Our Games escrita por Magicath


Capítulo 21
Capítulo 21 — Parte II: Sacrifício


Notas iniciais do capítulo

sacrifício
sa.cri.fí.cio
Ato de abnegação, inspirado por um veemente sentimento de amizade ou de amor.
Risco em que se põem os próprios interesses para interesse de alguém ou de alguma coisa.
Dar algo valioso em troca de algo ainda melhor.

Acho que entenderam o que está prestes a acontecer, não é?
Se preparem.



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XXI

Parte II: Sacríficio

Um silêncio mortal paira no ar. As gotas de sangue contornam a lâmina da machadinha de Chris e atingem o chão. Eu quase posso ouvir o barulho que fazem ao se desmancharem no branco do chão.

Não sou capaz de esboçar uma reação. Não consigo acreditar que é Chris ali parado, coberto de sangue, arfando como um animal feroz.

Nossos olhares se encontram e é como se ele estivesse pedindo desculpas. O peso desse olhar me sobrecarrega. A tristeza em nossos corações chega a ambos os olhos. É como se passássemos a encarar toda a linha cronológica que construímos juntos desmoronar. Desde o primeiro contato aos últimos momentos dentro da arena, onde tudo ruiu, menos uma única coisa, mais simples que um fio de algodão. A nossa amizade, a força que nos manteve vivos. E isso nós compartilhamos, reacendemos dentro de nós para que, aconteça o que acontecer, não nos esqueçamos disso.

Esse é o fim. Dois de nós vamos morrer. O que acontece aqui define o nosso destino. Seja ele de Matt, Chris ou meu.

Não quero morrer. Quero me ater mais que tudo à minha vida, mas é como se eu tivesse perdido toda a coragem. Se eu tiver que lutar com Matt... Talvez seja melhor ceder. Não consigo me enxergar como a vencedora dessa edição, por mais que eu tenha chegado até aqui. Na verdade, isso parece mais uma punição do que um milagre. Ser uma dos três finalistas dos Jogos Vorazes só para assistir meu amigo ser morto por um psicopata e ser a vítima logo depois.

Nós poderíamos simplesmente correr. Eu e Chris sempre encontramos diferentes soluções para um mesmo problema. Matt está em péssimas condições e não nos alcançaria. Poderíamos muito bem nos esconder e esperar que os idealizadores resolvam o que fazer. Porém... isso significaria que sobraríamos apenas eu e Chris. 

Nos breves segundos que temos antes do choque acontecer, olho para ele. Seus olhos parecem transmitir exatamente os mesmos pensamentos, porém com uma diferença: ele não irá junto. Gesticulando com a cabeça, olhos e boca, ele pede para que eu vá, eu sei disso. Essa é a nossa despedida.

As lágrimas começam a rolar pelos meus olhos e um grande aperto se forma em peito enquanto, aos poucos, levanto-me, obedecendo Chris. Eu preciso deixa-lo para trás nesse momento, pois não poderei aguentar depois. Não posso assistir, só posso aceitar o que terá que ser feito. Eu sei que ele fará o máximo para atrasar Matt e eu terei que me ater à promessa e ao sacrifício que ele fez por mim no começo dos Jogos. Se eu quiser que a vida dele não tenha sido em vão, eu preciso partir agora. Eu preciso ganhar os Jogos, por mais que eu não queira.

Estou mais ou menos de pé quando Matt, que antes estava estirado no chão, consegue se levantar. Ele parece estar achando graça da situação toda.

— Estou impressionado — Matt comenta, limpando o sangue que escorre da boca. Ele forma uma mancha em sua bochecha e nas costas da mão. — No final das contas, eu achei que eu mataria ela quando sobrássemos apenas nós dois. — Ele aponta para o corpo de Heather. Sinto ânsia ao olhar. — Incrível. Parece que eu subestimei vocês.

Eu e Chris nos mantemos em silêncio. Não sabemos o que falar. Ele apenas continua a pedir silenciosamente que eu vá.

— Eu já planejava matar todo mundo naquela ida ao lago — ele começa a contar. — Mas é claro, eu não controlo o jogo. E logo vocês, seus dois idiotas, sobreviveram. É algum tipo de piada?

Matt encolhe os ombros, reclamando para o céu, como se alguém fosse lhe responder.

— Vamos lá, vocês não estão felizes? — Matt joga as mãos para o ar, indignado. — Afinal, vocês sobreviveram.

— Cale a boca — Chris grita para o carreirista. — Já estou de saco cheio de você.

A reação que eu esperava era que Matt ficasse irritado. Mas ele levanta as sobrancelhas e ri ainda mais alto.

— Eu queria poder dar um jeito de assistir vocês dois se matarem — ele zomba. — Mas isso custaria minha vida e minha vitória, então acho que eu mesmo farei isso por vocês.

A expressão dele transforma-se em puro ódio. Segundos antes de ele avançar, Chris grita:

 — Lara, !

Matt avança subitamente na minha direção enquanto pega um punhal em seu cinto. Chris logo dispara atrás dele. O carreirista está machucado e parece sem fôlego, mas parece correr sem esforço. Talvez a adrenalina iniba toda a dor e ardência que ele está sentindo. Chris é menor do que ele, mas corre rápido e aos poucos encurta a distância, logo ele o alcançará. 

Eu não penso duas vezes, viro-me e também começo a correr. É difícil, pois tudo arde, mas eu não desisto. Com uma mão em torno do torso, corro para longe, esforçando-me para não olhar para trás. Não importa o que aconteça atrás de mim, eu não posso olhar.

Contudo, Chris grita:

— Lara, abaixa!

Minha primeira reação indevida é olhar para trás. Acontece tudo muito rápido, mas consigo registrar o movimento de alguma coisa vindo em minha direção. Me encolho, protegendo a cabeça e me jogando no chão, esperando que não seja tarde demais. O punhal, por algum motivo, bate com uma força descomunal em meu antebraço, mas não se finca. Segundos depois, ouço a colisão. 

Uma vez no chão, minha respiração falha. Meu corpo sucumbe à fraqueza, desabando ao chão. Não sinto que estou morrendo, apenas fraca. O mundo se desliga a minha volta enquanto a tontura passa. Tento me apoiar nos cotovelos, mas meus braços tremem demais. Abafadamente, escuto os sons provenientes do conflito entre Matt e Chris. Aperto os olhos com força tentando ignorar, sentindo as lágrimas frias neles pingando em minhas mãos, mas não consigo.

Quando enfim viro, é difícil registrar o que está acontecendo. Os dois estão ao chão, debatendo-se. Chris está em cima de Matt, segurando-o pelas costas, com a cara enterrada na neve. A machadinha está em uma das mãos de Chris, mas ele nada faz com ela. Talvez ele não saiba o que fazer, ou talvez não tenha coragem. 

Matt enfim vence Chris, que é dez vezes maior do que ele. O carreirista joga o garoto para o lado e rola. Ambos se arrastam para tentar ficar de pé, mas há uma confusão de mãos, braços e pernas. Chris chuta o oponente, enquanto esse tentar agarrá-lo. O garoto tenta golpear o carreirista com o machado, mas ele ampara a arma com as próprias mãos, segurando cabo e lâmina, nem parecendo sentir dor. Então, sem nenhum esforço, ele arranca-a das mãos de Chris, jogando-a para o lado. 

É nesse momento que grito em protesto, mas mal ouço o som. Também pareço nem sentir o movimento do meu corpo, aproximando-se dos dois. 

Quando as mãos enormes e gosmentas de sangue enrolam-se envolta do pescoço de Chris, mal registro meu grito de protesto. Posso ver que a vantagem que meu amigo tinha já era, e sem perceber, meu corpo se move. Matt vai matar Chris e eu não posso deixar isso acontecer. Preciso acabar com isso antes que ele venha atrás de mim.

É como se tudo acontecesse em câmera lenta e ao mesmo tempo rápido demais, como se eu parasse de sentir e pensar, e meu subconsciente me movesse sozinho. Quanto mais eu me aproximava, mais eu podia ver a expressão de prazer no rosto de Matt e o esforço, em vão, que Chris fazia para se libertar. O carreirista parecia vidrado, fora de si, e ali estava minha oportunidade.

Eu me movo com um tipo diferente de determinação. Não é uma manifestação feroz de sobrevivência, de que eu devo me agarrar à vida, e de que eu quero fazer isso. É uma determinação que dói, que machuca e que eu não gostaria de ter. Um desejo triste de apenas acabar logo com isso. Não existe melhor cenário; o único possível é o que eu sobreviva, não importa de que forma. 

Já estou perto o suficiente para pegar a machadinha e faltam apenas mais alguns passos para eu alcançá-los. Matt parecia não me notar, apreciando a expressão desesperada de Chris e a sensação dos seus dedos esmagando a traqueia da vítima. Meu cérebro trabalha a mil, pensando onde golpeá-lo, como golpeá-lo e se eu realmente conseguirei matá-lo. Chris está prestes a desmaiar, ou morrer sem ar, e em seus últimos momentos de defesa, tateia o chão.

Sua mão envolve o cabo do punhal e sem pensar duas vezes, crava-o no peito de Matt. O carreirista solta um suspiro de surpresa, desenroscando-se do pescoço de Chris. Este por sua vez ofega por ar, tossindo enquanto se afasta. Paro ao lado deles, a machadinha pendendo em minhas mãos.

As de Matt vão em direção ao ferimento. O punhal ainda está fincado nele, e pouco sangue se espalha. Por um momento ele parece atônito, assim como eu, mas seu corpo começa a emitir certos espasmos e penso que está fraquejando, perecendo, porém... ele está...

Rindo.

Matt levanta a cabeça lentamente para me encarar. Em silêncio, respirando com dificuldade, ele olha para mim com ódio efervescente nos olhos, ainda com um sorriso no rosto. Ele não quer desistir ainda. Ele luta contra tudo para continuar vivo, para acabar com eu e Chris. Ele ainda acha que pode vencer os Jogos Vorazes.

 — Eu não vou morrer antes de acabar com vocês — ele diz, a voz mal reverberando por sua boca.

Com uma velocidade absurda, ele arranca o punhal da própria carne. Dessa vez, o sangue se espalha rapidamente. É tarde demais quando a lâmina atinge o seu alvo. Meus ouvidos não registram outro grito de protesto que sai da minha garganta, frio e cortante, como o clima da arena. 

As costas de Chris se curvam ao encontro do punhal com seu peito. Posso ver e ouvir o seu último suspiro saindo de seu corpo e não tenho como descrever o quanto é horrível. Não é uma mudança no vento, nem é Matt que errou o alvo. É Chris que ganha o seu lugar no berço dos mortos. E em seguida sou eu.

Em meio à lágrimas congeladas e o peito que arde clamando por um pouco de ar, eu reajo. Eu não sei o que eu fiz, só sei que sinto a lâmina do machado atingir alguma coisa dura. Ouço Matt cair no chão, mas não olho. 

Os dois tiros dos canhões sinalizam a morte e ecoam no silêncio. Não há anuncio da vencedora da 56ª edição. Parecem que me dão esse momento, para saborear o sofrimento junto comigo.

Por um breve minuto eu não consigo me mover, nem ouvir, tampouco respirar. Não me importo com o anuncio do locutor. Meu corpo não consegue reagir, por mais que eu deseje.

Aí minha existência parece ser sugada junto da vida dele. Meus pulmões pedem por ar enquanto eu grito, mas é como se não houvesse mais oxigênio. A dor sufoca e mata tudo dentro de mim.

É difícil respirar. É ainda mais difícil de acreditar.

Eu deveria estar preparada para isso. Eu sabia que isso ia acontecer. Então porque dói tanto?

A neve absorvendo o escarlate já é uma cena comum para mim. Estou tão transtornada que não é o sangue que me incomoda. É tao familiar quanto água da chuva. 

Sentindo que tudo acabou, eu desabo ao chão ao lado de Chris. Eu amparo seu corpo pequeno e frágil em minhas mãos, segurando-o enquanto ele se vai, como se pudesse impedir isso de acontecer. Coloco as mãos sobre o rosto dele, retiro o cabelo dos olhos. Parecem distantes, sem vida... 

— Chris? ­— eu o chamo. Ele não responde. — Chris! — eu grito dessa vez. Eu o embalo como uma mãe carregando seu filho. Eu não quero solta-lo, não quero me desprender dele nunca mais.

— Por favor Chris, responde. Eu estou aqui, por favor, eu não vou te deixar.

Novamente, sem resposta. 

Não há últimas palavras. Não há ato heroico, tampouco bravo. Ele não salvou minha vida, porque não há como salvar uma aqui dentro da arena. Este momento acabou de destruir a minha, não de salvar. Ele simplesmente se foi sem que eu pudesse lhe dizer nada. 

Olho para os lados, atordoada. Para onde ele foi? Eu o chamo, ele não responde. Eu o chamo, ele não acorda. Chris não está aqui, Chris não está no corpo caído no chão. Nunca entendi as palavras "ele se foi". Pensei que não era possível ir para algum lugar depois disso.

Agora eu entendo. Ele se foi e eu não sei para onde. E nunca mais vou poder vê-lo.

Você suportaria ver alguém te deixar sem saber para onde ela vai?

Eu não. 

— Por favor Chris, não vai embora, não vá para onde eu não posso segui-lo... — clamo uma última vez. É inútil.

Então as lágrimas caem. Os soluços começam. Agarro sua camisa, eu chamo por ele. Quero que ele me assuste, diga que é só uma brincadeira idiota. Quero sua voz, quero seus olhos me encarando e falando que finalmente conseguimos. Mas não importa o que eu faça, esse silencio matador confirma que ele já partiu. Ele não está mais aqui comigo. Toda a sua essência se dispersa em milhões de partículas que não posso juntar.

Ele não era nada além de um saco de ossos, tecidos e um coração que não funciona. Agora era nada mais do que um vazio. Não havia mais Chris. Não havia mais eu. Não havia mais nada.

Nada.

Lembro-me do enterro do meu irmão. De como Chris estava ao meu lado, chorando mais que eu. E de como estivemos juntos desde então, lembro-me de todos os nossos dias divertidos... E então percebo que nunca mais terei isso. Que Chris nunca mais vai estar ao meu lado e eu nunca mais vou poder dizer a ele como me sinto e não vai ter alguém mais para me abraçar e deixar que eu manche o ombro de lágrimas. Quem fará todas aquelas piadas idiotas e desnecessárias? Quem eu irei chamar no meio da noite quando acordar por causa dos pesadelos?

Eu não serei capaz sorrir de novo sem Chris por perto.

Eu não quero isso.

Agarro o punhal cravado no seu peito. Minhas mãos molhadas de sangue escorregam pelo cabo da arma. Ela sai fazendo um barulho semelhante ao de sucção.

Contudo, eu hesito. Eu hesito porque Chris lutou tanto para que eu sobrevivesse e eu estaria simplesmente jogando tudo fora se fizesse isso. 

A transmissão provavelmente foi cortada, pois nesse momento o aerodeslizador chega para me tirar do cativeiro. Dois homens saem dele por uma escada. Duas mãos pesadas me puxam, enquanto outra tira desesperadamente o punhal da minha mão. Eu demoro um pouco para assimilar o que está acontecendo. Quando vejo que estão me afastando de Chris, grito, segurando ainda mais forte o corpo dele. Eles querem tirar ele de mim. Não o solto, eu o quero de volta mais do que tudo, eu quero sua companhia eu quero seu conforto, seu sorriso. A sensação de que nunca mais o verei, de que nunca mais terei isso, é devastadora.

Contudo, um simples puxão faz com que eu não seja mais capaz de segurá-lo. Então eles me arrastam e nós subimos no aerodeslizador. E ele vai ficando para trás, longe… Eu não consigo alcança-lo, não consigo mais sentir seu toque, não posso mais senti-lo.

Mas ele se foi há muito tempo...

Grito, grito seu nome. Não me contento com o silencio. Continuo tentando me desvencilhar das mãos que me prendem e me afastam de Chris. Sinto uma agulha beijar-me o pescoço e vou perdendo as forças. A consciência vai se dissipando, tudo vai ficando mais sonolento, pacifico. Deixo que eu me transporte para outro lugar, desejando não acordar no dia seguinte.

 


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Notas finais do capítulo

Eu disse q ia ser depois da semana de provas né? Menti, não me segurei. Agora que estou aqui procrastinando eu tomei a coragem.

Eu não acredito que eu fiz mesmo isso
Gente eu realmente postei esse capítulo
Eu não to acreditando
É aqui que nós finalizamos, é aqui que tudo acaba. Tipo assim, tudo muda agora. Esse é o final. Eu to sem palavras, realmente.
Eu tive que ter muita coragem pra postar esse capítulo, eu não tava conseguindo.
To sem chão, vou deixar que vocês falem por mim nos comentários.

Att,
Magicath.