— Hoje não vou chegar cedo, viu? – Charles falou, abrindo a porta. – Nem precisa me esperar pra jantar.

— Com “jantar”, você quer dizer “pizza de calabresa”? Porque isso é o mais próximo que vamos chegar de uma refeição.

— Rá rá, você é tão engraçada. – fez uma careta. – Até mais tarde. Vê se não destrói tudo, tá legal?

E saiu, me deixando sozinha. Aquilo era entediante. Eu não tinha muito o que fazer, a não ser assistir TV e polir as armas. Toda aquela neve era tentadora, mas não podia arriscar pegar um resfriado. Argh, que raiva!

Tinha que ver o lado bom das coisas. Pelo menos não receberia visitas de Afrodite tão cedo. Relaxei no sofá, e comecei a assistir o jornal. Eles mostraram imagens de pessoas desesperadas na frente de uma loja que fazia promoções de Natal. Aquilo era pior que o caça-bandeira do acampamento! Assustador!

Ouvi uma batida na porta. Mas já?! Eu ainda não havia me preparado psicologicamente para aquilo! Provavelmente não era o carteiro, já que eles nunca passavam por aqui... Só podia ser um deus.

Por favor, que não seja aquela louca da Afrodite...

— Olá, querida! Como é bom finalmente te conhecer! – uma mulher morena me analisou da cabeça aos pés, e seu tom era carregado de falsidade. Que azar... – Não vai me convidar para entrar?

— Ahn... Claro, senhora Hera. – saí de sua frente e ela passou por mim, analisando toda a casa com um ar de frieza.

— Que lugar... Pitoresco. Muito aconchegante. – seu sorriso era cheio de veneno. Será que ela gostava de alguém? – Agora, vamos conversar.

Ela se sentou no sofá, mas não antes de dar umas batidinhas nas almofadas. Era um pouco de exagero, não é? Eu tinha algumas palavras para ela, mas não ia ser nada bom desagradar a esposa de Zeus. Não mesmo.

— Tudo bem. Sobre o que vamos conversar? – me sentei do seu lado, mas mantendo uma distância respeitável. Vai que eu pego alguma doença dela?

— Ora, sobre o casamento! – mas que casamento? – Temos tanto o que organizar! Flores, vestidos, festas, madrinhas... Ah, a lista é enorme!

— Sem problemas. – eu não sabia de que cerimônia estávamos falando, mas imaginei que ela ficaria muito zangada se eu perguntasse. – Por onde vamos começar?

— Ah, vejo que está animada. Isso é muito bom. – fez surgir um livro bem grosso, cheio de marcações. – Vamos começar pelo vestido de noiva. Escolhi alguns modelos bem interessantes... Que tal esse aqui, tipo princesa?

— É bonito, mas tem muito brilho, não acha? – tentei não contestar, pois qualquer coisa poderia irritá-la.

— Prefere renda? – levantou as sobrancelhas, surpresa. – Sabe, até que você não é tão ruim, filha de Apolo. Não gosto muito de seu pai, mas você é diferente...

— Isso me deixa honrada, senhora Hera. – isso era melhor do que o ódio eterno.

— Vamos continuar, então. Se gosta de coisas mais delicadas, também tem esse aqui. Veja a renda. E é um pouco justo depois do quadril, tem um corte moderno...

— É maravilhoso, bem delicado. Prefiro este.

— Ótimo. Agora, que tal as flores? Eu prefiro os lírios, e ficam perfeitos em um lugar fechado e luxuoso. Tem alergia? Pois se tiver, podemos arranjar algumas sintéticas...

— Não tenho, mas... Não seria melhor perguntar a noiva?

— Sim, por isso estou falando com você. – sua voz ficou cética. – Falando nisso, onde está o anel?

— Senhora, eu não estou noiva. – como eu poderia?! Só tenho dezessete anos!

— Como não? Afrodite me disse que você recebeu uma proposta de casamento daquele garoto, Charles. – ah, só podia ter sido ela.

— Sinto muito, mas... Creio que Afrodite se precipitou. – tentei não ficar histérica. Inspira e respira, inspira e respira... – Eu não tenho idade legal para casar, e não estou com ninguém no momento.

— Entendo. – se levantou abruptamente, parecendo um pouco contrariada. Ops...

— Mas eu pretendo um dia. É claro. – emendei rapidamente. – Sonho com a cerimônia perfeita, num momento mágico e romântico.

— Sim, sim. É assim que um casamento deve ser. – andou até a porta, mas deu uma última olhada em mim antes de sair. – Há esperança para você, filha de Apolo. Espero vê-la em breve, no baile.

— Sim, senhora Hera. – e ela foi embora, finalmente me deixando sozinha. Ufa!

Peguei o telefone, e liguei para uma pizzaria. Depois de tanta emoção, eu precisava de uma pizza.

.

— Quando disse que chegaria tarde, imaginei que estivesse exagerando. – comecei, dando mais um gole no meu café. – Mas já são 22h!

— Eu disse, mas você não acreditou em mim... – respondeu Charles, se jogando no sofá.

— Por que está tão suado? Veio correndo para me ver? – fiz uma pose de “eu sou a gostosona!”.

— Claro. Sempre fui secretamente apaixonado por você. – sarcasmo? Que coisa feia...

— Ei, o que é isso aí? – ele estava remexendo em alguma coisa no bolso.

— É chocolate. – sussurrou.

— Chocolate? Eu quero. – ele negou com a cabeça. – Me dá um pouco.

— Não.

Sem pensar muito, me joguei em cima dele. Nós dois caímos no chão; eu tentando alcançar sua mão, e ele me afastando. Estava quase conseguindo (claro, uma pessoa forte e habilidosa como eu não teria problemas com isso), quando ele puxou meu colar com força.

Tudo se quebrou em mil pedaços. Nem mesmo o pingente sobreviveu. Pus a mão no pescoço, mas nada havia sobrado. Saí de cima dele e comecei a pegar os pedaços. Puxa, que falta de sorte...

— Desculpa, Emma. Foi sem querer...

— Tá tudo bem, não tem problema. – juntei tudo e coloquei em cima da mesa. – Não era nada demais.

— Mas, a sua mãe... – parecia muito arrependido.

— Relaxa. Eu sempre vou tê-la em meu coração. Não é um pingente quebrado que vai mudar isso.

E subi as escadas, tentando esquecer aquela breve perda.