...Qual? escrita por Arisusagi


Capítulo 3
Não é um sonho.


Notas iniciais do capítulo

Resolvi postar o capítulo hoje porque acho que vai ficar complicado pra mim postar amanhã.
Eu gostei bastante de escrever esse capítulo :3 Acho que vocês também vão gostar de lê-lo (Especialmente a Kaito, auehauhe).
Como já disse, não confio muito no corretor do google docs, então se acharem algum erro, me avisem!



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Quando a visão de Kaito voltou ao normal, ele estava em um lugar diferente.

Ele estava deitado no que parecia ser um colchão feito a mão, que era um pouco desconfortável. Julgando pelos seus arredores, ele estava dentro de uma cabana de madeira terrivelmente bagunçada.

Havia duas mesas bem grandes ali, uma ao lado da cama onde ele estava (aquilo podia ser chamado de cama?), e outra encostada na parede a sua direita. Ambas estavam cobertas de todo tipo de coisa, como frutas, panelas, frascos de vidro e muitas folhas secas de vários tipos de plantas.

Aquele lugar não lhe parecia estranho, mas ele tinha a sensação de que aquilo não se encaixava com a sua vida de policial. Como ele foi parar ali em tão pouco tempo?

Até mesmo suas roupas mudaram. A farda fora substituída por uma camiseta de mangas compridas que, provavelmente, era feita de linho, e calças de algodão cru.

Kaito se sentou, e viu algo se mexendo debaixo de uma das mesas. Um gato preto saiu debaixo do móvel e parou ao lado da cama, miando como se dissesse “bom dia”. Kaito o encarou, percebendo que sua cauda era mais curta do que deveria ser.

―Sakamoto?― Ele disse sem pensar, e o gato miou em resposta.

E aí uma enxurrada de memórias veio em sua mente.

Ele se lembrava da floresta, e de uma horta, e de ouvir o canto dos pássaros. Suas mãos estavam sujas de terra úmida e ele sentia cheiro de alecrim. O gato estava lá, mas ainda era um filhote magrinho que miava bastante. Tinha uma pessoa com ele, um homem de cabelos roxos muito longos, que segurava o gatinho com cuidado. O bichinho estava envolto em trapos sujos de sangue, e o homem mexia em seu rabo, xingando baixinho toda vez que o gato chiava de dor.

Kaito ouviu passos e vozes, e uma pedra passou voando em frente a seus olhos. Eram crianças, umas nove ou dez, que saíram do meio das árvores, com pedras e pedaços de pau nas mãos. Um arrepio correu por sua espinha.

Foram elas.

Elas que cortaram fora parte do rabo daquele gato.

O homem suspirou e entregou o gatinho para Kaito, colocando-se de pé e indo na direção das crianças. O filhote miava alto, e Kaito afagava sua cabeça de leve com o indicador, como se aquilo fosse diminuir a dor horrível que ele provavelmente estava sentindo.

As crianças gritavam e arremessavam pedras no homem, que andava calado com o rosto contorcido em uma expressão de raiva.

Ele parou e gritou algo, e as crianças correram para o meio da floresta, chorando e gritando de medo.

Kamui Gakupo.

Esse era o nome daquele homem.

E pensar nele fazia uma sensação estranha correr pelo seu estômago, quase a mesma coisa que ele se lembrava de sentir no seu casamento com Miku.

Ele se lembrou de uma vila pequena, com casinhas tortas, chão de terra batida e carroças passando para lá e para cá, e de morar sozinho na rua desde que era muito pequeno.

Lembrava-se de brincar com Gakupo, quando eles tinham seus seis ou sete anos, e dos olhares de desprezo que outras crianças e até mesmo alguns adultos lançavam em sua direção.

Lembrou-se especialmente do dia em que aquele garoto segurou sua mão e o chamou para morar com ele e sua mãe.

Lembrou-se da mãe de Gakupo, uma senhora de cabelos roxos desgrenhados que parecia uma bruxa, e que fazia o melhor ensopado de carne que Kaito já comera na vida.

E aí ele se lembrou de um beijo.

Ele era moleque, não devia ter mais do que catorze anos, e Gakupo também. E eles seguravam as mãos, sentados na beira de um rio, a água gelada correndo pelos seus pés, e os lábios quentes e rachados de Gakupo contra os seus.

E aquele não era o único beijo de que ele se lembrava. Havia outros, vários outros. Tímidos, alegres, tristes, e aqueles que Gakupo lhe dava quando queria pedir desculpas, mas não sabia exatamente quais palavras usar.

E eles estavam juntos há tanto tempo, que Kaito podia ver o rosto de Gakupo perder o formato arredondado e infantil em suas memórias.

Se ele se lembrava de tudo aquilo... aquele homem era seu namorado?!

Mas e a Miku? Eles não eram casados?

De fato, aquele lugar não se encaixava nem um pouco com sua vida de policial.

Um chiado alto chamou sua atenção, e Kaito viu que Sakamoto encarava algo com os pelos das costas completamente arrepiados.

―Agora você acredita em mim, Kaito?―Ele tremeu ao ouvir aquela voz horrivelmente familiar.

A Criatura estava ali, parada ao pé da cama, com aquele mesmo sorriso macabro estampado no rosto.

Sakamoto chiou mais uma vez e pulou pela janela, deixando Kaito sozinho ali com o Ser.

―Eu te disse que não era um sonho― Ele inclinou a cabeça para o lado, emitindo aquele estralo nojento.―, mas parece que você só acredita se ver, não é?

―Mas como...?― Foi a única das inúmeras perguntas que rodavam em sua cabeça que ele conseguiu fazer.

―Existem mais coisas nesse universo do que você imagina.― O Ser disse e riu baixinho.― Divirta-se.

A porta da cabana se abriu de repente, e Gakupo entrou segurando uma cesta enorme cheia de frutas, legumes e outras coisas.

Ele vestia uma camisa e calça de cores escuras, cobertas por uma capa preta que ia até seus joelhos, e seus cabelos roxos estavam presos em um rabo de cavalo no alto da cabeça.

―Bom dia!― Ele disse, colocando a cesta sobre a mesa encostada na parede e derrubando vários objetos que estavam ali em cima.

―Bom dia… ―Kaito respondeu e olhou discretamente para o lugar onde a Criatura estava, percebendo que ela havia desaparecido.

Então tudo o que o Ser lhe dissera naquele “sonho” estranho era verdade?

Parecia que sim.

―Já reguei a horta, não precisa se preocupar― Gakupo começou a tirar algumas maçãs da cesta.―, as lagartas estão comendo nosso tomateiro de novo.

Kaito suspirou. Eles dependiam daquela horta para se alimentar e conseguir dinheiro para comprar outras coisas, então não era bom que ela fosse infestada por pragas.

(Como ele sabia daquilo? Até alguns minutos atrás ele era um mero policial sem nenhuma noção de agricultura).

Gakupo continuou falando sobre os tomates, e Kaito se levantou, pegou um copo que estava sobre a mesa e a encheu com a água de uma jarra de cerâmica.

―Já comeu alguma coisa?

―Não―Respondeu, tomando um gole de água.―, acabei de acordar.

―Melhor comer, você está meio pálido.―Gakupo se aproximou e tocou a bochecha dele com as pontas dos dedos.― Está se sentindo bem?

As palavras de Kaito se perderam naqueles olhos azuis cinzentos que o fitavam apreensivamente.

Ele se lembrava de ter olhado no fundo daqueles olhos inúmeras vezes, mas ele não conseguia desviar o olhar. Era quase hipnótico.

Como olhos tão frios e misteriosos traziam tamanha sensação de carinho e segurança? Não era a primeira vez que essa pergunta se passava na cabeça de Kaito, pelo que ele se lembrava.

Uma risada o acordou de seus devaneios e, antes que se desse conta, os lábios de Gakupo tocaram os dele.

Kaito correspondeu o beijo, apesar de se sentir um pouco estranho. Ele não sentiu repulsa, nem nada do tipo, na verdade, a sensação era boa. Muito boa.

Mas ele sentia que estava fazendo algo errado.

Ele pensou em Miku e no que a Criatura disse.

“Você viverá muitas vidas em lugares diferentes, com pessoas diferentes. Mas… Só uma delas é real”

Se apenas uma era real, a outra era um sonho? Uma alucinação?

Talvez todas as lembranças que ele tinha de Miku e daquela outra vida não passassem de ilusões criadas pela Criatura, ou talvez as de Gakupo fossem todas falsas.

―Sua cabeça está em outro lugar, não é?― Gakupo riu, e a mão que estava na bochecha de Kaito deslizou suavemente pelo seu pescoço e parou em seu ombro.― Vou preparar algo para comer, o que acha de ovos cozidos?

―Pode ser.

Gakupo o encarou por um instante e se virou, indo até uma das mesas. Ele pegou um pequeno caldeirão e alguns ovos, e foi para fora.

Kaito levou o copo aos lábios e encheu a boca de água, sem engolir. Ele ficou ali, imaginando como ele sentia sua boca cheia de água se aquilo tudo (possivelmente) não era real.

A Criatura deveria estar realmente entediada para fazê-lo passar por tudo isso.

Sakamoto entrou pela janela com os pelos das costas eriçados mais uma vez. Kaito ouviu gritos, e correu para fora imediatamente.

Aquelas crianças estavam ali novamente, com pedras nas mãos, paradas perto das árvores.

―Bruxo!― Gritou um menino de cabelos castanhos com o rosto cheio de sardas, que parecia ser o mais velho dali.―Você vai queimar no fogo do inferno!

Gakupo mexia em uma pilha de lenha próxima à horta, e parecia não se importar com o que estava acontecendo.

―Vá embora daqui!― uma menina loira que não tinha um dos dentes da frente disse.― Você está amaldiçoando a vila!

Ele pegou três tocos e os colocou no meio de um círculo de pedras. Kaito continuou parado na frente da cabana, sem saber o que fazer.

As crianças estavam a menos de cinco metros dali, e não parecia que elas iam se aproximar. Mas seriam ruim se elas resolvessem atirar as pedras que tinham em mãos.

―Você!―A garota apontou para Kaito.―Ele te enfeitiçou!

Gakupo começou a rir, e algumas crianças deram um passo para trás. Ele enfiou a mão na bolsa de couro que estava presa em seu cinto e tirou um frasquinho de vidro.

―Isso mesmo! Homens não beijam outros homens! ― O menino berrou. ― Esse pederasta te enfeitiçou!

―Garoto.― Gakupo disse, e as crianças estremeceram com sua voz grave.― Você sabe o que significa pederasta?

O menino olhou para os lados, como se procurasse alguém para ajudá-lo, mas todo os outros balançaram a cabeça negativamente.

―Não sei― O garoto disse com a voz trêmula.―, mas é algo ruim!

Gakupo puxou a rolha que tampava o vidro, tirou uma pedrinha branca lá de dentro e a jogou no meio da lenha, dando um passo para trás.

―Eu sugiro que você não use uma palavra sem saber seu significado―Ele pegou o caldeirão, que estava no chão, e molhou sua mão na água que havia ali dentro―, mas acho que você não liga para a opinião de um “bruxo”, não é mesmo?

Ele pontuou sua pergunta chacoalhando a mão, jogando alguns pingos sobre a lenha.

Kaito soltou uma risada baixa. Ele já sabia o que estava prestes a acontecer.

Primeiro veio um estouro, e algumas crianças caíram para trás com o susto. Depois, uma pequena chama se acendeu no meio da lenha.

Os garotos mais novos correram para dentro da floresta, e os mais velhos atiraram as pedras que tinham em mãos na direção dos dois adultos, berrando a plenos pulmões.

Mas o que deixou Kaito assustado foi o vulto negro que ele viu entre as árvores.

Nesse instante, a visão de Kaito começou a se embaçar. Ele piscou várias vezes e olhou para os lados, mas não dava para ver nada além de borrões verdes. Ele ouviu o baque de um pedregulho batendo contra a terra, e outro na parede de madeira da cabana.

Kaito perdeu o equilíbrio e caiu no chão, sentindo seu corpo ficar cada vez mais leve. Ele tinha certeza de que não fora acertado, então por que aquilo estava acontecendo?

Gakupo gritou seu nome, e tudo começou a girar.

E então, ele fechou os olhos.


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Notas finais do capítulo

Vocês sabem o que significa pederasta?
Algumas curiosidades legais sobre esse capítulo:
Pesquisei sobre a história dos colchões para escrevê-lo, e sobre utensílios de cozinha na Idade Média.
Digamos que essa vida meio que se passa em uma coisa parecida com a Idade Média Européia (Não exatamente nessa época/lugar porque, primeiro, eles têm nomes japoneses, e também porque vou mudar algumas coisinhas.)
A pedrinha que o Gakupo joga na lenha é um pedaço de sódio, metal que reage de um jeito bem violento com a água (ah que saudades das aulas de química).
E por último, quem sabe de onde eu tirei o nome do gato? E o rabo mais curto?
O que acharam do Kaito vivendo com seu namoradinho bruxo numa cabana na floresta? Essa é a vida real? Ou nem?
(E agora que já arrumei tudo pra postar, descubro que meu compromisso de amanhã foi adiado pra domingo. Nice.)



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