Our Games escrita por Magicath


Capítulo 22
Capítulo 22 — Perda de Identidade


Notas iniciais do capítulo

Feliz sexta feira 13

Não sei quanto tempo demorei, muito menos por que eu demorei...

Enfim, a partir de agora, é o final da jornada na nossa protagonista. E sem Chris (vocês não sabem o quanto isso parte meu coração).

Avisando que esse capítulo é uma caixinha de surpresas, principalmente para os que não são leitores antigos ou não receberam spoiler (né, Victor?!).

Ah é, 200 comentários. OBRIGADA GENTE ♥

Um poeminha a ver com o cap:

A saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
Chico Buarque, Pedaço de Mim



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XXII

Perda de Identidade

 

O mundo é mole e gelatinoso. Eu flutuo pela superfície do inconsciente até um martelo acertar minha cabeça e causar pontadas de dor, fazendo-me afundar e atingir o chão, ou melhor, um colchão. Há um barulho chato e permanente, igual a um apito. Ele ia lentamente ficando mais fraco, se transformando em murmúrios e outros sons estranhos.

— Ela passou por algumas cirurgias... parece que vai ficar bem — uma voz não muito clara diz. Meus ouvidos conseguem captar apenas lapsos das ondas sonoras.

Estou claramente em um hospital. O cheiro não me engana, muito menos os barulhos. Sinto os eletrodos e cateteres ligados a mim, o barulho da máquina contando meu ritmo cardíaco, tudo monitorando meu estado vital.

Abro os olhos minimamente. A luz branca chega a me cegar, mas quando me acostumo a ela, consigo distinguir os corpos em frente. São dois vultos, manchas pretas no campo de visão, prostrados de pé, conversando.

Os dois vultos se movimentam quando gemo ao mexer o corpo. Parecem estar olhando para mim. As dores são mascaradas por alguma coisa que injetam em meu organismo por um tubo intravenoso.

Fecho os olhos novamente quando tudo começa a ficar mais leve, como se eu estivesse boiando pela água cristalina.

— Lara? — ouço uma voz calma e suave. Não sei a quem chama, mas suponho ser a mim.

Abro os olhos minimamente. Há um menino olhando para mim, curioso. Pisco uma vez, focalizando seu rosto. Então o vejo deitado em uma cama de metal. Seu cabelo castanho cobre os seus olhos sem vida. Há um corte longitudinal fechado com pontos em seu peito.

Desperto imediatamente, como se acabasse de imergir da água. Solto a respiração que antes eu trancava, permitindo que meus pulmões tomem para si uma boa quantidade de ar. 

— Ei, está tudo bem. — Algo gelado toca meu pulso, procurando me acalmar. — Acabou.

 Os dois vultos tornam-se corpos sólidos de um homem barbudo e uma mulher me encarando.

O que acabou? Quem é esse homem e quem é essa mulher? Porque eu estou em um hospital? Teria eu acordado de um coma?

E aquele garoto... Para onde ele foi?

— Eu não… — tento dizer, mas a garganta está seca demais.

— Vá com calma — ele pede, dando-me um copo de água. Acabo com o conteúdo em um segundo. — Melhor?

Mexo a cabeça vagarosamente, afirmando.

— O menino... Ele estava machucado — eu digo. Não conheço aquelas pessoas. Foram elas que feriram o garoto? Iriam fazer isso comigo também? — Onde ele está?

— Lara... não há nenhum menino aqui — o homem torna a falar. Parece preocupado. Não sei quem ele é nem como me conhece, mas sinto uma sensação familiar de que já o vi antes.

Lara... Eu sou Lara? Devo ser. O menino estava chamando por mim, eu o vi e ouvi. Estou imaginando coisas?

E por que sinto que é a primeira vez que estou ouvindo meu suposto nome?

O homem olha para a mulher de branco ao seu lado, procurando alguma explicação.

— Ela ainda está um pouco atordoada— explica ela, ignorando minha presença, observando-me como se eu fosse uma experiência. — Os fatos podem demorar a se organizarem.

— Talvez ela estivesse falando do Chris... — o outro comenta em um tom mais baixo, uma tentativa falha de manter a conversa em sigilo.

Sinto uma sensação muito estranha, como se meu corpo estivesse tentando me contar algo, mas essa coisa não conseguisse chegar clara até mim. O rosto do garoto moreno logo aparece novamente na minha cabeça. Seria ele o dono deste nome, Chris? O que ele significa?

— Quem é Chris? — interrompo a médica, que estava prestes a falar.

Um clima tenso é criado entre nós três, como se o ar ficasse mais denso e com menos espaço, tornando-o mais pesado.

— O que...? — o homem barbado fica embasbacado, como se minha pergunta tivesse abalado toda a sua estrutura. — Como assim “quem é Chris”?

— Com licença ­— a mulher pede.

Ela afasta o homem e se aproxima de mim. Os olhos dela observam até o fundo da minha alma.

— Querida, do quanto você se lembra?

— Lembro do que? — digo ríspida. Estou cansada de ter tantas perguntas e ficar sem resposta para o que está acontecendo.

— Dos Jogos Vorazes.

Algo dentro de mim explode e desencadeia uma descarga elétrica. É aquele evento horrível que manda crianças serem mortas numa arena. Como eu sei disso? Não faço ideia, o nome é como um estímulo que transmite essa informação que me faz ficar tensa e apreensiva. É claro que eu lembro do evento em si, mas creio não ser essa o objetivo da sua pergunta.

— Porque está me perguntando isso?

— Você saiu da arena ontem de manhã — o homem ao lado da mulher explica. — Você é a vitoriosa da 56ª edição. A Capital está eufórica. Está familiarizada com esses fatos?

A máquina registra o aumento dos meus batimentos cardíacos. De repente, torna-se muito difícil a tarefa de respirar. Coloco as mãos sobre o rosto, balançando a cabeça negativamente.

Ele mencionou a Capital. Será que eu estou na Capital? E por que ele afirma que eu ganhei os Jogos Vorazes? Isso é algum tipo de brincadeira. Eu não me lembro de ter sido um tributo, não lembro de ter participado de tal atrocidade.

Não é possível que isso seja real.

— Por que você está dizendo isso? — eu digo, afastando-me um pouco dela. O travesseiro macio em minhas costas impede-me de bater a cabeça na parede. Encolho minhas pernas, desvencilhando-me o máximo possível do toque dessa megera.

— Lara, acalme-se, está tudo bem — o homem se assusta com minha repentina mudança de comportamento.

A médica faz um sinal para que ele espere e mantenha-se afastado. A mão dela pousa sobre a minha, mas não é um aperto amigável.

— Você sabe porque está aqui? — ela pergunta, quase forçando-me a responder.

— Não.

— Sabe quem é ele? — Aponta para o cara ao meu lado.

— Não.

— Você se lembra de ter sido escolhida para os Jogos Vorazes? Lembra-se de estar na arena?

Tenho a sensação de estar tendo uma arritmia cardíaca. Quero explodir essa máquina que me entrega. Estou confusa, desorientada. Eu não lembro de nada disso que eles estão afirmando. Nem sabia que a Colheita já tinha passado, que os jogos já tinham acabado. Tampouco que edição estávamos na edição 56. E eles continuavam afirmando que eu havia participado.

De acordo com eles, eu era uma vitoriosa. Eu sobrevivi ao pior evento já criado pelo ser humano.

Então por que eu não me lembro disso?

— Foi como eu imaginei — a mulher se pronuncia sem que eu precise dizer mais alguma coisa. Ela respira fundo antes de começar a explicar. — Parece-me um caso de amnésia retrógrada. Pode ter sido um trauma cerebral ou psicológico, por causa do choque...

— Amnésia? Você quer dizer, perda de memória?! — O homem repete, quase gritando de tanta surpresa. Era óbvio o que estava acontecendo, mas ele não queria aceitar a verdade. — Ela esqueceu tudo?

— Não exatamente tudo, senhor— a doutora afirma. — Alguns detalhes foram poupados, mas ela não parece se lembrar de muitos detalhes sobre os Jogos.

— Até mesmo... o garoto?

Ela faz um movimento com a cabeça, lamentando.

— É o que aparenta, eu sinto muito.

— Como isso é possível? — ele questiona, balançando a cabeça em negação.

— Mesmo que o crânio não esteja fraturado, o cérebro pode bater contra a parte interna do crânio e ser danificado. Os resultados dos exames não mostram nenhum dano, mas pode ser que tenhamos deixado algo passar. Pode ter sido por causa do trauma psicológico ou até o subconsciente bloqueando as memórias. Ela não é a primeira, alguns dos vencedores também demonstraram esse tipo de esquecimento. O quadro geralmente é transitório, mas pode acontecer que não.

— Por Panem… — o homem sussurra, colocando as mãos sobre os olhos. — O que nós vamos fazer?

— Não se preocupe, nós possivelmente podemos achar uma solução. Mas precisaremos fazer mais alguns exames para ver se encontramos a causa do problema. Você pode orientá-la por enquanto, vai ser melhor se o senhor explicar a situação de uma forma mais clara. Com licença.

Ela sai a passos rápidos do quarto, deixando-me sozinha com o estranho e mais dois guardas parados na porta que antes não vi ali.

O cara barbudo continua com o olhar fixado em mim.

— Por favor, me diga o que está acontecendo... — eu peço. Meus olhos começam a se encher de lágrimas.

— Olha, eu...

— Não hesite em me contar — interrompo-o, vendo que tem dificuldade em expor a verdade. — Eu preciso saber.

Ele senta ao lado da cama em que estou e suspira antes de falar.

— Primeiramente, eu sou Hector, a pessoa que está encarregada a cuidar de você — ele se apresenta. Tenho a impressão de que já ouvi esse nome antes, mas não me é familiar ao rosto desse homem. — Eu era seu mentor. Está familiarizada com esse termo?

— Hã… Não muito.

— Sou eu quem dava as dicas de sobrevivência.

— Então... — paro um pouco, refletindo e organizando as informações — você é um sobrevivente? Dos Jogos?

— Sim, eu sou. E você foi uma participante dessa última edição — Hector continua. — Agora é a nova vitoriosa. Isso não é tão difícil de compreender, é? — Faço que não.

— Bem... apesar disso, as coisas pelas quais você passou para chegar até aqui… Foram terríveis. Eu não quero te aterrorizar, mas há uma enorme história por trás do que aconteceu, do motivo de você estar viva. É uma pena que você esteja confusa sobre isso. Você vai estar presa a esse mundo sem entender exatamente por que...

Ele morde o lábio inferior e balança a cabeça, negando algo. No instante seguinte, Hector começa a chorar.

— Eu sinto muito, Lara. Eu sinto tanto por isso ter acontecido — ele confessa. O arrependimento em sua voz é cortante. — Eu queria poder ficar no seu lugar, você não merece isso. Eu queria tanto poder reverter a situação…

O remorso é evidente em diferentes níveis. O que quer que tenha acontecido, foi grave, mais grave do que eu pensei. Há algo muito profundo nessa história toda e eu não posso saber, porque isso foi tirado de mim. Estou sob a superfície de um iceberg enorme. O que eu sei é o raso e o fundo dessa história está abaixo de mim, mas isso eu não posso alcançar. E eu tenho a impressão de que seu eu tentar, vou me afogar.

*

Levaram-me para fazer mais alguns exames (vários, na verdade) e uns tais testes neuropsicológicos para avaliar meu estado e testar se a “cura” para meu problema poderia realmente existir. Eu apenas obedeci. Não havia o que eu pudesse fazer. A partir de agora, eu já não tenho mais controle de quem eu sou.

A mulher, Dra. Oliva, depois de me deixar mais uma vez esperando no quarto, retorna com os resultados. Resultados de que eu não sei, mas ela apresenta uma expressão satisfeita no rosto. Ao mesmo tempo, porém, receosa.

— Não há nenhum sinal de fraturas ou traumas. Demonstra ser caso de psicogênica. Parece-me um caso de transtorno dissociativo

— Está dizendo que eu tenho transtorno mental? — assumo, totalmente chocada.

— Bem, não é algo grave, como um distúrbio, é só… apenas uma complicação, um acaso. Suas memórias foram reprimidas em decorrência de um evento traumático e nós não achamos realmente a origem do problema, entende?

Entendo apenas parcialmente, mas balanço a cabeça, afirmando.

— Ok… O que faremos então? — Hector questiona.

— Há uma hipótese de que seu subconsciente esteja bloqueando o acesso ao consciente, onde suas memórias estão armazenadas. Como se ele estivesse convencido de que não há memórias sobre os Jogos. E quando você acredita em seu subconsciente, isso se torna uma verdade inquestionável, a não ser que você desacredite...

— E como isso demonstra que obtemos um progresso? — o mentor pondera.

— Nós temos uma maneira de reverter a situação — ela informa, sorridente. — É… Na verdade é um teste. É uma tecnologia nova.

Eu e Hector nos olhamos. Então ele faz um sinal para a doutora prosseguir.

— O que nós iremos fazer é induzir respostas à certas situações. Ao expandir as zonas de controle do cérebro, é possível controlar pensamentos, emoções e memórias. Nós podemos conecta-la a um programa de computador e fazer isso. Seu rastreador tem um histórico salvo no programa que mostra o que aconteceu com seu corpo durante algumas situações nos Jogos. E esse programa vai reproduzir tudo e nós vamos tentar induzir essas emoções pela sala de controle. E talvez alguma dessas emoções possa ativar algo no seu cérebro que te faça lembrar.

Fico incrédula. Se entendi direito, eles farão eu viver aquilo que, ao que parece, eu fiz um esforço para esquecer.

— É um corpo virtual, como num jogo, mas a sua, como posso dizer… consciência vai estar lá e o corpo é só uma representação gráfica. Você não vai se machucar.

Ah, é claro, meu sangue não será derramado, minha imagem não será tocada. Mas o que eu sinto dentro de mim não importa. Eu preciso ser o boneco perfeito para transmitir a imagem perfeita à Capital: a menina que ganhou os Jogos e está feliz com isso.

— Então vocês irão forçá-la a lembrar de algo que ela não quer? — Hector intervém. — Literalmente uma lavagem cerebral?

A médica hesita em responder, claramente desconfortável. Mas ela retoma a postura de autocontrole.

— É necessário.

— E se ela se recusar?

— Bem… Infelizmente, haverá consequências — a médica encerra em tom sério. Hector pressiona as têmporas e suspira frustrado. — Sinto muito, mas ela é uma vitoriosa e precisa saber os detalhes da história dela.

— Entendo. É um bem necessário, não é? — ele diz irônico, vendo que não há mais saída. — Vá à merda com isso. Tudo aqui é só atuação! A Capital só enxerga o que quer enxergar. Não é necessário toda essa baboseira.

A Dra. Oliva fica sem palavras. Ela não sabe o que responder.

— Se nós fizéssemos, há a possibilidade de isso afetar a personalidade dela? — Hector volta-se para a mulher. — Ou definitivamente causar algum transtorno, retardo, dano no sistema nervoso?

— Nós não temos como prever qual será o comportamento dela, nem que partes do cérebro podem ser afetadas. Mas nós teremos extremo cuidado para não afetar nenhuma região, principalmente o lobo frontal, relacionado ao comportamento e a personalidade. Contudo, a possibilidade de dar algo errado não pode ser descartada. Cabe apenas a ela decidir se está disposta a encarar essas possibilidades.

— O que você acha, Lara? — Hector me pergunta. Até agora fui apenas o objeto da conversa. Mas a decisão é minha.

Estou encurralada. Realmente não sei o que eu quero. Tudo o que sou agora é consequência de algo que aconteceu no passado. E se eu não entendo o que aconteceu antes, não posso entender o motivo de estar aqui. Quero entender por que estou aqui, por que é tão importante que eu esteja viva. Por que a história antepassada foi tão significativa… Se eu lembrar, posso preencher esse vazio na minha história.

Mas pode ser que seja pior. Esse vazio pode aumentar e se transformar em um buraco negro capaz de sugar minha vida e deixa-la ainda mais sem propósito.

Porém... essas pessoas dizem coisas sobre mim que eu não sei se são verdade. Não sei o que fizeram comigo, não sei o que me tornei e não sei quem devo ser a partir de hoje. Mas as respostas podem ser obtidas pela proposta deles.

Preciso entender como e por que sobrevivi. Se devo agradecer ou lamentar pela nova vida que tenho. Essa pode ser a solução para saber quem sou eu, quem eu fui e quem eu devo ser.

Fecho os olhos e expiro. Prendo o ar e o solto devagar. A resposta está na ponta da língua.

— Eu aceito.

 


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Notas finais do capítulo

Olha, isso que quiseram testar na Lara é algo que eu vi em Sword Art Online (primeira temporada, episódio 21, 7:20). É algo inventado é claro, mas foi uma maneira que eu achei legal de fazer Lara ver E sentir o que aconteceu (cruel, eu sei). Literalmente, eles querem obrigar ela a lembrar. E o que mais funcional que fazer ela sentir tudo aquilo de novo?

Perguntinhas:
— Ela fez certo em aceitar?
— Vocês acham que ela vai lembrar?
— Como se sentem sabendo que ela não tem mais o Chris e sequer se lembra dele?

Estamos muito próximos do final :( Dois capítulos....
Bem, espero que tenham gostado e que não tenha ficado muito confuso. Qualquer duvida, gritem.

Att,
Magicath



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