Flashes de Acari escrita por slytherina


Capítulo 1
Alienação e realidade ou a bola no meio do caminho


Notas iniciais do capítulo

Ficção escrita para o desafio de novembro: "Periferia Maravilhosa"
Escolhi o 2º grupo de palavras.



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O professor terminou de escrever o exercício no quadro branco. Olhou o relógio. Por 15 minutos ele ficaria em paz para vagar por outros mundos, que não fossem aquela sala de aula no bairro mais pobre do Rio de Janeiro. Os alunos cochichavam passando cola de um para outro, mesmo sendo um simples exercício de avaliação de conhecimentos, tentando justapor a ignorância e o descaso com uma resposta correta, ainda que não refletisse seu aprendizado. O professor não se importou. Abriu seu livro preferido daquele mês. A letra garrafal anunciou o início do capítulo. Ele foi transportado para um país distante, onde as pessoas andavam em carros imponentes como casas, e se tratavam por "John", "Henry" ou "Mary". Tudo muito diferente de sua rotina espartana e vidinha fuleira, sem grandes objetivos que não fossem receber o salário no fim do mês para pagar as contas e comprar ítens de necessidade diária, tolhido que fora em seu desejo de progredir e enricar, para poder sair dali. Isso apenas contribuía para exacerbar sua revolta, embora ele não quisesse ser um janota, apenas alguém diferente e melhor, com tudo de bom que o dinheiro pode comprar.

A classe começou a chiar mais alto. Ele olhou o relógio novamente. Seus 15 minutos se haviam passado num piscar de olhos. Ele se levantou, exigiu silêncio e passou a corrigir o exercício de avaliação.

Lá fora, um petiz corria célere atrás de uma bola de futebol. Tentava evitar a todo custo que a mesma descesse até a avenida, onde seria cruelmente esmagada por uma roda de caminhão ou de ônibus. Aquela bola de couro merecia um destino melhor. Fora a mais bela que já roubara na vida. Tivera até que fugir da polícia e tudo o mais. Resiliente que ele era, foi até moleza. Seus colegas até tentaram tomá-la na marra, dizendo que ele era muito pequeno pra ter uma bola tão maneira. Eles só se deram por vencidos quando viram o canivete em sua mão, e ele ameaçara furar o bucho do primeiro que tocasse em sua bola. Um deles revidou lhe prometendo uma vida curta e morte dolorosa, o que não o amedrontou. Então o deixaram em paz.

Um pouco mais cedo, o governador decidiu cumprir a promessa de campanha. Foi visitar seu reduto eleitoral. Precedido por uma tropa de policiais que garantiu a segurança de sua excelência. Com direito a atiradores do Bope situados em pontos estratégicos. Quando de sua chegada, uma pequena multidão já o aguardava. A comitiva aparatosa não se esqueceu dos mínimos detalhes: do álcool gel para limpar as mãos, à tenda com cadeira confortável para sua excelência e secretários sentarem. Um pequeno palco fora montado, e enormes caixas de som eram testadas, para melhor amplificarem a voz de sua excelência, conhecido pelos sapatos 48.

A pequena multidão parecia impaciente, sem uma tenda para lhe proteger do sol, ou puxa-sacos para afofar suas cadeiras almofadadas. Eles se perguntavam em que isso mudaria suas vidas. O estranho paradigma se repetia por várias gerações: a criminalidade em seu bairro era terrível, e o rio que banhava aquela área era completamente poluído, sem nenhuma sombra dos peixes cascudos que deram o nome ao bairro. A miséria era tangível como o era também a dominação do tráfico de drogas. Mesmo assim continuaram lá, parados e suarentos, a mercê da polícia e de pequenas autoridades que os utilizavam como peões de um jogo maior, pois quem sabe, talvez eles consertassem tudo aquilo e tornassem suas vidas um pouco melhores.

O atirador do bope começou a perscrutar as sombras que se moviam na lage vizinha. Decidiu que não eram traficantes, pois havia crianças lá, aparentemente brincando em uma piscina inflável.

Ao sinal do secretário de obras, uma enorme draga começou a remover entulhos do rio Acari, sendo esse um motivo de orgulho do governador presente no bairro. Uma pequena banda com coral começou a entoar um hino marcial, que ninguém acompanhou a letra, enquanto fogos de artifício espocavam no céu, fazendo com que muitos moradores se alarmassem, pois esse era o sinal dado pelos traficantes, de que a polícia havia invadido o bairro e que haveria troca de tiros nas ruas. A retirada do entulho permitiu ao rio efluir vorazmente. E a pequena multidão presente aos trabalhos até bateu palmas.

A viga, que sustentava a tenda das autoridades, distendida pelo calor implacável começou a deformar-se, deixando a tenda com um aspecto feio e torto. Alguns perceberam e até riram da situação, mas não o governador, que não queria passar por tolo diante das câmeras de TV.

Decidiram por terminar a cerimônia e voltar à sede do governo, criando uma pequena balbúrdia de carros oficiais, que começaram a se retirar para não congestionar o trânsito. Foi então que uma bola de futebol atravessou a rua, seguida por um moleque em desabalada carreira. O automóvel do governador não conseguiu parar a tempo, sendo que o atropelamento do menino favelado foi mostrado nos mínimos detalhes em programas de TV, que retratavam o mundo cão. E a manchete na imprensa marrom estampava na primeira página: "Pesão atropela infância favelada".

O professor, ao chegar ao seu quartinho alugado, assistiu um pouco de TV e ficou mesmerizado pelas imagens na telinha. Percebeu que no exato momento do acidente estivera lamentando sua sina, enquanto um garoto estava fora da escola, correndo por ruas e avenidas, sendo atropelado e espatifado por automóveis, sem que ninguém pudesse percebê-lo e salvar sua vida. Se ele estivesse em sua escola estaria vivo. Se ele tivesse sido registrado, cadastrado, rotulado e matriculado, ainda estaria com vida. Ainda poderia freqüentar suas aulas, colar nas provas e posar para fotos do mural escolar, como mais um que fora salvo das ruas e de uma vida de crimes.

Num instante o professor percebeu que fazia parte de uma engrenagem de roldanas tortuosas, que amealhavam e entraçavam diversas vidas, retirando-as do marasmo e do destino marcado por violência e injustiça. Talvez, no final das contas, ele realmente estivesse fazendo algo importante e relevante, embora nem ele mesmo se desse conta disso.


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