Ecos escrita por Laís


Capítulo 5
Julia Dream


Notas iniciais do capítulo

Oi gente! Tudo bem por aí? Espero que esteja. Então, desculpa a demora mais uma vez, a verdade é que escrever sobre um relacionamento abusivo é muito trigger warning pra mim, então eu preciso esperar o momento certo. Espero que entendam.
Ah, e eu também fiquei meio (bastante) envolvida com minha original, se alguém quiser ler https://fanfiction.com.br/historia/680202/Paralelos/ momento merchandising aqui ne vergonha, desculpa gente.
Enfim, ao capítulo. Demorou, mas foi feito com carinho (e dor no coração porque pensar na Julia sempre me deixa triste)



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Ficou ali sentada, os olhos fechados, e quase acreditou estar no País das Maravilhas, embora soubesse que bastaria abri-los e tudo se transformaria em insípida realidade...

Lewis Carroll 

Julia estava sentada no chão do corredor há 45 minutos, ainda falando ao telefone com Spencer. A habilidade que eles tinham de conversar sobre diversas coisas, todavia sem chegar a assuntos pessoais tornava a interação tão leve que ela sentia que poderia falar por horas sem se cansar, sendo quem gostaria de ser e não quem de fato era. Estavam a ligação inteira falando sobre filmes favoritos, uma temática que ela poderia fazer durar para sempre, visto que amava a sétima arte. Não via a hora de poder falar sobre livros, ficção científica, programas de TV que ela tinha vergonha em admitir que assistia... Spencer parecia tão animado quanto ela, na verdade, a conversa inteira era um jogo de interrupções, um sempre querendo atropelar o outro para falar mais.

—Olá? – Julia assombrou-se com a repentina aparição de Jessica.

—Ah, oi. Só um instante, Spencer – disse em seguida colocou a ligação em espera – Oi, Jessica.

—Com quem você está falando, hein? – perguntou com um tom malicioso e um sorriso insinuador. – Com o remetente de todas essas coisas que chegaram pra você?

Julia estava tão imersa na conversa interrompida que demorou para sentiu um frio no estômago. Demorou a lembrar.

—Que coisas, Jéssica? – em um mínimo transpassar de segundo, ela havia voltado a ser quem realmente era. Uma pessoa assustada. Uma sobrevivente. Sua voz já não possuía a sutileza de antes, estava carregada de apreensão.

Retomou a chamada com Spencer e disse que precisava desligar, sem nem ao menos ouvir a resposta do outro lado da linha. Adentrou o apartamento e encontrou o lugar coberto por flores.

—Isso aqui é muito caro, Julia. Quem fez isso?

Jessica estava esparramada no sofá, mexendo no celular. Fazia as perguntas sem realmente se importar com as respostas.

—Você estava aqui quando entregaram essas coisas?

—Como assim? Achei que você estivesse. Eu cheguei e já estava aqui. Espera... – aquilo chamara sua atenção – como entraram no apartamento?

Vendo o estado de alerta da companheira, Julia achou melhor contornar a situação.

—Ah, agora que lembrei – mentiu – eu avisei nossos vizinhos da frente. Disse que estava esperando uma encomenda e deixei minha chave com eles. Devem ter recebido em meu nome.

—Pois bem, isso foi um pouco irresponsável até para mim. Já pegou de volta sua chave, certo?

—Claro, claro. Não precisa se preocupar.

—Acho bom mesmo. Bom, eu vou sair agora. Até amanhã – anunciou enquanto pegava a bolsa e se dirigia à porta.

Julia entrou em pânico só de imaginar dormir sozinha naquele lugar. Ele tinha a chave. Ele tinha a chave. Essa frase pairou em sua mente desde o momento em que vira as flores. Como podia ter sido tão burra?

—Jessica, você não vai dormir em casa? Tem certeza?

—Sim, vou para uma festa e depois vou dormir na casa de quem oferecer carona – sorriu genuinamente e jogou um beijo para amiga enquanto saía.

Julia se viu sozinha, em um apartamento pequeno e mal iluminado coberto de rosas. Rosas que eram, na verdade, um aviso. Cada pétala dizia que ela nunca poderia escapar do que realmente era.

Sua atenção foi atraída para um envelope na mesa de centro, era um papel aromatizado e com uma textura diferente. Julia abriu e encontrou a esperada mensagem.

Sinto sua falta. Espero ver você quando chegar em casa. Desculpa ter entrado quando você não estava, queria que fosse surpresa. J.

Sentiu o ar ficar denso ao seu redor e tudo lhe pareceu tão distante. Sentiu-se perdida, sozinha. Estava acostumada com a sensação de buscar mentalmente os nomes de todas as pessoas que conhecia e perguntar a si mesma se podia ou queria pedir ajuda. Os nomes eram poucos e a resposta era sempre não. Entretanto...

Impulsivamente, pegou o celular. 

—Alô? Espero não ter te acordado.

—Não, eu não estava dormindo – ele respondeu do outro lado da linha.

—Olha, isso vai parecer muito estranho. Muito estranho mesmo. Mas... Será que eu podia dormir no seu sofá?

~x~

Julia estava cansada. Estava saindo da escola em que lecionava e tudo que ocupava sua mente era a própria cama. Não via a hora de se enfiar embaixo de várias cobertas e fingir que não existia. Meu deus, e hoje é só segunda-feira... 

Estava olhando para baixo porque prendia o cabelo longo em um rabo de cavalo e quando voltou os olhos para cima, viu James.

Estava lindo, era quase de tirar o fôlego. Quando ele viu a expressão de surpresa em seu rosto, gargalhou. Em seus braços, um buquê de rosas.

—James... – falou enquanto se aproximava.

—Julia... Isso é pra você – anunciou, entregando as flores.

—Mas...

—Por favor, abra o cartão.

Julia franziu o cenho e abriu o pequeno cartão preso entre as hastes.

Gostaria de sair comigo?

Ela gargalhou.

—Você poderia só ter mandado uma mensagem.

—Não, isso é impessoal demais. Gosto de bilhetes.

~x~

Julia pegou o pouco dinheiro que tinha para pagar o táxi e encontrou Spencer esperando na frente do prédio em que morava.

—Eu sei que aquela sensação que você teve sobre eu estar te perseguindo deve estar voltando... – começou a falar. Ventava muito e o céu negro indicava que iria chover. – Mas eu realmente só preciso de um lugar pra dormir e juro que não sou um serial killer.

Spencer riu.

—Eu saberia se você fosse.

—Ahn, eu minto muito bem, então acho que você não saberia nem se eu deixasse todas as dicas estampadas na sua cara – provocou.

—Isso não ajuda muito o seu caso, Julia.

Para Julia, o nome dela soava diferente na voz dele. Ela se sentiu um pouco estúpida mediante aquele pensamento.

—Tudo bem, vou parar. Apesar de ser verdade. Me desculpa, Spencer, eu sei que eu não poderia pedir uma coisa dessa, é uma coisa primária do curso de vergonha na cara, eu sei. Eu só... – deixou escapar um suspiro – eu só realmente não tinha nenhum lugar pra ir. Minha colega de quarto...

Ia começar a inventar uma mentira quando viu que ele já estava caminhando em direção à entrada. 

—Você vem ou não?

O vento brincava com o cabelo rebelde de Spencer Reid, fazendo com que parte dele caísse em sua testa. E, naquele momento, enquanto ele tinha um pé apoiado na soleira da porta e uma mão na grade, com o cabelo dançando ao seu redor, Julia achou que nunca tinha visto alguém tão naturalmente bonito. Uma beleza quase preguiçosa. Aquele pensamento acionou um alerta de pânico em seu âmago. De repente, aquilo que estava fazendo perdeu todo o sentido lógico.

—Spencer... Quer saber, talvez eu... Eu acho que... Eu tenho que ir – balbuciou, andando de costas, se afastando cada vez mais da porta aberta que lhe aguardava. Não percebeu que já estava no meio da rua e foi surpreendida com a luz forte dos faróis de um carro que se aproximava.

Felizmente, o motorista não vinha em uma velocidade acelerada e teve tempo de frear, contudo isso não impediu que ela sofresse um leve impacto graças a leve estocada que a freada brusca causa no veículo, suas pernas despreparadas para a colisão falharam e ela caiu no chão.

O motorista gritou algumas reclamações nada lisonjeiras e Spencer correu para ajudá-la a levantar-se.

—Você está bem?

—Claro. Não foi nada. De verdade.

—Você ainda quer subir? Porque não acho que seja muito seguro sair por aí atravessando ruas de costas.

Julia aquiesceu e o seguiu até o apartamento, pensando em seu ultimato enquanto subia pelas escadas. Tinha quatorze dias e aquele era o quarto. Dez dias para voltar para casa. Não queria, entretanto não conseguia ver um caminho bifurcado em sua frente, a estrada era uma via de mão única e ela não enxergava como fugir da rota. 

A primeira visão do apartamento de Spencer a fez esquecer temporariamente os tormentos de suas conjecturas. Era um lugar... Aconchegante. Tudo parecia diferente, apesar de ser um lugar normal. Pensou na marca que deixamos em nossas coisas: cheiros, manchas, aprimoramentos, uma ordem específica de organização. Um objeto nunca é só um objeto, sempre há algo a mais, algo pessoal. Quando era adolescente, adorava entrar pela primeira vez no quarto das amigas, sentia-se mais próxima ao ver tantos fragmentos da alma de uma pessoa daquela forma.

Spencer parecia um pouco constrangido por ela ter congelado na soleira da porta e quando começou a se desculpar pelo lugar, ela correu para a enorme estante que preenchia sua sala. Passando levemente o dedo pelas lombadas dos diversos volumes. Aquela sensação era incrível.

—Seu apartamento é incrível! Eu provavelmente nunca sairia de casa se morasse aqui.

As desculpas de Spencer ficaram presas em sua língua e ele sorriu, agradecendo.

—Você ralou seu joelho na queda – apontou.

Ela nem tinha percebido. O machucado sangrava um pouco, arderia no banho e formaria casquinhas, mas não era grave, nem se comparava com as marcas das suas quedas na infância. Sendo honesta consigo mesma, gostou da sensação, a dor formigante lhe mantinha real e consciente do que se passava naquele momento.

Aquela sua nova vida era como uma bolha de sabão. Julia podia vê-la e sabia que, com um mero e insignificante toque, ela iria estourar. Isso era inevitável, porém queria que durasse o máximo de tempo possível.

—Me mostre onde é o banheiro e eu mesma cuido disso, não é nada sério, acho que tenho 80% de chances de sobreviver.

—Pode ir naquela porta e eu estarei aqui rezando para que o procedimento seja um sucesso.

—Muito obrigada – fez uma falsa e afetada mesura e foi até o banheiro onde lavou seu joelho e se deparou com um estranho sorriso no espelho. Aquela sensação no seu estômago era estranha. Odiava a impulsividade dos seus sentimentos, que evoluíam curiosamente rápido da atenção para a estima, da estima para o amor. Sentia que poderia se apaixonar uma vez por dia se permitisse a si própria admirar a beleza do mundo, porém sua primeira paixão lhe roubara essa capacidade, tornou-se seu algoz e o gosto amargo em sua boca a repreendia pela tolice de se interessar pelas pessoas. Mas Julia amava pessoas. Amava cada particularidade que tornava um indivíduo único. Era uma pena ter conhecido tão poucas... Se fosse livre, conheceria o mundo e se apaixonaria sempre.

Se fosse...

Mas sentia-se livre naquele momento e não via a hora de mexer em todas as coisas de Spencer Reid e descobrir o que o tornava único.

2016

—O que aconteceu foi terrível, nós estamos completamente abalados. Melinda era uma amiga muito próxima... – Apesar de James estar do seu lado, segurando-a pela cintura, sua voz parecia abafada, longínqua. Etérea. Ou talvez, ela estivesse daquele jeito. Assistia sua vida em terceira pessoa, uma narradora observadora que não tinha o poder de mudar nada.

O mero pensamento de que nunca mais veria Melinda em sua vida apertava seu peito. Nunca mais ouviria aquela risada estrondosa ou sentiria seu abraço protetor.

Estava quente e seu vestido de mangas cumpridas só piorava isso, porém ela não podia mais usar roupas sem manga. Mostrar os braços denunciaria suas marcas. Porém, ela pensou, se vissem os hematomas, mudaria alguma coisa? Ignorariam, mas se perguntassem, ela mentiria. Aqueles que não acreditassem na mentira, comentariam algo com parentes, mas depois esqueceriam. Ela era invisível.

O enterro de Melinda acabou se tornando uma ocasião social, pessoas importantes da cidade estavam ali porque ela trabalhava para James, porém ninguém ali realmente conheceu a amiga de Julia.

—Agora acho que já vamos para casa. Minha esposa está muito abalada e cansada, ela era amiga próxima... Vocês entendem...

James se despediu de todos, sempre com Julia ao seu lado, um acessório brilhante, mas nunca um ser humano. Voltar para a sua grande casa, com suas grandes portas e seus grandes quartos vazios era assustador. Os empregados não estariam lá, seria só ela e James. Pensar nisso lhe deixou tonta. A mescla de pavor, sol quente, mormaço e mangas compridas lhe deixou tonta e ela sentiu o mundo ao seu redor estremecer. Quando ameaçou cair, James a segurou com força e girou seu corpo, mudando seu ângulo e fazendo com que ela visse, pela primeira vez, uma silhueta na sombra de uma árvore.

Spencer.

Mas aquilo fora logo antes de perder os sentidos e não sabia dizer se era real ou somente uma ilusão.

2014

—Lembra quando você mentiu para mim sobre ser professor?

—Claro que eu lembro. Foi há quatro meses. E eu tenho uma memória...

—Fotográfica – Julia completou, forçando uma voz de desprezo.

—Eidética – ele corrigiu.

Ficaram em silêncio depois disso. Estavam deitados – apertados, mas confortáveis – no sofá de Spencer Reid. Desde a primeira vez que Julia fora naquele apartamento, não voltara mais para casa. Pedira para Jessica encontrá-la na cafeteria e entregar uma pequena mala com suas coisas e, subitamente, não moravam mais juntas. Parecia impulsivo e era mesmo. Não queria pensar ou ficar encarando o precipício muito tempo antes de cair porque não sabia quanto tempo lhe restava naquela bolha de sabão. Ela sabia agora toda a verdade sobre Spencer, sabia de Maeve – ele contara a história quando ainda eram somente amigos. Todavia, ela não lhe dissera a verdade sobre seus fantasmas. Sabia que tinha sido egoísta com a mãe por não ter voltado para casa. Mas, só daquela vez, iria pensar seu bem-estar e em ninguém mais.

Lembrar-se disso fez com que ela franzisse o cenho instintivamente e sacudisse de leve a cabeça, como se quisesse empurrar o pensamento para fora de sua mente. Abraçou Spencer mais forte e ele beijou seu cabelo. O chão na frente do sofá estava cheio de embalagens vazias de comidas que faziam terrivelmente mal para a saúde. O filme tinha acabado e eles estavam com preguiça de escolher outro. Tinham começado um processo demorado de seleção quando o celular de Spencer interrompeu a discussão.

—Eu preciso ir.

—Ainda bem, assim eu posso assistir The Princess Bride de novo sem ninguém ficar citando curiosidades sobre o filme.

—Você adora essas coisas, sempre finge que já sabia antes mesmo eu vendo nitidamente no seu rosto que é mentira.

Julia revirou os olhos.

—Você não tem um avião pra pegar agora? – fez um meneio com as mãos como se o expulsasse.

—E você precisa terminar a sua carga de páginas hoje, esqueceu? Precisa mandar pro seu agente antes de meia noite.

Julia afundou o rosto no sofá e grunhiu. Spencer voltou para beijá-la e saiu, mas não sem antes confirmar três vezes que ligaria para avisar que estava tudo bem.


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Notas finais do capítulo

Eu fiquei tão feliz que o número de leitores aumentou (toda bobinha eu fiquei), se você ler isso e quiser deixar sua opinião, vou ficar bem feliz ♥
Milhões de beijinhos de luz!!