O Cupido escrita por Mits


Capítulo 12
Vanessa


Notas iniciais do capítulo

Só vamo



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— Duas horas e meia, Gustavo! Sai desse banheiro – gritou ela enquanto socava a porta, estava furiosa.

No andar debaixo, ele ria dos berros da irmã. Seus dedos faziam a sequência exigida pelo console, os pés vestidos por uma meia de cada cor batiam no colchão com o ritmo frenético da música. Gustavo era bom no que fazia: irritar sua irmã ao máximo. Como por exemplo trancar o banheiro por dentro e sair pela janela de vidro em cima do box, a qual era o único com tamanho suficiente para passar por ali. Ou então alterar o despertador para uma hora de atraso de algo que ela não poderia faltar.

Os passos apressados da garota fizeram a escada de madeira chiar. Gustavo abriu um sorriso largo quando Vanessa abriu a porta de seu quarto com suas roupas em mãos. – Eu não acredito que você fez isso de novo – sua pele estava avermelhada e seu cabelo desgrenhado. O pijama rosa amassado folgava em seu corpo pequeno. O nome de uma banda coreana brilhava na camisa.

— Vai ter que ir fedida!

— Agora é guerra – gritou batendo a porta do quarto.

Depois de procurar a chave da suíte de seus pais enlouquecida, ela cruzou a porta apressada e tomou o banho mais rápido de sua vida. Uniforme posto e rosto apresentável, ela escutou o telefone tocar no andar debaixo. Deixou o banheiro com o chão molhado e girou a maçaneta do quarto. Nenhum efeito, chiado apenas. Girou novamente, o mesmo chiado.

— Que inferno! Gustavo, destranca a porta. Agora!

A risada do mais novo ecoou pela casa quando ele corria até o telefone. – Residência dos Potters, qual trouxa incomoda?

— Gusta, é o Dan. Chama sua irmã pra mim – respondeu rindo. Sabia que ele estava aprontando.

— Ela esta fazendo coco. Disenteria braba.

Dan não conseguiu conter o riso. Ele amava aquele garoto, lembrava-se bem de quando ele nasceu, Vanessa estava feliz e empolgada. Isso até ele aprender a andar e falar. Ibiota foi sua primeira palavra, e desde então ela foi direcionada à irmã mais velha.

— É sério, Gu. Transfere a ligação.

— É injusto! Você só liga aqui para falar com ela. Vanessa, Vanessa, só sabe falar da sua namorada.

— Vanessa não é minha namorada, bobão.

— Então avisa isso para ela. Porque eu já vi seu nome escrito no diário dela com corações do lado.

Dan sabia que Vanessa tinha um diário, sim. Também sabia que aos doze anos seu nome estava escrito nele com milhares de coração. Mas ela havia amadurecido, não imaginava seu nome naquele caderno novamente. Era fora de cogitação. Vanessa jurava ter esquecido esse sentimento.

— Gustavo, transfere a ligação. Por favor.

No andar de cima a garota tentava se enfiar pela janela na esperança de sair do quarto ainda a tempo. Com um pé dentro e outro fora, ela se equilibrou e apoiou-se na mureta que contornava os quarto. O único problema seria a queda, já que estava no segundo andar. Não pensa na altura, não pensa na altura...

Seu progresso a fez chegar na janela aberta de seu quarto. Com uma das mãos ela segurou a parede, enquanto com a outra agarrou nas grades de ferro. Com um impulso pequeno, mas suficiente, Vanessa conseguiu equilíbrio suficiente para, com as duas mãos, segurar nas grades e jogar seu corpo para dentro.

Dan a chamava de corajosa.

Gustavo a chamava de burra.

O telefone em cima do seu criado mudo tocou, seu irmão obedecia aos amigos, mas não a ela. Um fracasso como irmã.

— Alô – disse ofegante. Com os olhos procurava sua bolsa. Estava jogada em frente ao guarda-roupa. Com o pé, puxou a alça para mais perto, ainda sem soltar o telefone.

— A dor de barriga passou? – perguntou ele rindo.

— O que?

— Foi o que seu irmão me disse.

— Gustavo não tem mais o que fazer. Mas o que você quer? – seu tom rude não passou despercebido, e ela não desejou alterá-lo.

— Eu... – uma pausa proposital. Vanessa sabia que ele estava pensando no que falar, ou como falar. Seja lá o que fosse ela não estava muito interessada em descobrir. – Você esta brava? – a pergunta soou ligeiramente acusatória, e aquilo a deixou mais irritada. Dizer que quer ajuda com outra garota não foi suficiente para você? 

— Escuta, Daniel. Eu tenho que sair e fazer algo muito importante. Porque, caso você ainda não saiba, minha vida não gira em torno de você e seus problemas. Estou atrasada, então tchau.

O som agudo do telefone soou como o arrebatamento do arrependimento à porta. Vanessa respirou fundo e segurou as lágrimas enquanto balançava a cabeça negativamente. Chorar pelo mesmo motivo estava fora de cogitação. Depois de calçar seus sapatos e pegar sua bolsa, ela desceu as escadas e correu para a entrada. Os passos apressados de seu irmão surgiram no corredor para a cozinha.

— Por que você foi tão idiota com ele? – sua voz estava esganiçada. Vanessa puxou a maçaneta da porta com força enquanto seu irmão continuava. – Ele só queria conversar com você, mas é impossível fazer isso com uma imbecil. É por isso que a mamãe não gosta de você, é por isso que ninguém gosta de você! – Vanessa continuava a puxar a maçaneta, mas nenhum efeito além de inatividade acontecia. As lágrimas brotaram nos cantos de seus olhos enquanto o estresse do dia subia até sua garganta e formava um bolo.

— Abre a droga da porta, Gustavo! – seu grito não surtiu efeito. A pele vermelha e os olhos beirando lágrimas de irritação fizeram seu irmão gritar mais alto.

— Você só foi idiota com ele porque levou um fora!

O silêncio cortou o coração de Vanessa. As palavras foram processadas em segundos, seu rosto estava manchado pelo contexto em que a verdade fora jogada tão de repente. As lágrimas vieram como uma cascata e ela não aguentou, o estalo do tapa e o susto fizeram seu irmão cair para trás.

— Eu espero que você morra.

Entre um soluço e outro, ela conseguiu abrir a porta girando para  lado certo e deixou a casa como um furacão.

Vanessa não sabia, ou talvez não se lembrasse, mas as linhas telefônicas estavam interligadas. Sendo, no entanto, que o telefone receptor central ficava na cozinha, onde seu irmão havia atendido. Assim, quando a linha secundária é desligada e a originária permanece fora o gancho, a ligação é transferida novamente. Gustavo permaneceu na linha ouvindo a conversa, e não desligou quando brigou com a irmã.

Na cozinha o telefone girava no ar, pendurado. Do outro lado, Dan não sabia o que falar.

 

x

 

Ela corria pelas ruas do bairro desviando dos obstáculos. Postes, pessoas e animais, tudo em dobro e exagero para melhorar seu dia. No final de uma rua do centro da cidade, uma porta giratória de vidro a aguardava. Do outro lado, a fila reduzida de pessoas em frente ao balcão de madeira clara deu esperanças a ela. Vanessa se enfiou porta adentro e correu até o balcão de informações.

 

— As inscrições ainda estão abertas? – perguntou ela ofegante ajeitando a mochila nas costas.

 

— Sinto muito, mas aquele rapaz ali é a última ficha – respondeu calma e compreensiva a senhora de cabelos dourados e maquiagem forte. Ela digitava sem muito interesse.

 

— Moça, por favor. Por favor, mesmo, eu tive uma manhã horrível. Meu irmão atrasou meu despertador, trancou o banheiro, depois um amigo deixou tudo ainda pior. Por favor – sua voz de súplica não disfarçava seu desespero. As lágrimas secas em seu rosto ameaçavam voltar. – Eu quero muito fazer minha inscrição, mas isso só depende da senhora.

 

— Qual o seu nome?

 

— Vanessa. Vanessa Arpini.

 

— Vanessa, eu sinto muito que sua manhã tenha sido tão conturbada. Mas as inscrições só estão abertas até 11h30. Já são 11h45, ou seja, o tempo ainda foi estendido um pouco. Sinto muito, mas as inscrições não podem mais ser feitas. Talvez você tenha sorte no site.

 

— O site já encerrou também – disse com uma voz de criança inconsolável.

 

— Então apenas no ano que vem – ao finalizar seu discurso arrasador. A senhora sorriu docemente e gesticulou para que a garota seguisse seu caminho até a porta.

 

Vanessa sentou-se em uma poltrona desconfortável e ficou observando um vaso de plantas rachado. Tristeza resumia seu dia. A sala era média e bem ventilada, uma TV perto das janelas passava o documentário recente de golfinhos em perigo. Abaixo da TV, revistas de moda e jornais estavam bagunçados por toda a estante. Ao seu lado, uma jarra vazia de café e farelos de bolacha.

A porta do elevador no final do corredor abriu. Um homem de cabelos grisalhos e pele clara saiu de lá com um sorriso radiante, nas mãos carregava um painel de pintura. Ele seguiu até o centro da sala e o colocou ali. Preso na parede branca estava o quadro de uma garota saindo de um lago vermelho, seus cabelos molhados escorriam pelo rosto até os seios cobertos pelo vermelho. Atrás um cenário de caos.  Os olhos da garota eram azuis e alguns salpicados de glitter escorriam como lágrimas. Vanessa observou a assinatura no canto inferior. Era sua.

 

Uma ideia absurda a vez se levantar com um pulo.

 

— Oi, oi – disse se colocando no caminho do homem. Sua voz saiu esganiçada e desesperada. – Aquele quadro, ele…

 

— Você gostou?

 

— Sim. Quer dizer, onde você conseguiu?

 

— Em uma feira de artes no ano passado, mas a autora é desconhecida. Por que a pergunta tão desesperada? Conhece a autora? – riu-se o homem.

 

— Eu sou a autora.

 

Ele deu um riso anasalado e descrente. – Eu ouvi bastante isso. Agora se a senhorita me der licença, eu preciso resolver coisas de gente grande – mesmo dentro de um contexto arrogante, a frase saiu alegre e verdadeira. Aquele homem era um artista também, Vanessa reconheceu.

 

— Eu juro. Se o senhor quiser, eu refaço aqui na sua frente, te mostro o rascunho, material usado. Até coloco a mesma assinatura. Eu sou a autora.

 

— Por que deveria acreditar em você?

 

— Porque essa é minha única chance de conseguir provar que eu tenho capacidade e fazer minha matrícula.

 

Ao fundo uma voz feminina chamou por Paul, o homem acenou brevemente e disse que já estava indo. Antes lançou um olhar curioso para a garota. – Volte aqui no sábado às duas horas da tarde. Faça um quadro que supere aquele e você terá uma vaga.

 

— Sério?! Muito, muito obrigada. Eu vou fazer o melhor quadro que o senhor já viu.

 

Ele riu feliz e caminhou até o corredor. – Tudo bem. Não se atrase!

 

— Eu prometo! – com uma felicidade que não cabia em medidas, ela sorriu em direção à senhora que observava a cena. Estava com a sobrancelha arqueada. – Até sábado.

 

Disse, por fim, sorrindo de orelha a orelha e saindo da Escola de Artes.

 

Na rua ela cantava alto e conversava com as árvores. Senhoras de idade a encarava de maneira preocupada. Tão nova e tão doida; bichinha, tá falando com as plantas, a menina. Vanessa ria dos comentários e continuava seu caminho feliz. Da lista de problemas, o maior tinha sido resolvido, agora faltava reconciliar-se com seu irmão e Dan.

 

Seus pensamentos vagavam em qual seria o melhor presente de desculpas para Gustavo quando seu celular tocou, sem ver ela o atendeu. – Alo?

 

— Está menos brava? – era Dan, ela não sabia como reagir. Ele era o último problema da lista, e agora escalou para o topo sem avisar.

 

— Sim, desculpa. É que minha manhã foi péssima, meu irmão me infernizou mais do que o normal. Você ligou em um momento horrível.

 

— Desculpa. E o assunto importante, resolveu?

 

— SIM – seu grito fez Dan dar risada, ela o acompanhou. – Um dos professores da escola, pelo menos eu acho que era o professor, me pediu um quadro em troca de uma vaga. E é claro que eu vou arrastar, convenhamos.

 

— Vai mesmo, você é incrível.

 

Um silêncio desconfortável pairou. Vanessa não o estendeu. – Ideias do que comprar como desculpas para o meu irmão?

 

— Um sorvete de chocolate amargo com balinhas coloridas no maior pote da sorveteria. Eu sempre compro isso pra ele quando saímos juntos.

 

— Você seria um melhor irmão pra ele.

 

— Para com isso, Vanessa! Você é a melhor irmã que eu gostaria de ter.

 

Lide com esse tiro, Vanessa.

Dan percebeu como aquilo soou e se preocupou em corrigir. – Isso se eu fosse um garoto e tudo mais, você seria uma ótima irmã mais velha pra mim. Ou uma babá bonitinha do tipo que garotinhos se apaixonam, eu me apaixonaria por você se eu fosse um menino. Tipo, enfim...

Vanessa riu, seu coração bateu mais forte e ela mordiscou o lábio inferior. Era isso que amava tanto nele, sempre tentando corrigir as coisas e se enrolando mais.

— Você também é como um irmão pra mim, Dan – a mentira flutuou como pena ao vento, Dan não esboçou nada além de um riso forçado. Vanessa tentou disfarçar com outra pergunta. – Qual sorveteria você e meu irmão vão?

— Bola de Gelo, ela fica no final da sua rua.

— Ok. Anotado, vou dar uma passada lá e comprar minhas desculpas. Beijos, beijos.

— Beijos, linda.

Os dois desligaram juntos. Enquanto Vanessa lidava com seus sentimentos rebeldes e seguia até o caminho de casa empolgada com o novo quadro, Dan remoía a mentira da amiga e tentou decifrar o que aquilo significava para ele.

Talvez nada.

Talvez tudo.

 

Entreguei-te meu coração, mas se não for incomodo, eu o quero de volta.

 

x

 

A calda de chocolate escorria pelos seus dedos gelados. Vanessa jogou sua bolsa no sofá e tirou os sapatos, colocando-os em um lugar qualquer. O sol já tinha terminado seu turno e a lua iniciava o festival no céu, estrelas tímidas e fracas iluminavam a imensidão azul. A cortina da sala balançou com o forte vento gélido, Vanessa desejou vestir um casaco antes de dar três batidas fracas na porta do quarto de seu irmão. Nenhuma resposta.

— Venho em paz – silêncio como resposta. – Eu sei que te machuquei, Gu, mas você também tem que entender meus problemas. Eu tive uma manhã horrível. Nós tivemos uma manhã horrível – nenhum sinal de vida. – Eu sei que não sou a melhor irmã do mundo e também sei que muita gente não gosta de mim, mas... Você é meu irmão e eu não quero que você me odeie. Abre a porta para pegar seu sorvete. Por favorzinho.

A porta da geladeira bateu. Gustavo surgiu no corredor segurando um prato cheio de batata-frita com ketchup e mostarda. Seus pés estavam cobertos pela mesma meia de logo cedo, a blusa com o rosto do Harry Potter em cima de um cavalo estava manchada de tinta. Vanessa riu. Gustavo pegou uma batata e colocou no canto da boca, em seguida a segurou pelos dedos e soprou o ar. – O que tens para mim, jovem vassala?

— Sorvete – sorriu levantando o pote.

Gustavo voltou à batata e mordeu. Ainda mastigando, perguntou. – E qual o sabor da oferenda para um bruxo faminto, trouxa?

— Um sorvete de chocolate amargo com balinhas coloridas no maior pote da sorveteria, enviado pelo seu fiel escudeiro Daniel de tão-tão-distante.

— Bruxos não têm escudeiros, mas eu aceito sua oferta de paz – disse pegando o sorvete com a mão livre e empurrando a porta do quarto com o pé. – Sobre o seu discurso: eu não te odeio, idiota. Eu sou seu irmão, só faço meu dever como tal – já dentro do quarto ele completou. – Você ainda é minha bobona favorita.

 

 

x

 

Já passavam das nove horas e o mercado ainda estava movimentado. O barulho dos carrinhos soava por todo o lugar, assim como crianças chorando e mães lamentando sobre seus maridos gordos. Ou maridos lamentando sobre suas esposas magras demais.

Vanessa andava pelo setor de legumes com sua melhor roupa de esporte enquanto falava com sua amiga pelo telefone. Gustavo se divertia na seção de brinquedos, correndo para mostrar as novidades para a mãe – na esperança de que ela as comprasse. Pobre Gustavo. Dona Sua Mãe sorria para as vizinhas e ignorava o filho. Era uma versão mais velha e cansada de Vanessa, com a diferença nos olhos – castanho escuro.

Vanessa empurrou o carrinho de compras para a seção íntima e começou a ler embalagens de sabonetes íntimos para amiga. As duas faziam piadas infames quando um carrinho desgovernado passou na sua frente, a dona correu para segurá-lo. Ela acenou para que Gustavo ajudasse a moça, ele a olhou feio.

— Eu li o que você me mandou, dizia que encontramos o amor da nossa vida aos dezesseis anos.

Gustavo franziu o cenho. – Você já tem dezessete e ainda não encontrou.

— Você tem dez anos e ainda faz xixi na cama.

— Eu tenho pesadelos!

— Frescura no rabo.

— Mãe! A Vanessa disse porra.

Ao longe a voz fraca e desinteressada da mãe interviu. – Sem falar palavrão, Vanessa.

— Tchau, Gustavo. Vai se perder em alguma seção.

— Vai arrumar um namorado.

— Vai comprar uma fralda.

Você e seu irmão não mudam nunca, disse a amiga ainda na linha.

— Ele sempre será insuportável.

Ele não é evoluído demais para a idade?

— Séries e filmes fazem isso.

Ai, ai.

Vanessa sentiu seu celular vibrar no ouvido. – Calminha, alguém me mandou uma mensagem.

Dan:

Quer sair comigo?


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Notas finais do capítulo

Show de bola



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