Os Jogos de Johanna Mason escrita por Tagliari


Capítulo 10
Capítulo 9 ― Máscaras caem


Notas iniciais do capítulo

Não acredito! Capítulo 9 e já vamos para a arena, é isso mesmo? Ah sim. Sim, senhor.
Galera, quero agradecer a todos vocês por não terem me abandonado nessa chateação que é o pré-Jogos. Muito obrigado pelos comentários ― afinal, já passamos do centésimo há muito tempo! ― e por todo o apoio.
Pois bem. Aproveitem.

REVISADO EM 08.04.2017



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ESTOU ME SENTINDO ESTRANHAMENTE leve quando volto ao meu lugar para esperar o fim das entrevistas. Não presto atenção nos demais participantes, apenas aprecio o sentimento de satisfação que toma conta de mim. Modéstia à parte, eu fui incrível. Imagino Siena, a amiga que deixei no 7, dando gritos estridentes e dizendo que sou ouro puro. E então não estou mais feliz. As lembranças que tenho de casa fazem questão de destruir até mesmo isso.

Quando tudo acaba, Maxell aparece para arrebanhar Silas e eu até o sétimo andar. Ele não para de dizer em como fomos fabulosos com seu jeito afetado e estúpido. Suas palavras soam falsas e mentirosas. Assim como tudo aqui. Eu estou farta de ter que aturá-lo. Se alguém me disser que se eu for para a arena agora lutar pela minha sobrevivência, eu nunca mais terei que ouvir a voz irritante do meu acompanhante, com toda certeza diria: “Que venha o banho de sangue!”.

Encontramos nossos mentores no elevador. Phox tem a expressão neutra de sempre e Blye está sorrindo. Ela também deve ter certeza do meu êxito na entrevista. Até que eu estaria satisfeita se não fosse pelo falatório constante de Maxell.

― Eu simplesmente não acredito que eles engoliram aquela conversa da garota do Distrito Quatro. Dá pra acreditar que os patrocinadores já estão se gladiando por ela? A Capital inteira está a chamando de Ruiva Fatal ou qualquer coisa do tipo. Um título um tanto quanto genérico, se me permite dizer.

Começo a contar de dez a zero na tentativa de me acalmar e não voar na garganta de Maxell. Como alguém pode ser tão irritante? Aposto que ninguém sentiria falta dele se eu o matasse agora mesmo.

Vou para o quarto me trocar assim que as portas do elevador voltam a abrir. Tiro o vestido azul de boneca e arranco as fitas do cabelo. Deixo a água quente do chuveiro cair sobre mim e fecho os olhos, apreciando o farfalhar que as gotas causam ao cair no chão. Agora se inicia uma nova fase do meu plano. Já cumpri a primeira parte ― choro, fragilidade e inocência. Não derramarei mais lágrimas ou me conterei diante de meus adversários. Da próxima vez que os tributos me verem, não serei mais a garotinha triste que chora sozinha no refeitório. Estarei impiedosa, mortífera. Sem artifícios ou mentiras. Pensar nisso tudo traz certa tranquilidade. Não serei caçada, mas sim a caçadora.

Reflito sobre tudo que Blye me instruiu a fazer após o soar do gongo. Quando a hora chegar, devo usar minha estatura pequena e magra como arma. Sou rápida. Correr até a Cornucópia e pegar o básico ― primeiro a comida e, se der tempo, as armas ― antes que os outros cheguem deve ser fácil. Blye está certa de que os demais tributos irão me ignorar a princípio, pois haverá alvos mais perigosos para serem eliminados, como a garota manchada do Distrito 10 e o próprio Silas. Fugir dali antes que a coisa fique realmente feia, me afastar o máximo possível da Cornucópia e arrumar um bom abrigo. Se a sorte estiver a meu favor, os inimigos mais ameaçadores estarão mortos logo nos primeiros dias. Devo ficar escondida até que sobre poucos de nós. Então, quando julgar ser o melhor momento, sair de meu esconderijo. Matar os que restaram. Não há garantias que eu tenha um machado em mãos, mas aprendi muitas coisas nesses três dias de treinamentos ― como usar veneno, fazer armadilhas e atrair tributos desavisados para essas armadilhas. Segundo Blye, será tarde demais quando meus oponentes perceberem quem é o verdadeiro assassino.

Às vezes eu paro e penso se realmente serei capaz de matar essas crianças a sangue frio. Acontece que acho que sim, se for para escolher entre elas ou eu. Sou egoísta e pessoas egoístas fazem atrocidades para o benefício próprio.

“Eu fantasiava, na arena”, Blye disse para mim na noite passada. “Fingia que todos eram árvores.”

“E funcionou?”, perguntei, no momento achando a ideia ridícula.

“Estou aqui, não estou?”, ela falou em um dar de ombros. “Talvez te ajude também.”

Árvores. Pessoas não são árvores. Essa é a verdade. Uma árvore não tentará te matar. Blye está equivocada. Fantasiar não ajudará em nada. Minha única força é o desejo de continuar viva. A ideia de sobrevivência é melhor do que qualquer fantasia.

Depois do jantar, nós nos amontoamos na sala para assistir a reprise das entrevistas. Sem o nervosismo, observo melhor o desempenho de meus inimigos. A garota do Distrito 2 foi extrovertida. A do Distrito 4, humilde. O garoto do 6 foi genuinamente engraçado ao contar piadas ao estilo da Capital. Silas escolheu ser imponente e amedrontador. Sapphire, a menina do Distrito 10, se saiu muito bem em sua personalidade naturalmente divertida e leve. Comparada às outras, minha apresentação foi mediana. Esquecível.

Os estilistas se vão quando o programa acaba. Essa será a última noite em que passarei na Capital. Maxell também se despede de nós, uma vez que não nos veremos mais ― bom, menos se eu for vitoriosa. Estende a mão para Silas e, antes que ele possa apertá-la, envolve o garoto em um abraço esmagador.

― É bom que você volte com a coroa, Silas Underwood ― fala ao rapaz com certa amabilidade.

Meu parceiro de distrito acena com a cabeça como resposta e vai para o quarto sem se importar em desejar boa sorte a mim. Bom, espero que ele tenha uma morte dolorosa logo no primeiro dia.

Maxell me encara por uns segundos e estende os braços como se esperasse que eu corresse até ele.

― Se você se sentir assustada na arena, é só pensar em coisas positivas, Johanna.

Rio secamente.

Não vou mentir ou enganar ninguém. Tenho muita coisa entalada na garganta que estou louca para dizer.

Trinco os dentes.

― Não me venha com essa, seu idiota ― rosno.

Ligeiramente atordoado com minha ferocidade, Maxell dá um passo para trás. Aproximo-me dele o suficiente para sentir suas respiração em minhas bochechas. Ele é um pouco mais alto do que eu, mas isso não me assusta.

― Sabe de uma coisa? De todas essas pessoas desprezíveis e estúpidas daqui, é você que eu mais odeio ― cuspo, apontando o indicador acusadoramente no peito do acompanhante e fazendo-o oscilar. ― E não me olhe com essa cara de otário, seu bostinha. E eu espero que você esteja bem longe da Capital quando eu voltar, sacou? Porque se eu te encontrar, vai desejar não ter nascido.

Maxell está mortificado, os olhos arregalados de espanto. 

Viro o corpo nos calcanhares e piso forte até meu quarto. Permito-me uma risada quando tranco a porta. Estou aliviada e leve como uma pluma, momentaneamente esquecendo que no dia seguinte, bem cedo, o terror terá início. A expressão de Maxell foi hilária. Pena que ninguém pôde vê-la. Amanhã será a vez de Tundra e futuramente o resto da Capital.

Chuto as pantufas e jogo-me na cama. O alívio que despontara em mim após as duras ― e necessárias ― palavras ditas ao maior idiota da Capital logo se vai. Não há espaço para alegrias fúteis dentro do meu peito. Apenas ansiedade. Não tenho medo do que pode ou não acontecer daqui poucas horas, pois sei que o medo não é racional. Resta para mim apenas dormir e torcer com todas as minhas forças para ainda estar viva na próxima noite. E é o que faço. Sem medo. Sem pavor. Apenas um vazio esmagador onde deveria estar o coração.

Então os pesadelos surgem. Um a um eles vão ocupando a lacuna em meu peito, preenchendo-a com o mais puro terror. Depois da quarta vez em que acordo, finalmente decido abandonar os lençóis e peço algo para comer no bocal ao lado da minha cama. Em menos de dez minutos a comida surge, apetitosa. Devoro o primeiro doce em um piscar de olhos. A calda de morango deixa meu paladar alerta e reverberante. Sentirei saudades dessas guloseimas enquanto estiver na arena. Decido que, quando ganhar a coroa e tiver uma vida pomposa na Aldeia dos Vitoriosos, passarei o resto da minha vida ganhando peso com essas delícias. Talvez, se estiver de bom humor, até dê um docinho para Dahlia, minha irmã mais nova.

Depois de morder a última bala de caramelo e voltar a deitar-me, percebo o grande erro que fiz ao ingerir tanto açúcar. As horas se arrastam enquanto encaro o teto sem de fato vê-lo. Minha mente passa cada segundo revirando as últimas edições, talvez na tentativa de saber para onde eu serei enviada. Um calafrio percorre meu corpo diante das possibilidades assustadoras. Deserto. Cordilheiras. Pântano. Ilha. Uma enorme planície descampada. Taiga. A cada nova arena que preenche minha mente, mais difícil fica o trabalho de meus pulmões em puxar ar. Não que eu seja do tipo que fica aterrorizada ou sensibilizada com qualquer coisa. Às vezes, meu pai diz que sou durona como um rapaz ― sei que deveria ficar zangada em ser comparada com um homem, mas sempre considerei um elogio. Mas isso é demais para mim. Não vou suportar. Não vou, não vou, não vou.

Nesse momento, acho que recorreria a qualquer coisa para me ver livre da Capital, dos Jogos Vorazes. Tanto medo. Mas tanto, tanto, tanto medo... Gostaria de ter algo de casa aqui comigo para me fortalecer, mas trouxe nada. Eu estava tão empenhada em mentir e sobreviver que nem me importei com algo tão ridículo quanto um objeto pessoal, porém agora me arrependo com amargura. Uma simples agulha de pinheiro vinda direto do Distrito 7 me confortaria mais do que centenas de doces da Capital.

•••

Acho que acabo dormindo, porque a próxima coisa que ouço é uma voz levemente familiar.

― Johanna. Está na hora de acordar, queridinha ― ela sibila, extinguindo a maravilhosa névoa da inconsciência que paira sobre mim.

Solto uma exclamação quando abro os olhos, pois encaro o rosto grotesco de Tundra Follmann. De perto, a pele tatuada e as fendas do nariz parecem ainda mais assustadoras. Está aí uma coisa mais amedrontadora do que os próprios Jogos.

Com gestos efusivos e vibrantes ela me entrega uma troca de roupa simples e praticamente me arrasta até o aerodeslizador que me levará para a tão temida arena. Durante o percurso pelas escadas intermináveis do Centro de Treinamento, a estilista não para de tagarelar sobre como está animada para o início dos Jogos. Conta que dará uma festa magnífica logo após os rostos parecerem no céu essa noite.

― Todo mundo que é alguém vai estar lá. Mas é uma pena que não serão tantos convidados assim. Imagine! Apena trezentos e vinte e sete. Meu marido disse que eu aparentemente ultrapassei o orçamento do mês quando comprei aquele chip de músicas. Mas, afinal, uma festa não é uma festa se tiver menos de quinhentos convidados, certo? Ah, eu tentei persuadi-lo para me deixar chamar no mínimo mais umas cem pessoas, mas acontece que não existe um homem mais cabeça dura do que Marvolo Follmann.

•••

Depois que o rastreador é inserido, um homem nos guia até uma sala particular com um verdadeiro banquete. Mesmo após extrapolar com os doces nessa madrugada, acabo comendo ainda mais a fim de estocar gordura para o que me aguarda. Tomo longos goles de suco de laranja enquanto mordisco um pãozinho.

As janelas do aerodeslizador escurecem após o terceiro pão. Estamos chegando perto da arena da septuagésima primeira edição. A nave aterrissa e pessoas estranhas nos escoltam até as catacumbas por um tubo subterrâneo. A Capital chama o lugar de Sala de Lançamento, que é um nome fácil e prático, visando que os tributos são lançados daqui para a arena.

Após um banho rápido, Tundra diz que as roupas que vestirei acabaram de chegar. Ela desfaz o pacote e estende a mortalha que tem vinte e três irmãs idênticas que serão usadas pelos outros tributos. Calças pretas simples e largas, camiseta cinza com duas tiras paralelas laranja-fluorescentes de fora a fora.

A estilista segura a camiseta com os braços esticados e franze o que sobrou do nariz.

― Isso é horrível. Quem desenhou essa coisa deve ter um problema mental muito sério mesmo. Os tributos com certeza vão morrer só de olharem uns para as roupas dos outros.

Calço os coturnos, meus dentes cerrados de raiva. Ao menos ficarei longe dessa doida na arena. Encaro as linhas fluorescentes da camiseta, pois com elas será impossível me esconder. Faço uma nota mental para, assim que tiver tempo, arrumar uma maneira de me livrar disso. Talvez eu acabe nua da cintura para cima. Mas é melhor ficar pelada do que brilhando como um farol.

Tundra leva o dedo aos lábios repuxados cirurgicamente. Por fim dá de ombros.

― É. Melhor do que está não dá para ficar. Agora é só esperar o chamado.

Sento-me no sofá e começo a bebericar um copo de água enquanto a chacina não chega. Ignoro a ansiedade que brota no peito e irradia até as pontas dos dedos. Tento ao máximo me concentrar apenas em minha respiração acelerada e constante. Não há Sala de Lançamento, Tundra Follmann ou até mesmo os Jogos Vorazes. Estou novamente sozinha em minha bolha particular. Repito mais uma vez as últimas palavras ditas por Blye. Concentre-se. Não se desespere. Mate.

Uma melodiosa voz feminina surge nos autofalantes e anuncia que está na hora.

― Finalmente, finalmente! ― Tundra salta e bate palminhas eufóricas. ― Vamos, vamos, não perca tempo, queridinha.

Ela me empurra até o prato de metal que me levará para a arena. Antes de se afastar, a estilista ajeita a gola da minha camiseta. Sei que faltam poucos segundos. Olho uma última vez para o rosto tatuado e brilhante da Mulher Cobra.

― Ah, Tundra ― digo em tom casual como se tivesse acabado de me lembrar de algo. Mas não nego que passei parte da minha noite insone ensaiando as próximas palavras a serem ditas: ― Suas roupas são grotescas, queridinha. ― Então as paredes de vidro erguem-se do chão e algo me diz que ela não pode mais me ouvir através da superfície transparente. Ergo o dedo do meio para a estilista e exibo o meu melhor sorriso.

Estou torcendo com todas as minhas forças para que esse gesto tenha um entendimento universal quando o círculo metálico começa a subir. Olho para cima e penso nas coisas que espero dessa edição: árvores, comida, água, abrigo, vitória. Acima de tudo, um belo e poderoso machado.

Um cheiro desagradável inunda minhas narinas quando ouço a voz de Claudius Templesmith retumbar ao meu redor.       

― Senhoras e senhores, está aberta a septuagésima primeira edição dos Jogos Vorazes!


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Notas finais do capítulo

E então, gostaram dessa despedida dramática e sentimental da Johanna com sua estilista e acompanhante? Aposto que sim, afinal, Mason é a própria Srta. Delicadeza.
Agora quero falar com vocês, leitores participativos e fantasmas também. Alguma ideia de onde será arena? Vamos, digam. Estou louco para saber sobre suas teorias rebuscadas. Algum palpite? E também estou aberto à críticas construtivas, elogios e até mesmo para dizer oi nos comentários.
Até quinta, cambada!