O Cupido escrita por Mits


Capítulo 5
Dialogos


Notas iniciais do capítulo

Musicas
Here - Alessia Cara
Of Monsters and Men: Love, love, love
Of Monsters and Men: Crystals
Of Monsters and Men: Hunger
The Kooks - Young Folks



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Frio.

 Narrado por mim, escrito por Jennifer.

 — Cara, eu estou ferrado — os cachos desgrenhados debatiam-se com o vento frio vindo do ar condicionado, seus olhos contornados por olheiras terríveis me fitavam desesperados. 

— Oi, Peter — murmurei limpando a mancha de iogurte que insistia em ficar no piso umedecido por urina de criança, o cheiro forte de desinfetante queimava minhas narinas enquanto a água fria quase paralisava meus dedos.

As mangas da sua camisa poliéster estavam dobradas até o cotovelo, provavelmente para facilitar o movimento dos braços durante os jogos — Peter não fazia outra coisa além de jogar, fumar, e assistir porcaria — já o jeans surrado tinha manchas de café em uma das coxas, ele fedia a maconha.  Suas botas azuis cano curto deixavam um rastro de lama por onde passava, o dono andava para lá e para cá em busca de uma palavra reconfortante, que obviamente eu não tinha. Você está sujando o chão que eu limpo, pensei. Nunca odiei tanto aquelas botas feias.

— O que aconteceu dessa vez? — empurrei as palavras para fora, mantinha o tom monótono e entediante de atendente de fast-food, afinal, eu era um. Algumas garotas passavam por nós, rindo, talvez do meu estado deplorável ou do dele, não era como se eu me importasse. — Sua mãe descobriu que você fuma? — escutei um grunhido atrás de mim, Marla, minha chefe de cabelos grisalhos e bigode, me olhava do mesmo jeito que eu olhava para a vida: com desdém. 

— Não brinca com coisa seria, se minha mãe descobrir que eu fumo… Nossa não quero nem pensar — riu, o tipo de riso que se dá a situações desesperadoras, ou você ri, ou chora. Franziu o cenho — Qual é da mulher de bigode? — Nossos olhos se encontraram, Peter estava em pé, minha visão subia das botas feias até sua cabeça inclinada para baixo. Era a primeira vez que ele estava mais alto do que eu.  

— É a Marla.

— Sinistra.

Sinistra, megera, irrelevante, essas seriam as palavras perfeitas para descrevê-la. Um amor de pessoa. Duas semanas atrás eu a vi xingar uma garotinha que brincava no escorredor por usar sapatos da cor lilás, essas cores poluem o ar, tira logo esse sapato, menina!

    I guess right now you've got the last laugh.

Joguei o pano encardido dentro do balde, fazendo a água suja respingar no meu rosto, e me levantei. Minhas costas doíam como nunca, assim como minhas pernas, as cores daquele lugar estavam se tornando repetitivas e doentias. As paredes cor de vomito de gato — que come muita ração de carne —, estavam manchadas de todo tipo de coisa: suco, molho de tomate, mostarda, tinta verde, sangue. As cadeiras e mesas de plástico tinham a cor azul, vermelho e amarelo, que tentavam deixar o lugar com um rosto amigável. No fundo da lanchonete, um playground reunia crianças de todas as faixas etárias. Ás vezes eu não sabia se estava lidando com crianças ou algum tipo de gangue.

Ow, tio, chega ae, quero umas batatas pro meu bonde e um refri pra minha mina, falo? Uma criança de dez anos me disse uma vez.

Mesmo com um lanche horrivelmente gorduroso e salgado, o atendimento péssimo e outros fatores responsáveis pela decadência daquele fast food, as pessoas continuavam comendo e comprando ali. O que o marketing não faz.

                                                           x

Agora sentados em frente a fonte do shopping, Peter me explicava o que estava acontecendo.

— Eu não quero fazer isso com essa garota, é muito errado. Eu até tentaria conversar, sei lá, cancelar a aposta, mas não sei o que se passa na cabeça dele… Na verdade, acho que nem ele sabe. Ethan é um cara maneiro, mas às vezes eu tenho medo das coisas que ele faz — suas íris castanhas fitavam o piso azul-cremoso, ele parecia realmente mal. — Sorte a sua não precisar se envolver com essas coisas, Alex.

Ouvir aquilo fez suspirar alto e rir internamente ao me lembrar da conversa que eu tive com Dan. Mal sabia ele no que eu estava me metendo.

Ser gay? Não é maconha que você está fumando não, é crack.

— Não tem nenhum jeito de cancelar a aposta? Nada mesmo? — Peter me olhou com desanimo, negando. — Então, infelizmente, você vai ter que entrar nesse jogo doentio. Tenta pensar nisso como algo bom.

— Você está brincando, algo bom?

— Você vai perder sua virgindade. Vai se tornar um homenzinho — tentei sorrir, Peter resmungou.

— Que ótimo jeito de — faz aspas com os dedos — virar homem — uma brisa fria passou pelas nossas costas, fazendo meus pelos do braço arrepiar e Peter abraçar o próprio corpo. O sol não brilhava no céu naquela tarde, nuvens opacas tomavam seu lugar. Os dias estavam se tornando nublados. — E você, Alex, já perdeu a sua virgindade?

Eu poderia bancar o coitado, do tipo que as meninas gostam de consolar e depois se afastam enjoadas, como se alguém fosse transar com um babaca deprimido. Ou agir como um pegador idiota que em um passado não tão distante eu fora, eu tive algumas namoradas, meu rapaz. Ao invés disso, sorri e me levantei.

— Vai pra casa, Peter.

I'm sorry if I seem uninterested. 

Or I'm not listening.

Or I'm indifferent.

                                                  x



   Sexta à noite e o brilho da lua cheia refletia na pequena poça d’água abaixo das arvores nos gramados, um gato preto esfregava sua cauda em um poste de luz que piscava pausadamente, ameaçando parar de vez, alguns insetos insistiam em rodear a fraca luz que saia do vidro quente da lâmpada. Os olhos amarelados do gato me olhavam intensamente como se eu fosse um peixe preso no anzol enferrujado de um pescador aposentado, divorciado e largado pelos filhos na noite de natal.   

 As casas estavam fechadas e escuras, meu celular marcava 23h38min, o horário em que as mães obrigam os filhos a dormirem mesmo sabendo que eles construirão cabanas de lençóis para ficarem acordados até tarde. O som dos meus passos se misturava com os latidos, miados, e motores de carros antigos típicos daquele bairro de classe média — era um bom lugar para constituir uma família, ou viver sozinho com doze gatos.

Truly I ain't got no business here.

But since my friends are here.

I just came to kick it.

Três batidas foram suficientes para Dan abrir a porta e me encontrar com sua pantufa ridícula de elefante e calças cinza folgadas. A casa dele ficava entre a quase mansão de um médico aposentado e uma casinha recheada de Adônis vermelha que se enroscavam nas flores de áster rosadas recém-plantadas. Alguns pardais pousavam sobre as Amendoeiras no fundo do quintal — aquela era minha casa favorita em todo o bairro. Dan morava numa casa colorida, como os desenhos de uma criança no primário. Ele odiava aquelas cores, achava desnecessário um gasto tão grande em tinta. Isso era graças sua mãe, uma professora de artes plásticas de uma faculdade do outro lado da cidade, ela transformava tudo em arte, começando por sua casa, depois seu marido e por ultimo Dan.

— Conseguiu sair mais cedo hoje? — perguntou ele com voz sonolenta, os cabelos castanhos estavam cobertos por uma touca preta.

Estiquei meu celular até a altura de seus olhos, que brilharam com a luz que refletia do aparelho.

— Nunca que eles me liberariam um escravo mais cedo — seus olhos curiosos estavam fixos na parte superior da tela, exatamente aonde as notificações das mensagens chegavam.

— Como foi a conversa?

—  Sei lá, me diga você —  Eu joguei o celular para ele e Dan o pegou no ar.

Os sentamos no topo da escada, ele parecia tenso.

 Gay, Daniel? Gay?

É o único jeito de dar certo, cara.

Gay... Homossexual.

É exatamente isso que gay significa.

Engraçadinho.

Eu não sabia como tinha sido meu desempenho, afinal, nunca mais tinha conversado com uma garota fora do trabalho, não que Hayley também não fosse trabalho, na verdade, ela era um trabalhão, manter uma conversa com alguém daquele nível intelectual era quase assustador. O que parecia besta para mim era fantástico para ela, e vice-versa. As palavras simplesmente fluíram entre nós, o que foi bem bizarro.

 Eu só não podia esquecer que estava mentindo para ela do mesmo jeito que mentiram para mim.

Dan deslizava os dedos sobre as mensagens, analisando cada uma como se fosse uma redação para entrar na faculdade de medicina. A varanda escura escondia minha expressão de ansiedade e leve vergonha. Eu estava travado com as garotas, então não sabia exatamente o que falar para elas. Ver Dan lendo minha vergonha era quase tortura.

Nossa pouca iluminação vinha dos postes na calçada e do celular, o brilho atingia seu rosto, fazendo sombras embaixo de seus olhos.  Dan parou de ler as mensagens e me lançou um olhar indignado quase cômico.

But really I would rather be at home all by myself. 

— Ah, não, beleza, você simplesmente jogou na cara dela que era gay. Jesus, eu deveria ter arrumado um amigo gay de verdade.

— Eu só fiz exatamente o que você me pediu, por que ficar enrolando? E como você mesmo viu, conversamos por um bom tempo graças a minha ideia idiota. Então, de nada.

— Isso até você ignorar a ultima mensagem dela. Garotas odeiam ser ignoradas.

— Como se você entendesse de garotas, não é mesmo? — Disse apontando para a mensagem que dizia que eu era gay. – Só para te lembrar do seu plano de quinta série.

— Já disse que é o único jeito de chegar nela, cacete – ele resmungou bloqueando o celular e me devolvendo.

Nós dois ficamos ali no escuro, em silêncio. Dan tinha o direito de estar irritado? Não. Ele estava? Sim. Eu sabia o motivo? Não. Falar assim é a coisa mais idiota do mundo? Sim.

O gato preto de minutos atrás agora caminhava lentamente em cima do muro, ele amolava suas garras numa árvore. O silêncio estranho pairava sobre nós, era bizarro o quanto ele se importava em ter um relacionamento com aquela garota, ou se aproximar dela, ou não sei o que. Mas nada era tão estranho do que como eu me sentia naquele momento — na verdade, eu nem sabia exatamente como me sentia, era apenas estranho. 

— Quando você pretende me contar o porquê de estar me obrigando a fazer isso por você? — nossos olhares se desencontraram.

— Está fazendo isso por mim porque é meu melhor amigo e a única pessoa que confio para fazer isso. Está fazendo isso porque é um bom amigo.

— Você não respondeu minha pergunta. Por que ela? O que ela tem de tão importante para você? E não me venha com esse papinho de amor e alma gêmea, eu sei que você não acredita nisso, nem ficaria tão louco por uma garota do nada. Na verdade até acho você meio gay.  

Ele soltou uma risadinha e me deu um soco no braço. – Cala boca.

Ele estava com aquele mesmo olhar de antes, o pedido além do pedido. Também percebi algumas olheiras e um cheiro forte de café, ele estava com insônia.

— Só é complicado, Alex — disse sem me olhar, com um sorriso fraco no rosto. Era o mesmo sorriso que ele dava ao perguntarem sobre sua família. Estão todos bem, obrigado por perguntar. – Eu sei que parece idiota e totalmente sem sentido para você, mas é a coisa mais importante da minha vida nesse momento.

— Todo bem, Romeu. Conquistarei sua Julieta.

Eu me levantei e peguei minha mochila que estava jogada no penúltimo degrau da escada, o gato preto brincava com as alças dela, empurrando-as com as patas de um lado para o outro, pelo menos alguém ali se divertia.

Dan ficou de pé, limpando a sujeira da calça.  

— E Alex, obrigado.

— Você é meu irmão, cara.

Foi tudo que consegui dizer antes de virar as coisas e ir embora.  

O caminho para casa foi cansativo e demorado, eu não precisava olhar no relógio para perceber o quão tarde era, e para piorar, Anna provavelmente estava acordada me esperando, com seus cachos negros presos por duas tranças, com um livro de histórias no colo ansioso pelo momento da leitura diária, assim como ela, ansioso pela minha chegada. Aquele era o tipo de amor que eu não merecia.

 Meu bairro era o ultimo da cidade, logo ao lado uma floresta densa e escura guardava animais selvagens e insetos venenosos, até mesmo fugitivos — bom, pelo menos era isso que as pessoas pensavam. Para mim aquela era apenas uma floresta de arvores liquidâmbar.

  O ônibus fez sua ultima parada no ponto do final de rua, quase em frente o meu sobrado. Havia apenas dez casas ali, cada uma mais distante do que a outra, um bairro opaco e silencioso, a parte anônima da cidade grande, quase ninguém andava pelas calçadas.

But usually I don't mess with this

And I know you mean only the best

And your intentions aren't to bother me.

 As nuvens não cobriam a lua naquela noite, então ela aproveitava seu show exclusivo para brilhar como nunca, cheia como o balão de uma criança caminhando no parque, com algodão doce no rosto e as roupas manchadas de lama. As janelas estavam abertas e uma fraca luz amarela dava claridade ao batente, um cadeado dourado pendurado nos portões reluzia, me convidando para entrar. Dentro da quase escuridão, uma silhueta chamou minha atenção, ela se misturava com a sombra dos telhados, a pessoa estava sentada na minha porta, uma fumaça cinza saia de sua direção e se perdia no vento.

Ao me aproximar, os cabelos cacheados chamaram minha atenção, seus cachos caiam soltos sobre seus ombros seminus. Era Jenny.

— Que demora — ela sorria como boas vindas enquanto apagava o cigarro na calçada. Levantou-se. — Dia cheio?

— E quando não é? — respondi tirando a chave da bolsa e encaixando na porta. — Entra ai.

— Não, valeu, eu não pretendo demorar muito, apesar de você me fez esperar quase uma vida.

— Foi mal, eu passei no Dan, eu e ele precisávamos conversar — Jen notou meu tom de desconforto e me olhou intrigada. — Que foi?

— Você vai mesmo fazer isso? — Eu percebi que ainda estava com a chave na porta, parado na mesma posição. Jen tinha um tom sério, seus olhos estavam vermelhos, ela provavelmente havia chorado.

Uma enxurrada de sentimentos tomou conta do meu cérebro, fazendo meu coração pulsar mais forte, aquele era a primeira vez que aquilo acontecia — mas não seria a ultima. Eu não sabia o que estava acontecendo, uma sensação de angustia tomou conta da minha garganta. Vai mesmo fazer isso?

— Não sei — eu não sabia se estávamos falando do mesmo assunto, mas a resposta pareceu irritá-la.

— Não sabe? Que história é essa de dizer para a Hayley que você é gay?

Realmente estávamos falando do mesmo assunto. 

— Dan te contou, não foi?

— Não! Ela me contou. Eu vim tirar essa história a limpo.

Droga.

Girei a chave para o lado oposto da primeira vez, trancando a porta. Pedi desculpas mentalmente para Anna, como se ela conseguisse ouvir e segurei o pulso de Jenny, puxando ela comigo para a escuridão da rua. Era apenas eu, ela e os grilos. Sentamo-nos na calçada gelada e suja, com no dia em que ela me contara sobre a morte do pai, ou no dia em que minha vida desabou de vez.

Jen esticou as pernas e tirou outro cigarro do bolso e me ofereceu, recusei com um aceno.

— Para ser sincero, eu não tenho a menor ideia do que estou fazendo, e também não sei por que Dan está me pedindo isso, mas parece ser importante para ele. O cara é meu melhor amigo, preciso fazer isso por ele.

— Espera, Dan está te pedindo para fazer isso? Por quê?

— Eu não sei! Ele simplesmente quer conquistar a garota e está me pedindo para ajudá-lo com isso. Eu finjo ser gay, faço os dois se conhecerem e se apaixonarem, e pronto, é isso.

— Esse plano nem faz sentido – ela soltou a fumaça pelo nariz e jogou o cigarro no meio da rua. – Você finge ser gay e se aproxima dela, até ai faz um pouquinho de sentido, mas e depois? Magicamente ela se apaixonada por ele, descobre que na verdade você não é gay coisa nenhuma – ela me olhou desconfiada – até onde eu saiba... E os três saem por ai andando de mãos dadas como melhores amigos. Esse é o plano de vocês?

— A gente não pensou nessa parte ainda...

Ela me deu um tapa, depois me empurrou. Parou alguns segundos para respirar e me deu mais dois tapas no ombro, eu quis rir da fraqueza delas, mas isso só a irritaria mais ainda. – Vocês não pensaram em nada, babaca! Se isso fosse uma fanfic, talvez dessa certo, mas a vida não é tão simples assim, Alexandre!

— A gente da um jeito, relaxa.

— Para alguém que foi terrivelmente magoado no passado você está bem tranquilo.

Meu humor morreu depois daquela frase, ter levado uma facada no estomago talvez não causasse a dor que eu senti. Ela estava tão certa, tão irritantemente certa. Eu era um cara com coração partido tenta ajudar duas “almas gêmeas” ficarem juntas. Não existiam respostas correta para o que Jen estava me dizendo, não tinha como defender. Era um plano idiota fadado a mágoas.  

— Dan quase chorou quando me pediu isso, sem exageros. 

Jen me encarou. – Quase chorou do tipo quero muito?

— Não, do tipo cara, estou com problemas e preciso que você me ajude.

— Que merda, Al. O que será que está acontecendo?

Dei os ombros. – Não tenho ideia, mas pretendo ajudar. Mesmo que isso signifique...

— Magoar a garota. E sair magoado.

Outra parte que ainda não tínhamos pensado: magoar a garota. Pelo menos, eu ainda não tinha. A parte de fingir ser gay e virar amigo dela estava dando certo até o momento, mas e depois? Eu simplesmente diria a verdade e sumiria da vida dela? Deus, ela me odiaria para sempre.

Que tipo de idiota eu era?

Ela me olhou, querendo rir de nervoso. – Não tinha pensado nisso também, não é?

— Acho que eu não pensei em nada.

 


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Notas finais do capítulo

Thanks
Desculpe qualquer error