxergar suas feições rudes e o nariz adunco. Sangue escorre de um corte superficial perto do pescoço. Dois machados firmemente seguros pela mão direita, enquanto a esquerda não existe mais ― apenas um coto sanguinolento no lugar.

Bato as pestanas docemente para Silas Underwood.

― E aí? Tudo bem? ― digo.


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Notas finais do capítulo

SOBRE A ARENA: A floresta que a Johanna se encontra é típica da Península Ibérica, com muito solo rochosos e rica em abetos, carvalhos, azinheiras, bétulas e faias. E, não, não é sensato (tampouco aconselhável) beber a água dessas fontes termais, que estão repletas de metais e bactérias (algumas milhares de termófilas, possivelmente).
Realmente não faço ideia do porque coloquei essas informações, então não me perguntem. Talvez isso faça com que vocês imaginem a arena com mais facilidade.
E então? VULCÕES!!! Aposto que ninguém pensou neles antes de ler esse capítulo. Como eu disse (ou não, pois não estou lembrado), essa será uma edição repleta de reviravoltas surpreendentes, portanto aconcheguem-se nas cadeiras e deleitem-se.
Agora me digam o que acham que irá acontecer logo após esse encontro inesperado com Silas Underwood. Uma aliança se formará? Haverá um combate sangrento? Ou o autor é tão excepcional (e humilde), que vocês não sabem o que esperar?
Até mais.