Ágda escrita por Maresia


Capítulo 19
Beijo gelado




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                Durante um mês, Ângela viveu imersa naquele misterioso pergaminho celeste, tentando abafar a demorada e dolorosa ausência de Albafica que permanecia perdido nos imensos campos floridos, vagueando pelas solarengas e apetecíveis penínsulas Holandesas, onde a luz, fragância floral e a cor reinavam como princesas incontestáveis num grandioso trono de fertilidade e descoberta. Certa noite, a ruiva acompanhada da sua solitária lareira, segurando na sua mão uma bonita pena de escrever, tricotava os últimos fios daquele destino ingrato e traiçoeiro, escrito nas estrelas e idolatrado pelos Deuses. Daí a algumas trabalhosas horas, o destino daquela pobre a injustiçada criatura dançava obscuro na mente inteligente da amazona, um destino mais triste do que a própria noite negra, mais triste do que o gelo preto que voava nas tenebrosas tempestades do norte agreste e frio, mais triste do que as penitências dos Deuses, um destino mais triste do que o firmamento sem estrelas, um destino tão dividido como a linha Equatorial, um destino tão confuso como as finas correntes do fim do mundo, um destino que cruza a dourada linha do amor com a destinta linha branca do seu nascimento propositado, um destino mais cruel do que as chamas infernais.

— Que destino mais penoso, dividida entre o amor e a sua verdadeira missão na Terra, será uma brincadeira dos Deuses? Ninguém merece tal sorte, se se pode chamar sorte a um futuro assim. – Cismou a Cisne melancolicamente, sentindo a mais pura compaixão por aquela pessoa. – Num lado da esfera celeste luta pelo seu verdadeiro e único amor, do outro lado esconde-se o seu motivo missionário pelo qual os Deuses engendraram egoístas o seu nascimento. – Pensou, passando uma mão pelos seus volumosos cabelos de fogo. – Amanhã bem cedo irei a Aquário, contarei ao Mestre Dégel o que observei, cruzaremos certamente informações, talvez possamos ajudar esta pessoa de alguma forma. – Decidiu determinada, colocando o seu pijama branco e fugindo para o mundo quente e luminoso da sua cama, onde diversas rosas voavam presas nas asas brilhantes de borboletas que guiavam os seres humanos até ao futuro longínquo.

                O sol espreitava preguiçoso por entre as vidraças cinzentas prateadas, timidamente iluminava a sábia e antiga Grécia, revelando ao mundo todo o seu magnífico esplendor monumental e religioso. Alguns pássaros chilreavam estridentemente, felizes por observarem a Primavera aproximar-se a passos largos, perfumados e floridos, preenchendo todo o universo com a sua contagiante energia verde esperança.

                Ângela acordou sobressaltada com umas fortes batidas na pequena porta de entrada. Uma voz de mulher que ela bem conhecia proferia freneticamente o seu nome.

— Já vou Benedita, espere por favor um momento. – Pediu educadamente a amazona, colocando rapidamente um vestido cor-de-rosa.

— Bom dia Ângela, desculpa esta barulheira toda, mas o senhor Dégel quer ver-te com algum grau de urgência. – Explicou a dedicada serva ligeiramente envergonhada com a sua tremenda pressa.

— Certo, apenas gostaria de comer algo. – Disse Ângela em voz tranquila, sentindo o seu estômago reclamar audivelmente.

— Eu comprometo-me a preparar-te um pequeno-almoço delicioso se me acompanhares agora ao templo de Aquário. – Insistiu Benedita em voz delicada. – É que fiquei coma clara impressão de que o assunto era urgente. – Explicou, puxando a ruiva pela mão.

— Até o mais pequeno pormenor é uma catástrofe para o mestre Dégel, por isso não me preocupo muito. – Brincou Ângela, saindo para a fresca manhã de Março onde o delicado aroma primaveril lhe lembrava tristemente de Albafica. Benedita e a Cisne subiram tranquilas e silenciosas os diversos patamares que serenos guardavam as doze casas zodiacais, por fim sentiram o gelado beijo que anunciava a chegada da casa de Aquário.

— Tal como prometi, irei preparar um belo pequeno-almoço, o senhor Dégel está na sala de estar. – Informou a serva em voz baixa, indicando a porta fechada atrás da qual se escondia o gelado cavaleiro de Aquário.

— Bom dia mestre Dégel! – Saudou a amazona em voz divertida.

— Ainda bem que vieste. – Respondeu o dourado com ar sério.

— Qual o motivo de tanto alarido? – Perguntou a Cisne em voz sumida, sentando-se no sofá junto do aristocrata.

— Já observaste o pergaminho que te entreguei, precisamente há um mês atrás? – Questionou o Aquário insatisfeito com a falta de eficácia e rapidez da sua aluna.

— Terminei ontem. – Respondeu a ruiva, notoriamente aborrecida com aquela atitude.

— Quais são as tuas conclusões? – Inquiriu Dégel, não dando grande importância ao olhar de choque que se desenhava nos lindos olhos marinhos.

— Bem, o destino que está inscrito neste mapa celeste é terrível, confuso e altamente indeciso, pertence a alguém cuja linha do amor e do destino estão unidas por uma fina brecha que pode quebrar-se a qualquer trágico momento. – Afirmou Ângela rapidamente, mostrando todas as suas capacidades de análise estelar.

— Bela e completa observação. – Comentou o dourado em voz baixa e inexpressiva.

— Quais são as suas conclusões? – Interrogou a ruiva, tentando compreender aquele olhar fechado e impenetrável.

— Iguais às tuas, sem tirar nem pôr. – Respondeu o cavaleiro. – Conheces alguém que esteja nesta confusa situação? – Perguntou para surpresa da amazona que o olhou estupefacta.

— Eu não, estava na esperança que o mestre me dissesse de quem se tratava, para a poder ajudar de alguma forma. – Explicou Ângela tristemente.

— Esta história não te lembra nada, algo familiar? – Insistiu Dégel, parecendo não acreditar na resposta da jovem. – Faz um pequeno esforço, por favor, é muito importante. – Pediu tal qual um ultimato.

— Tenho a certeza, mestre. – Afirmou Ângela, não compreendendo toda aquela infundada insistência. – Como adquiriu este mapa celeste? – Perguntou desconfiada, fitando os olhos do seu mestre com desafio.

— Se eu te quisesse dizer já teria dito, não achas? – Respondeu Dégel com arrogância.

— Eu não acredito que não saiba a quem pertence este destino traiçoeiro. – Afirmou a jovem sem rodeios, sabia perfeitamente que Dégel ocultava a verdade com a ilusória mentira.

— Aqui têm o pequeno-almoço! – Anunciou Benedita em tom bem-disposto, entrando na sala carregando um tabuleiro extremamente apinhado.

— Podes deixar, obrigado Benedita. – Agradeceu o dourado, sem olhar para a sua mais dedicada serva.

— Se precisar de algo chame senhor Dégel. – Disse a serva em tom apressado, saindo a grande velocidade da saleta, deixando Dégel e Ângela presos por olhares de gelo.

— Não me fales nesse tom insolente, já me basta o Kardia. – Avisou Dégel maldisposto, servindo-se de uma generosa quantidade de bolo de iogurte e de chá de camomila bem doce.

— Eu não sou insolente, sou verdadeira. – Defendeu-se Ângela em voz audível, servindo-se igualmente do delicioso pequeno-almoço.

— Talvez não tenhas sido sempre verdadeira comigo, ou será que tens? – Provocou o dourado.

— Talvez sim, talvez não. – Foi a trocista resposta elaborada pela Cisne. – Ter vindo aqui de facto foi um enorme erro. – Murmurou.

— Achas que sim? – Perguntou o cavaleiro, olhando naqueles lindos olhos onde bailavam alegremente as graciosas paisagens nórdicas. – Talvez o tempo não tenha sido o nosso melhor aliado. – Comentou de si para consigo.

— Não entendo. – Admitiu Ângela, vislumbrando aqueles olhos onde diversas páginas dançavam revelando o mundo fantástico dos sonhos e do impossível.

                Dégel moveu os seus finos e gelados lábios numa tentativa inútil de saciar a curiosidade da amazona sobre a sua estranha afirmação, porém as palavras normalmente mestras na sua língua abandonaram-no à inocente mercê dos seus inseguros e escondidos sentimentos. Ângela olhava confusa o aspeto elegante do seu mestre, sentindo o frio que o rodeava transformar-se em milhares de cristais quentes, luminosos e fofos como a linda neve que derretia gradualmente no coração aprisionado do dourado. Então, os braços de ambos ganharam personalidade, enlaçando-se num perfeito coral infinito, banhado pelas cristalinas cores da aurora boreal em volta dos seus corpos abençoados pelo divino pó de diamante, os seus lábios uniram-se num arco-íris de cor, desejo e consolo, unindo-se num perfeito beijo gelado, onde o frio afoga o calor transformando-o numa pequena miragem, porém estes dois amantes do gelo não se importavam, a união entre eles e o linho branco era tão perfeita, tão vinculada, tão indestrutível como a união entre o mar e o céu, a lua e as estrelas.

— Eu, eu não posso! – Arrependeu-se Ângela subitamente, enquanto Dégel a segurava fortemente, vendo a imagem de Albafica espelhar-se espinhosamente no seu coração fazendo-o sangrar horrivelmente de culpa e desilusão.

— Mas o que se passa, se errei desculpa. – Pediu o dourado, não compreendendo aquela atitude, no fundo ele compreendia, só que doía demais aceitá-la, deixá-la fugir da prisão de gelo que emoldurava o seu coração.

— Não fizeste nada de errado… - A relação mestre discípula diluíra-se em mil fragmentos quando os seus lábios ultrapassaram aquela barreira. – Eu amo outra pessoa, e não pretendo desistir dele, perdoa-me. – Explicou, apercebendo-se do erro que acabara de cometer, todavia não suportaria continuar a enganar aquele homem maravilhoso que abrira finalmente as grades geladas do seu espírito. Ângela sem mais uma única palavra, sem mais uma única explicação saiu a tremenda velocidade da presença do destroçado cavaleiro, deixando-o embalado pela triste melodia do Cisne.

                               Nesse dia, a ruiva refugiou-se na sua solitária casa, recordando cada estranho detalhe daquela impensável conversa, sentindo a culpa, o arrependimento e o remorso percorrer-lhe ardentemente o espírito carente e abandonado. Apesar de estar completamente apaixonada por Albafica, não pôde deixar de agradecer aquele beijo repleto de ternura, na sua mentalidade não estava certo usar alguém como Dégel para tapar e amaciar o buraco tão fundo que a partida do Peixes causara no seu coração, esse maldito beijo não poderia substituir os lábios daquele cavaleiro simplesmente lindo, o Aquário não merecia tal afronta a desfocar-lhe as horas de sono.

                               Na gelada casa do norte, Dégel permanecia sentado no seu sofá, triste, imóvel, frio, inexpressivo, ignorando todas aquelas deliciosas refeições que Benedita gentilmente lhe cozinhava, numa tentativa inútil de aquecer o seu coração imerso em milhares de flocos de gelo afiados e assustadoramente feridos. Sempre nutrira verdadeiros e puros sentimentos por aquela miúda, desde o dia em que a resgatara das garras cruéis da neve envenenada pelos Deuses, porém nunca sucumbira ao encanto do coração temendo terrivelmente colocar em causa a sua posição como cavaleiro de Ouro, a mais alta e destinta patente que habita o nobre santuário, mas algo mudou, algo contorcia-se agonizante no seu interior, algo que o fazia tremer, suar, na presença contagiante da Cisne, algo que ele já não conseguia controlar, algo que ele nunca sentira, ou recusava-se a sentir, talvez fosse isso, algo que os seres humanos apelidam de amor, o sentimento mais puro, mais louco, mais perigoso que caminha sobre a alma do mundo. Mas agora, essa bela e sagrada lenda caía num abismo profundo, onde a luz perece à vontade das trevas, onde o ar fresco da Primavera não vagueia livremente, onde as coloridas borboletas morrem presas à escuridão, onde a esperança enegrece tornando-se carvão toxico e impuro. Dégel trancara esse temido abutre no lugar de onde ele nunca devia ter saído, o seu coração.

                De súbito, a sua alma habitualmente serena foi assaltada por uma dolorosa picada do inseto da raiva e do ódio, ele só queria saber quem era aquele sujeito que lhe roubara a única razão pela qual abraçara e libertara aqueles sentimentos, ele queria ardentemente estar cara a cara com o causador da sua humilhação, queria fazê-lo pagar bem caro, contudo tinha plena consciência de que Ângela jamais lhe revelaria o tão desejado nome, era demasiado fiel para tal ação.

                Alguns passos irromperam vagarosamente pela triste saleta, enfrentando corajosamente a fúria Aquariana, enfrentando corajosamente o ferido orgulho do cavaleiro.

— Estás com um péssimo aspeto Dégel. – Comentou a voz traquina de Kardia de escorpião, encarando aqueles olhos repletos de ódio.

— Não te estou para aturar Kardia, podes dar meia volta e sair. – Respondeu maldisposto o dourado de gelo, não olhando para aqueles olhos que eram capazes de ler as finas linhas escritas no interior do seu coração.

— Alguém deve ter comido limão ao pequeno-almoço! – Brincou o cavaleiro de Escorpião, sorrindo perante o olhar carrancudo do seu melhor amigo.

— Vai-te embora. – Insistiu Dégel, controlando as suas emoções a tremendo custo.

— Não costumas ser assim tão estúpido comigo, o que se passou para estares nesse estado? – Perguntou Kardia, perdendo a graça.

— Nada. – Respondeu o Aquário com azedume na voz.

— Ok, esta é a fase da negação. – Comentou o recém-chegado, sentando-se ao lado do aristocrata colocando um braço sobre os ombros do seu amigo.

— Kardia para de me chatear, por favor. – Pediu Dégel, olhando pela primeira vez o rosto do dourado que protege a oitava casa Zodiacal.

— Estiveste a chorar? – Questionou Kardia confuso, nunca tinha visto uma única lágrima bailar nos gelados olhos do Aquário.

— Não tens nada a ver com isso. – Ripostou o aristocrata, afastando Kardia de si. – O dia não me está a correr bem, é só isso, mais nada. – Mentiu, receando a reprovação do outro.

— Não acredito, sei perfeitamente que se passa alguma coisa. – Atirou Kardia, ele não era homem de meias palavras. – Aposto que essa má disposição se chama Ângela, de facto ela irrita qualquer um. – Comentou. – Vá lá Dégel somos amigos. – Afirmou, servindo-se do que seria o almoço do Aquário.

— Kardia, eu acho que fiz o maior disparate de toda a minha vida. – Proferiu o dourado melancolicamente.

— Normalmente esse papel é meu, o que se passou? – Questionou Kardia, comendo deliciado uma enorme taça de salada de fruta.

— Eu beijei a Ângela, não sei o que me deu. – Confessou o Aquário em voz sumida, cobrindo o rosto com as mãos. Um ruido de vidro quebrado disse-lhe que Kardia absorto com o inesperado choque pousara estridentemente a pequena taça no chão de azulejo, partindo-a em mil pedaços cortantes.

— Tu fizeste o quê? – Interrogou o Escorpião em voz dramática, não acreditando no que os seus ouvidos lhe transmitiam, só podia ter escutado mal, o Dégel era demasiado certinho para fazer tal coisa.

— Foi um erro, um gigantesco erro. – Desabafou o Aquário.

— Achas que finalmente teres libertado os teus verdadeiros sentimentos é um erro, estás muito enganado meu amigo. – Censurou Kardia, não engolindo aquela falsa história de arrependimento. – Não sou a pessoa indicada para te dar conselhos, porém acho que deves conversar com ela e explicares-lhe o que realmente sentes. Quem sabe se não resulta, ninguém pode saber. – Aconselhou sinceramente.

— Eu sou um cavaleiro de ouro. – Disse Dégel.

— E o que é que isso tem, o que era a vida sem um pouco de perigo? Uma grande porcaria na minha insignificante opinião. Luta por ela. – Incentivou energicamente o Escorpião, todavia a sua infalível intuição dizia-lhe que não era só aquilo que derrubara o seu forte amigo.

— Ela ama outra pessoa. – Admitiu Dégel, fazendo um desesperado esforço para não escutar as suas próprias palavras. – Tenho que descobrir quem ele é, se for um cavaleiro, o que é bastante provável, tenho o dever de os denunciar ao Grande Mestre Sage. – Afirmou em voz rancorosa, sendo tomado por uma nova onda de raiva fervilhante.

— Tu só podes estar louco, não tens esse direito. – Retaliou Kardia indignado com o que acabara de ouvir. – Não mistures frustração com dever, isso comigo não cola. – Barafustou, dando vários murros na mesa que se partiu ruidosamente. – Se pretendes fazer tal estupidez eu também me sinto no dever de informar o Sage sobre o beijo que lhe deste, o que achas? – Perguntou com ar provocador, erguendo-se do sofá.

— Pensei que eramos amigos. – Retorquiu o Aquário em voz alta.

— Por ser teu amigo é que te digo estas coisas, não te deixes cegar pelo ódio, não entres numa gruta de onde já não poderás sair. – Avisou o Escorpião sabiamente, saindo furtivamente pela porta.

— Volta aqui, esta conversa ainda não terminou. – Chamou Dégel, no entanto a única resposta que veio em seu socorro foi o congelante silêncio que crescia no sagrado templo de Aquário.

                Três figuras caminhavam decididamente cumprimentando a acolhedora entrada do santuário de Atena. Albafica de Peixes e Bianca de Leão Menor estavam de volta ao quotidiano rotineiro da Grécia. Albafica andava ligeiramente na frente, mantendo a sua usual distância de segurança. Bianca caminhava alguns passos atrás segurando pela mão alguém.

                Terá Albafica retornado ao Santuário numa altura oportuna? Quem é que Bianca segura pela mão? Qual será a decisão de Dégel? Como reagirá a Cisne as notícias vindas das planícies Holandesas?


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