Dia Especial escrita por GG


Capítulo 1
Capítulo único




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Dia especial

"Se alguém já lhe deu a mão
E não pediu mais nada em troca
Pense bem, pois é um dia especial
Eu sei que não é sempre que a gente encontra
Alguém que faça bem e nos leve deste temporal."

"Senhor, eu sinto muito mas nós não podemos fazer mais nada, fizemos o possível. O falecimento da senhora Isabel é inevitável.", aquela afirmação doera mais do que qualquer coisa na vida infeliz que levara. Ressoava em sua mente várias vezes, como um martelo lhe martirizando eternamente, e ele bem sabia que nunca iria se livrar daquelas palavras.

Como ele iria retornar ao quarto da mãe, pegar sua mão já gelada por conta do ar condicionado do quarto e pelas medicações, e se despedir? Ele era covarde demais para fazer aquilo, ela podia estar desacordada na maior parte do tempo por causa das medicações mas era como se ainda pudesse escutá-lo, sentir sua presença ao seu lado.

Parecia que tudo estava girando, não sabia mais distinguir aqueles jalecos brancos dos médicos das paredes sufocantes do hospital. Tudo que ele conseguia pensar era em como ele odiava profundamente o seu pai, ele era o culpado de tudo aquilo.

Não ele. Ele não era o culpado. Ele era o culpado. Tudo era sua culpa.

Se tivesse denunciado aquele homem a sua mãe não estaria daquela maneira agora, ele deveria ter discado aqueles números tão fáceis, anotara diversas vezes na agenda do colégio em um canto qualquer, gravara aqueles simples números antes mesmo de gravar o número do telefone fixo de casa, a mãe sempre lhe pedia para repeti-los e usar se ela pedisse.

Suas pernas pareciam tomar sua própria vontade, em um instante ele estava prestes a desabar na recepção do hospital e no outro ele estava subindo aqueles andares todos. Eram vinte andares, tantos lances de escada e cansaço algum, nunca antes sentira tanta energia dentro de si, mas era tanta que ela parecia prestes a explodir, transbordar de si.

A cobertura do hospital era um grande e bonito jardim, era irônico, sua mãe adoraria conhecer aquele lugar. Ele caminhou apressadamente por entre as plantas, tentando se livrar do turbilhão de lembranças que teimava em lhe invadir, ele não queria chorar, não suportava mais sentir, ele só queria que parasse.

Era tão difícil assim?

Acomodou-se na beirada, se avançasse mais um pouco ele desabaria pelos vinte andares e seu corpo se chocaria com o asfalto duro daquelas ruas cinzentas e sem vida. Puxou um maço de cigarro do bolso e o isqueiro, sua mãe sempre odiara aquele hábito, dizia que quando ele fumava parecia com o pai, mas não fazia por mal, mesmo que Leo odiasse o pai mais do que tudo, e assemelhar-se a ele era ridículo.

O vento chicoteava-lhe o rosto bagunçando os fios negros do seu cabelo despenteado, daquela maneira iria ficar complicado acender um de seus cigarros. Resmungou e suspirou. O que estava pensando? Ele deveria apenas levantar-se e se atirar em queda livre, a morte era um convite tão tentador e a vida era tão complexa.... Ele seria covarde daquela maneira? Sim, ele sempre fora um grande covarde.

Guardou os cigarros e o isqueiro. Pôs-se de pé e abriu os braços, os olhos fechados da mesma maneira que fazia quando era apenas um menininho e ouvia o barulho do pai chegando pela madrugada e preferia fingir estar dormindo. Quantas vezes escutara os gritos da mãe implorando para que o marido parasse? Incontáveis, e não fizera absolutamente nada, só se encolhera na cama.

"Vá logo, se jogue...", ele murmurou para si mesmo.

Lembrou da primeira vez que chegou do colégio e encontrou a mãe caída no chão de tanto apanhar, o pai estava na sala de estar bebendo cervejas e assistindo um programa de esportes como se nada tivesse acontecido ali. Lembrava-se de como ele havia chorado e gritado, havia discado os números que aprendera semanas antes, mas a polícia foi e nada fez, era como se rissem da cara vermelha e inchada da sua mãe, não adiantaram de nada.

E o que ele fez para ajudá-la de verdade? Ele podia ter feito mais, ter sido corajoso o suficiente para...

"Garoto.", uma voz chamou fazendo-o virar automaticamente.

Estava sendo observado.

Era uma figura magra que trajava a camisola do hospital e usava um lenço cor-de-rosa na cabeça, uma menina perdida. A garota se aproximou dele com passos desesperados, ela entendera aquela cena tão rapidamente que sabia que não podia se dar ao luxo de demorar a chegar até ele, não podia deixar que seu cansaço e lerdeza a atrasassem.

"O que está fazendo aqui? Não deveria estar aqui."

"Me dê a mão.", ela pediu enquanto tentava não desequilibrar-se com tamanha ventania, a mão estendida como um convite, e Leo reconheceu que era tão tentador quanto a morte.

"O amor é maior que tudo
Do que todos, até a dor se vai
Quando o olhar é natural."

"Não, garota. Vá embora.", ele disse decidido.

"Por favor, só me dê um minuto.", pedia a menina ansiosamente, aquele brilho nos seus olhos escuros o lembravam tanto os da sua mãe que ele só queria antecipar sua jogada daquele lugar, seus pés escorregaram da base das bordas e a menina o segurou firmemente, dava pra ver o esforço que fazia.

"Me solta.", ele pediu grosseiramente.

"Eu não posso.", ela disse apertando com firmeza a mão de Leo, o garoto sentia que a menina usava todas as forças que ainda lhe restavam para fazer aquilo e ele não conseguia simplesmente empurrá-la para que o soltasse, não podia.

"Só me solta, garota.", ele disse ferozmente.

"Se você cair vai me levar junto, eu não vou aguentar por muito tempo te segurar...", ela disse decida com sua decisão.

Leo deu-se por vencido e desistiu daquela ideia por agora, iria enxotar a garota e logo voltaria ao que tanto queria fazer. Sentou na borda e encarou a desconhecida, ela sorriu e nem esperou por uma resposta, simplesmente se lançou em um abraço apertado, como se fossem velhos amigos, amigos bem próximos.

"Obrigada, menino, obrigada por ter segurado minha mão.", ela disse enquanto sentava ao seu lado, o sorriso era tão jovial e inocente quanto o de mãe quando ele era apenas um menininho assustado.

"Você me atrapalhou.", ele disse irritado.

"Essa era a minha intenção, afinal.", disse a menina enquanto fitava-a de maneira ansiosa, "Aliás, eu salvei sua vida e você me deve essa.", ela disse com aquele tom de voz risonho, mesmo com a quimioterapia a menina nunca perdera aquele brilho no olhar e o sorriso brincalhão de sempre.

"Agradeceria se você não tivesse feito isso.", disse Leo ainda bastante estressado com a situação. Aquela garota não iria embora nunca?

"Acredite, você não iria querer fazer aquilo.", ela disse e como o garoto manteve-se em silêncio ela encarou aquilo como um encorajamento para continuar a falar, "Eu já estive na mesma situação que você. Foi quando meu tratamento começou, eu tinha 12 anos e não queria mais aguentar tanta dor, eu.... eu não conseguia mais."

"Quantos anos você tem agora?", indagou Leo.

"17.", ela disse enquanto um verdadeiro filme passava em sua mente, era tudo tão vívido que podia ter acontecido ontem mesmo.

"Por que você não…?", Leo não conseguia terminar a pergunta, sentia-se muito inconveniente fazendo aquele tipo de perguntas a uma completa desconhecida.

"Eu estava quase lá.", ela disse quietamente, "Eu estava no mesmo lugar que você, bem ali, inclinada e pronta pra cair. Mas eu pensei em como eu seria....covarde por fazer aquilo, meus pais iriam chorar, minha irmã ia chorar, minha família.... e eu só seria mais alguém que desistiu, sabe? Eu não queria morrer daquela forma, não queria morrer triste, eu só quero morrer feliz."

Fez-se silêncio, apenas o vento colidindo com o edifício que parecia tão morto quanto Leo, ele se sentia tentado a pegar a mão da menina, ela parecia carregar tanto dentro de si e demonstrar tão pouco. Mas algumas vezes o silêncio era o melhor consolo que se podia dar.

"Meu pai sempre bateu na minha mãe e em mim, ele chegava em casa bêbado, ou até sóbrio, e sempre fazia a mesma coisa, semana após semana ele aparecia só pra isso. Eu....eu deveria ter feito alguma coisa. Minha mãe não estaria assim se eu tivesse feito alguma coisa."

A menina estendeu a mão e Leo a segurou.

"Sonhei que as pessoas eram boas
Em um mundo de amor
E acordei nesse mundo marginal."

"Eu sinto muito por tudo isso.", disse ela enquanto acariciava cuidadosamente a mão dele. "Ei, ainda não dizemos nossos nomes! Não é estranho? Bem, você primeiro."

"Leonardo.", ele disse.

"Leo.", a menina disse sorrindo carinhosamente, "Meu nome é Valentina."

"A sua mãe...ela ainda está aqui?", sussurrou Valentina que não aguentava aquele som dos ventos castigando o lugar, eram como uma marcha fúnebre, as mãos dos dois ainda estavam unidas em um carinhoso aperto.

"Está. Eu vim aqui depois que um médico me disse que eles não poderiam fazer mais nada.", disse Leo.

"Meus pais também já escutaram isso, e tudo que eu queria era que eles estivessem perto de mim.", disse Valentina sugestivamente, "Não acha que seria melhor fazê-la partir feliz? Ela iria gostar de você perto dela, não iria?"

"Mas eu não consigo, eu não vou aguentar ficar ali e...", disse Leo parecendo prestes a desabar em lágrimas.

"Seja forte, por ela.", disse Valentina firmemente.

Leo abaixou a cabeça e fechou os olhos. A garota estava completamente certa. Que tipo de pessoa abandona a mãe em um momento daqueles? Ela iria gostar da presença do filho nos seus últimos momentos de vida, ele também gostaria de tê-la por perto mais uma vez. Ele precisava ir até ela.

"Eu vou.", disse ele segurando as lágrimas.

"Eu vou com você.", prometeu Valentina com um sorriso triste porém encorajador.

"Mas te vejo e sinto
O brilho desse olhar que me acalma
Me traz força pra encarar tudo
Mas te vejo e sinto
O brilho desse olhar que me acalma
Me traz força pra encarar tudo."

Os vinte andares pareciam complicados demais para Valentina, por isso Leo optou pelo elevador, mesmo que ele fosse terrivelmente rápido. Estava encostado no canto do elevador com os olhos fechados, era tudo tão difícil. Ainda não imaginava como iria retornar para casa e não ver sua mãe ali, não gostava de imaginar como iria acordar sem o cheiro das panquecas que ela fazia todos os dias para agradá-lo.

Quando os dois chegaram até o quarto 342 o coração de Leo acelerou. Era como se tudo estivesse acontecendo mais uma vez. Aquela noite que ele só gostaria de apagar da sua memória. O pai havia sumido fazia uns dois meses, ele nunca mais aparecera e ele e a mãe achavam que ele não voltaria mais mesmo, não precisariam nunca mais vê-lo. Mas estavam completamente enganados.

Ele apareceu novamente. Leo estava em uma festa de aniversário e nem estava em casa. Isabel estava sozinha em casa, não costumava sair já que preferia passar as noites assistindo filmes enquanto esperava o filho retornar para casa, sempre ficava aflita pensando no que poderia lhe acontecer. Mas a porta fora escancarada e ela já sabia o que significava, fora xingada e agredida brutalmente, durante quase uma hora sofrera nas mãos daquele homem, ligara para a polícia tempo depois.

Mas Leo chegara antes da viatura e da ambulância, encontrara a mãe caída no chão da sala, o tapete manchado por seu sangue, seu vestido rasgado e seu olhar perdido. Ela ainda conseguiu sorrir quando encontrou o rosto do filho. Leo não conseguia entender, tudo sempre dava errado quando eles menos esperavam. Só queria poder encontrar o homem que fizera aquilo com a mãe, fazer milhares de vezes pior com ele mas ele sempre desaparecia e não parecia deixar rastros.

E agora ali estava, com a mão pendendo na maçaneta do quarto. Respirou fundo e a abriu.

Sua mãe estava deitada na maca, exatamente do jeito que a deixara da última vez que saiu do quarto. Havia flores no criado-mudo e uma carta que ele escrevera semanas atrás. Valentina o seguia de perto mas ao mesmo tempo mantinha a distância perfeita para não atrapalhar aquele momento.

"Eu sabia que você...voltaria.", disse a voz arrastada da mulher, um sorriso pequeno abrindo-se em seu rosto cheio de machucados que nunca iriam lhe abandonar. Leo sentiu-se mal por ter cogitado não retornar ali, ele pensara somente em sua dor e esquecera o que realmente importava, a dor dela.

"Mãe, eu te amo tanto.", ele disse e deixou pela primeira vez na vida que as lágrimas deslizassem pelo seu rosto, ele não queria chorar na frente da mãe mas era inevitável. Ele abaixou-se e depositou um beijo na testa dela, que manteve seu pequeno e quieto sorriso.

"Eu também te amo muito, querido.", ela disse, "E fico feliz que tenha vindo até aqui. Eu sempre soube que você estaria comigo até o fim."

Aquelas palavras doíam mais do que qualquer surra que havia levado do pai, doíam mais do que uma faca sendo cravada em seu coração, as palavras eram tão fortes...

"Eu prometo ficar, mãe.", ele disse tomando a mão fria dela, Valentina estava logo atrás dele, acariciando suas costas tentando encorajá-lo, o aparelho dos batimentos cardíacos de Isabel ia ficando mais desesperador, era quase como se estivesse adormecendo.

E quando o aparelho começou com o som que indicava a ausência de batimentos, Leo apenas segurou a mão da mãe e a de Valentina.

Tudo que ele queria era nunca mais soltar nenhuma das duas.


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