Our Games escrita por Magicath


Capítulo 24
Capítulo 24 — A Outra Parte de Mim


Notas iniciais do capítulo

ESSE NÃO É O ÚLTIMO CAPÍTULO!!!

Na verdade ele era, mas resolvi separar a última partezinha e colocar como um "epílogo"
O capítulo divididos em pequenas partes que não tem uma ordem cronológica coerente, mas é claro, tem relação.
Estão ansiosos? Bora ler!



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XXIV

A Outra Parte de Mim

 

O trem move-se rápida e calmamente. Admiro o lindo sol se pôr no céu, dando a este um tom alaranjado. O grande banquete de guloseimas presente na mesa não me parece tão apetitoso, embora eu esteja um tanto desnutrida e com uma estranha impulsividade para ingerir tudo que vejo na frente. Porém, neste momento, não tenho vontade de fazer isso. Nem poderia comer tanta coisa de uma vez, meu corpo está desacostumado e isso me faria regurgitar tudo.

Enquanto brinco com as cerejas que tirei dos bolinhos de baunilha, observo o contorno do Distrito 3 a alguns metros de distância. Essa é minha casa, eu sei disso, eu sinto isso. Ainda não consigo acreditar em tudo que aconteceu. Quero dizer, eu comecei aqui com uma história, fui parar nos Jogos Vorazes e retorno ao meu lar com uma vida totalmente transformada, sem ao menos lembrar alguma coisa.

E eu fico pensando: estou voltando às origens, sem saber que origens são essas. O que seria de mim agora? Tudo o que eu sou é definido por esses Jogos. A única coisa que eu sei é que fui uma participante, um tributo. Tudo que aconteceu antes disso? Jogado na lixeira. E eu nem sei se posso afirmar para os outros que tudo foi verdadeiro, que matei mesmo aquelas pessoas, que mereço a coroa e o título de vitoriosa. Estou ganhando isso simplesmente de graça, tomando a responsabilidade de algo que não parece meu.

Algo que, na verdade, faz parte de mim, da minha história, mas me recuso a encarar isso como verdade.

Estou cansada das preocupações. Estou voltando para onde tudo começou. Talvez eu me lembre de alguma coisa quando pisar na terra do meu passado. Talvez possa ter um pouco de paz para finalmente encontrar as respostas que preciso. Para que eu possa endireitar minha vida de novo.

O trem diminui a velocidade. Ayla pega todos os nossos pertences, já arrumados por ela na manhã de hoje, e então nos prostramos em frente a porta, esperando o momento em que ela abrirá. Hector coloca a mão no meu ombro, sorrindo, feliz por finalmente chegarmos. O pesadelo, temporariamente, acabou.

— Pronta? — ele pergunta.

— Pronta — digo com determinação. Meu coração sapateia dentro do meu peito, louco de ansiedade.

Então as portas abrem, a luz de fora invade o vagão e eu posso rever meu distrito com meus próprios olhos.

Vejo muitas pessoas na estação. Elas estão muito felizes, aplaudindo. É incrível perceber que a maioria delas está emocionada, mesmo eu mal as conhecendo. E creio que grande parte não me conhece também, mas crio uma relação de respeito pelo reconhecimento que recebo, diferente daquele que tive na Capital. Quer dizer, eu não faço ideia do porquê, mas elas parecem... agradecidas. De verdade.

Uma mulher corre no meio da multidão e vem na minha direção. No momento que vejo seu rosto, algo dentro de mim queima como fogo.

Eu corro também e nos chocamos em um abraço; lágrimas não são poupadas. Lágrimas de felicidade, por ela nunca ter partido como os outros, por sua lembrança ser tão concreta. Não preciso saber quem eu sou ou quem eu fui, não preciso de mais nada para saber que ela é minha mãe e que é tudo que tenho e preciso no momento. Toda aquela imensidão de incerteza e infelicidade se dissipa.

Olho para aquelas pessoas que um dia me talvez me conheceram e não devem saber que não me recordo delas. Mas fico feliz em olhar para seus rostos aliviados e pensar no único e verdadeiro prêmio que recebi até agora.

Eu finalmente voltei para casa.

*

Não há vento para se juntar a nós. Nem ele gostaria de assistir a terrível seção de tortura.

O homem cobre o buraco com terra enquanto eu olho para a tenebrosa caixa de madeira ali presente. Hector pousa a mão em meu ombro enquanto minha mãe me abraça. 

Seu nome, Christopher Robert Darwin, foi dado em homenagem a um cientista muito antigo. Sua mãe era dona de casa e adorava plantas, por isso as cultivava ao monte nas janelas de casa. Seu pai trabalhava numa farmácia. Moravam na parte norte do Distrito, onde a maioria dos trabalhadores vivem.

A mãe não aguentou a vinda da criança ao mundo. O pai, que entrou em depressão, morreu alguns anos depois. O menino passou a morar com a avó, mas cresceu vigiando as ruas e aprontando pelo Distrito.

A avó morreu um dia depois de ele ter ido para a Capital. Ele era o último da geração.

Eu ainda não consigo lembrar. Esses são os poucos detalhes que sei sobre ele porque me contaram. Não é um amigo próximo ou um parente que está ali. É um garoto que fez algo grandioso por mim e aparentemente não significa nada agora. Ele não merecia que eu o esquecesse dessa forma.

Demoramos dois dias para conseguir que ele fosse enterrado ali. Não havia família para procurar por ele nem para declarar que tivesse um lugar naquele cemitério. Apenas a família pode decidir isso. Tive que infringir um pouco a lei e gastar uma grana para que isso fosse possível. Eu teria pago uma quantia ainda maior do meu prêmio para que isso fosse feito na parte da Aldeia dos Vitoriosos que não é utilizável, mas o pedido nos foi negado. Ele merecia isso, ele era um vitorioso. Fez mais do que qualquer um que habitava aquele lugar. Foi muito mais do que um mero sobrevivente ou uma vítima de um evento catastrófico.

Após todo o buraco estar coberto por terra, minha mãe e Hector se afastam e eu fico ali apenas olhando para a placa de pedra, para o espacinho entre duas datas. Um espacinho que representava uma vida inteira.

Pelo canto do olho, vejo que Hector diz algo para minha mãe, que me olha de forma preocupada. Ela então volta a encarar meu mentor e novo amigo, assentindo. Ela retira-se do cemitério, deixando eu e Hector a sós. Este caminha até mim, parando ao meu lado.

— Eu queria ter lhe entregado isso antes, desde que estávamos na Capital, mas lá não era seguro — ele diz, mexendo em algo no bolso do casaco. — Acho que... agora é o momento certo.

Do bolso, ele retira um cubo metálico, parecidas com as caixinhas que reproduzem gravações.

— É dele — constato.

— É — Hector diz, distante. — Ele gravou isso no dia das entrevistas, último dia de vocês juntos na Capital. E disse para eu entregar pra você caso tudo desse certo. Palavras dele.

Os dias que estivemos juntos na Capital… Eu mal sei como foram quando estivemos lá. Não lembro desses momentos, os últimos antes de tudo mudar. Há uma progressão de momentos como esses com os quais não estou familiarizada. Momento que, para mim, não existem.

Continuo a encarar fixamente as datas. Se eu não lembro como sucederam os dias durante o evento, como uma gravação estúpida sobre esse momento poderá resultar em alguma coisa?

— Eu não mereço tudo isso — liberto as palavras.

— Lara... — Hector profere, mas não lhe dou chance de falar.

— Isso se torna engraçado de tão ridículo que é. Uma pessoa faz isso tudo, se sacrifica dessa maneira e então você esquece tudo que ela fez. E supostamente devo viver de graça agora, como se alguém não tivesse pagado caro para eu estar aqui.

— Lara! ­— dessa vez Hector levanta a voz. — Ele te queria aqui. Ele queria que você continuasse a viver por ele, garota.

— Eu não consigo sentir essa gratidão, Hector. Eu queria, eu realmente queria, mas… eu tenho medo da dor que vou sentir se permitir que ela volte e traga as memórias de volta.

— Ela? — Hector questiona, confuso.

— A... outra parte.

Hector assente, sinal de que compreendeu. Permaneço em silêncio, simplesmente sem saber o que falar.

— Eu… — tento, mas sou sufocada pela pressão das lágrimas.  

— Lara, se você não fizer isso, vai carregar o peso de uma vida que não sabe porque está vivendo — ele diz. — Não há forma de se livrar da dor, você só precisa coexistir com ela.

Ele deposita o cubinho em cima da lápide e o deixa ali, enquanto volta para o caminho de casa.

 — Não importa se você não lembrar, só… escute o que ele tem a dizer. Não desperdice a chance que ele deu a você.

*

Estou parada em cima de uma antiga construção totalmente destruída. É fim de tarde e daqui posso enxergar parte do meu distrito e da floresta após o limite. Não sei exatamente como vim parar aqui. Talvez ela tenha me trazido.

O que pode ser claramente um sinal, já que o cubo que Hector me deu está em minhas mãos. Coisa me deixa em um impasse: ouvir ou não a mensagem que reside nessa pequena caixinha?

Tenho medo de que se ouvir, nada mude. De que a mensagem não desperte nada em mim. Mas se despertar, serei atingida por um tiro certeiro no peito. Foi meu melhor amigo quem morreu. Como deve ser a sensação de perder alguém muito importante para você?

Olho em volta antes. Esse lugar é tão familiar...

De repente, ouço risadas. E vejo duas crianças correndo, pulando feito macacos pelos escombros. Olho para minhas mãos, onde o cubo está perfeitamente seguro. A pulseira está em meu pulso, quase gritando para eu ouvir de uma vez a mensagem.

E são esses pequenos sinais que me fazem ceder. O pôr do sol que projeta as sombras das crianças, o vento que arrasta suas risadas, o dente de leão que me lembra a neve.

Sei que estou pronta.

Deposito o objeto no chão e sento de frente para ele. É uma coisa tão simples, mas sinto que qualquer movimento brusco é capaz de quebra-lo.

Então, com o coração na mão, clico no botão de ligar.

Primeiro, ruídos. Depois, vozes.

Já tá gravando? — alguém sussurra. — Ah, sim. Hã… Oi, Lara. Sou eu, Chris.

Essa voz… Eu conheço essa voz.

É ele.

Clico no botão de pausar, sufocando-me com a própria respiração. Meu corpo todo se arrepia. Essa sensação… é como se ele estivesse aqui. Por um segundo, aquela típica luta dentro de mim acontece. Parte que pensava que nunca ouviria a voz dele de novo choca-se contra uma parede ao poder ouvi-lo. A outra parte se recusa a aceitar isso, dizendo que aquela relação nunca existiu e é impossível eu sentir isso.

Contudo, logo se dissolve. Eu preciso enfrentar.

Respiro fundo. Tremula, clico no botão para continuar a ouvir.

Então… Se você está escutando isso, é porque conseguimos.

Se eu estivesse aí, estaria te dando um grande abraço e derramando lágrimas de felicidade. Se eu pudesse ter mais tempo, faria uma reprodução holográfica de mim mesmo para que isso fosse possível. Mesmo se tivesse tempo, acho que não conseguiria, porque não sou nenhum técnico de computação holográfica, coisa que eu gostaria muito de ser, você sabe.

Mas esse seria eu comemorando sua vitória, sua sobrevivência. Enquanto você deve estar lamentando eu ter morrido por isso.

Pensando como um espectador agora, eu gostaria de saber como foi minha morte. Talvez nada legal. Ou quem sabe bem heroica, de modo que me coloquem em um quadro num grande museu dos grandes heróis lá na Capital.

Espero que você não esteja chorando agora, pois eu estou fazendo piada da minha desgraça. E eu odiaria ver você chorando por isso. E como é uma piada, espero que você esteja rindo.

Hoje é o último dia que temos antes da arena e seria difícil convencer você a aceitar o que eu vou propor a você aqui na Capital, portanto resolvi esperar tudo dar certo. Tá sendo um momento bem difícil para nós dois aqui... Então talvez essa mensagem deva ser entregue só quando tudo estiver menos caótico do que agora.

Enfim, se nós dois formos para o caixão, quem sabe o que pode acontecer com ela? Possíveis ancestrais vão ouvi-la e criar teorias e hipóteses?

Ok, vou parar de divagar e ir direto ao ponto.

É… droga, estou me atrapalhando. Não é fácil gravar isso pensando como se eu estivesse morto. Sabe, não é muito agradável.

Tudo bem, falando sério agora. Desculpa pelo que eu fiz. É só que… Você é minha única família. Quer dizer que sem mim, você ainda tem chances. Sabe, de sobreviver no mundo. Embora seja a rainha do drama algumas vezes, você é durona Lara. Já eu… Não quero ser dramático nem nada, mas já perdi tudo de mais importante na minha vida. E a ideia você ir embora como os outros não é algo que eu consiga suportar.

Eu sei que deve estar sendo barra pesada pra você aí. Minha lembrança deve ser um peso enorme para você aguentar. Mas… por mais difícil que seja, não queria que você se sentisse massacrada pelo peso da Terra ao se lembrar de mim. É natural ficar triste e não só por causa da minha morte, mas também por causa de tudo que aconteceu antes, momentos que você quer que existam de novo, mas não vão nunca se repetir. Não lhe peço que fique feliz pela minha morte, só peço que vire a página e continue a escrever a próxima história. Crie novos momentos, por mim.

O que eu quero te pedir realmente, Lara, é que cada vez que alguém perguntar de mim, cada vez que alguém mencionar meu nome, você vai lembrar com toda a graça e alegria da vida que eu tive. Você contará minha vida em todo seu esplendor. Depois, no final, diga simplesmente que eu morri. Porque se eu morri é porque vivi anteriormente, e alguém se esquecer da minha maravilhosa existência é um pecado terrível. E apesar das dificuldades, foi uma vida maravilhosa, principalmente graças a você.

Só mais uma coisa, de vez a mais importante. Sei que deve estar cansada de promessas, mas eu juro que essa não é destrutiva quanto as outras que fizemos: viva Lara. Só isso que te peço. Viva por mim, viva o que eu não poderei viver. E não deixe que eu seja uma barreira, porque onde quer que eu esteja, eu estou bem e estarei sempre desejando isso para você também.

Se você se recusar a cumprir essa promessa, irei te assombrar em todas as suas noites.

Então, você promete?


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Notas finais do capítulo

Então, será que ela promete?
E a dúvida que ainda permanece: ela lembrou mesmo?

Pensando em postar o próximo logo amanhã pra não ser sacana e acabar de uma vez com a sofrência. O que acham? Na verdade, se eu postar amanhã e ninguém ter aparecido vocês não vão ter o gostinho de esperar... Então, vou deixar no mistério.

Amo vocês.
Att,
Magicath
OBS: Parte desse capítulo tem referencias do filme A Loja Mágica de Brinquedos.