Correspondências escrita por Blue Butterfly


Capítulo 23
6018, Newton Street. Roxbury. MA




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16.06.2010

Oi Maura...

As coisas estão difíceis por aqui. Você deve ter visto nos noticiários. É claro, eles montam o espetáculo que querem, mas ninguém sabe ou se importa em saber o que aconteceu lá dentro.

Minha mãe disse que eu tive sorte. Engraçado, eu vejo isso de outro jeito. Ter saído de casa naquele final de tarde não tinha sido a melhor escolha. Eu precisava - eu queria - cerveja, e fui lá, na loja de conveniências mais próxima de minha casa. Eu fiz o que todo mundo faz: entrei, consultei o preço de um produto ou outro, agarrei algumas cervejas e chicletes e estava tirando o cartão para pagar pelos itens. Era um dia bonito, ensolarado. Aquele que ninguém presta muita atenção porque é tipicamente bom. Era, até então. E foi quando tudo aconteceu muito rápido.

Ele entrou armado, o revolver apontado para o caixa - para todos nós. Eu nem sabia que Lucy estava por lá. Ela trabalhava no mesmo distrito que o meu, na divisão de Casos Especiais. Como toda policial, ela tentou ser sensata e trazê-lo de volta à razão, persuadi-lo a desistir do roubo. Eu tomei partido e tentei acalmá-lo, mas eu não estava com minha arma. Naquele horário eu já estava fora de serviço, e apenas como cidadã. Quando ele gritava, as pessoas gritavam assustadas. Não havia racionalidade nele, eu notei logo depois. Eram os olhos, eles pareciam olhos de um animal, mas não um animal comum... uma besta. Armadas ou não, policiais ou não... Não havia negociação. Ele queria o dinheiro. Eu já havia entendido. Eu já havia desistido e estava apenas esperando que ele fizesse o serviço e caísse fora dali. Ele seria pego depois, eu tinha certeza. Um homem assaltando uma loja a luz do dia, sem máscara, armado. Tinha gente suficiente ali para reconhecê-lo, fazer um retrato falado. Havia câmeras de segurança. Nós aprendemos na acadêmia, Maura, a analisar a situação como um todo. Quando prosseguir, quando recuar.

Mas Lucy não parecia satisfeita. Ela insistiu novamente, e ele atirou sem aviso. Um tiro certeiro, direto no coração. Eu vi a cena em câmera lenta: ele puxando o gatilho, ela caindo lentamente no chão. O chão se cobrindo de sangue, vermelho gritante, centímetro por centímetro. As pessoas cobrindo a cabeça com os braços e se encolhendo no chão. Ele fugiu levando todo o dinheiro, mas mais do que isso, ele tirou uma vida... E minhas noites de sono.

Eu tentei salvá-la no instante em que ele deixou o lugar. Eu a segurei e pressionei o ferimento, como supostamente eu deveria fazer. Mas o sangue fluiu entre meus dedos, encharcou minha roupa, grudou na minha pele. Ela olhou para mim e pediu para que eu a salvasse. Ela disse que não queria morrer, que ela tinha uma filha pequena que estava esperando que ela a buscasse da casa dos avós. Eu tentei. Eu gostaria que eu soubesse como. Naquele momento eu desejei ser uma médica, porque então eu saberia o que fazer exatamente para salvá-la. Eu rezei e esperei com todas minhas forças para que o socorro chegasse logo, para que ela aguentasse apenas mais alguns minutos, porque então alguém mais capaz do que eu poderia cuidar dela de maneira apropriada. Eu tentei mesmo impedir que todo aquele sangue saísse.

Mas eu falhei. Ela se foi antes mesmo de eu dizer que ficaria tudo bem. Antes de ela me pedir para que eu dissesse para a filha dela que ela a amava. Ela se foi antes de saber que ela realmente estava morrendo, Maura. É engraçado como o tempo pareceu se distorcer naquele momento, porque em um instante era somente eu e ela, e depois, não sei o quanto depois, mas era tarde demais para ela, estavam outras pessoas ao redor, e um paramédico me afastando do corpo. E agora eu continuo sonhando com ela implorando para que eu a salve. Para que eu busque a filha dela na casa da avó - isso me dá arrepios e eu não consigo mais dormir direito. É assustador, é revoltante. Teve uma cerimônia formal, você sabe. Eu estive presente, e não consigo deixar de pensar naquela menina pequena sentada sozinha em uma cadeira branca. Os pés dela nem alcançavam o chão. Eu não tenho certeza se ela sabia o que estava acontecendo ali, mas os avós estavam lá também, e Deus... Foi a cena mais triste que vi na vida.

Eu penso nela o tempo todo. Eu repasso a cena na minha cabeça para encontrar meu erro. Deveria ter uma outra saída, uma que não vi. Eu penso que poderia ter sido eu no lugar de Lucy. Talvez devesse ter sido eu. Aquela menina ainda teria uma mãe, se assim fosse. Tudo o que me restou são os pesadelos, e eles não param. Quando não são em preto e branco, são coloridos apenas de vermelho. Eu gostaria que eles parassem. Eu gostaria de não ouvir mais a voz dela pedindo para ficar. Eu fecho os olhos e o tempo volta para o momento em que ela fecha os olhos, o coração pára. Eu queria mesmo ter salvado ela.

Minha mãe diz que eu sou sortuda, que o alvo poderia ter sido eu. Os jornais dizem que foi uma terrível fatalidade, um ato cruel de violência. Eles não tem idéia. Eles não sabem do que disso sobrou em mim. Eles não sabem do horror que experimentei naquele dia, que venho experimentando desde então.

Eu quero me livrar dessa sensação, dos sonhos. Eu quero voltar a dormir. Eu não sei, mas talvez eu mereça isso, de alguma forma eu me sinto mesmo morta.

Me desculpe por jogar isso tudo em cima de você. Eu não... Não consigo conversar com as pessoas. É difícil. Eu não quero que elas saibam, que me olhem diferente.

Mas eu confio em você.

Jane


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