A Raposa escrita por Miss Weirdo


Capítulo 27
Capítulo 27


Notas iniciais do capítulo

OI
MEU DEUS
OI!
Eu fiquei fora quanto tempo? Gente do céu, foram quatro meses.
Esse capítulo ta sendo escrito desde outubro do ano passado, e simplesmente não saía. Tanta coisa me aconteceu nesse meio tempo, eu voltei do intercâmbio, comecei o terceiro colegial, e o mais importante: finalmente consegui desempacar desse bloqueio.
Eu tava vendo o Oscar agora, entregaram pra La La Land quando queriam dar pra Moonlight (#micão). Devo admitir que estava torcendo pra Lion, mas a vida tem dessas, né nom?
De qualquer jeito, espero que vocês gostem do capítulo. Eu, particularmente, adorei o resultado.
É isso fofos, estou de volta :D
Ps: o que eu tinha dito? Posso passar dois anos sem atualizar, mas eu não abandono de jeito nenhum!



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Exatamente duas horas depois que o sol nasceu, ouvi batidas em minha porta. Não fiquei surpreso por dois motivos: eu havia visto os quatro homens se aproximando e também tive a certeza de que, para os Sailors, ordem dada era ordem cumprida.

Na noite anterior, tive que convencer Fox a voltar para a minha casa, porque se não ela fugiria de novo. A garota estava extremamente frágil, e pelo estado que tremia, imaginei que a qualquer segundo fosse se quebrar. Não estava certo vê-la daquela maneira, e me doía cada segundo mais. Coloquei-a deitada no sofá de frente para o meu até que seus soluços se convertessem em uma respiração suave e ritmada, e fiz questão de observá-la durante a noite para que não escapasse de surpresa.

Ela tinha diversas facetas. Na frente dos sailors era uma mulher forte, teimosa, pronta para a batalha. Quando estava sozinha, era como vários cacos que se juntavam para formar um vaso, mas que estavam prestes a ruir. Era impressionante como ela havia mudado desde a primeira vez em que a vi. Antes, me parecia uma guerreira inalcançável. Agora, era apenas uma garota. Uma garota que podia matar um homem com três vezes o seu tamanho, mas uma garota.

Levantei-me para abrir a porta. Eu sabia que a capitã já estava acordada fazia certo tempo, então disse em voz alta:

— Você deveria querer parecer pronta.

Enquanto caminhei até a entrada, pude ouvir barulhos no sofá de quem se erguia.

— E Fox? — questionou Mohra, após um aceno.

— Já vem — retribuí o movimento de cabeça, permitindo que os Sailors entrassem na sala. Eles se dividiram pelo espaço e esperaram pacientemente, até que Fox surgisse alguns minutos mais tarde, o cabelo preso em uma trança, o inchaço do rosto perfeitamente disfarçado. Piscou suas pálpebras algumas vezes antes de começar a distribuir ordens, que foram imediatamente obedecidas.

Fui até o quarto de minha mãe e bati algumas vezes na porta, mas antes de ouvir o “entre” eu já sabia que ela estava de pé.

Assim que abri a porta de madeira, que rangeu suavemente com o gesto, o cheiro de incenso amadeirado atingiu meu nariz. Ela estava sentada com as pernas cruzadas no chão. Velas a circundavam, e sua respiração pausada quase me deu a sensação de que ela, algum dia, fora normal. Seus cachos estavam bagunçados sobre os ombros, com a aparência de quem tinha dormido a noite inteira e tinha acabado de despertar — ou de que não pregara os olhos.

As paredes de madeira tremulavam com as sombras que seu corpo produzia nas chamas. Fiquei de pé, sem jeito, esperando por alguma reação dela, porém minha mãe parecia não ligar nem um pouco para minha presença. Respirou profundamente mais uma vez, e perguntei-me como ela ainda não tinha engasgado com aquela fumaça toda. 

Passei os olhos pelos quadros do quarto, mas eles não estavam mais lá. Meu pai gostava de pintar. Os quadros eram dele.

— Sente-se. Você está me incomodando.

— Perdão — disse, sem jeito, dobrando minhas pernas no chão, como ela.

— Achei que eu já tinha ensinado como endireitar a postura, francamente — desaprovou, mesmo com os olhos fechados. Aquela mulher me conhecia muito bem.

— Nós precisamos de você na sala… — pedi, mas fui interrompido.

— Eu sei que você adora falar, mas a meditação é sempre silenciosa.

— Eu não vim aqui para meditar, mãe — bufei, sem paciência.

— Acho que você me deve essa depois de ter desaparecido por cinco anos, não?

Aquilo me atingiu pior do que um golpe. Certo, eu não sentia remorso de haver partido anos atrás, mas sim um pouco de dúvida. Era irritante como um inseto, que ficava zunindo em meus ouvidos quando eu esquecia de afugentá-lo. Dúvida de como teria sido se eu nunca tivesse abandonado minha mãe, da mesma maneira que meu pai havia feito, de como eu sabia que ela nunca o perdoaria.

Calei-me e respirei fundo.

Ela sempre fora boa em ler nas entrelinhas. As vezes eu me perguntava se essa mesma mulher que estava parada em minha frente, de olhos fechados, respiração pausada e aparência tão calma não sabia de todos os meus segredos e aguardava apenas o momento oportuno para cuspi-los na minha cara e dizer “ninguém mandou me deixar aqui tomando sopa sozinha!”.

Por muito tempo criei um monstro em minha cabeça. Achei que seus olhos castanhos estavam vazios, seus lábios secos, a pele escamosa e o cabelo, cobras. Que ela estaria pronta para me atacar assim que eu pusesse os pés em casa — apesar de não ter sido muito diferente da realidade —, e que ter uma mãe era um fardo. Na verdade, descobri que eu estava completamente enganado: seus olhos eram de um castanho vivo, porém cansados, os lábios rosados retraídos de tristeza, a pele bonita, apesar das rugas que haviam surgido, e os fios castanhos intercalavam-se com os brancos, tudo demonstrando que, para ela, os anos haviam passado mais rápido do que deveriam.

Abri um de meus olhos para expiar novamente a calmaria. Aquilo era raro, principalmente para minha mãe. Ela sempre estava perturbada com alguma coisa.

Ela expirou profundamente, depois balançou a cabeça:

— Eu sei que você não veio para meditar.

Dessa vez abri os dois olhos, mas permaneci em silêncio, pendendo a cabeça para um dos lados.

— Você sempre odiou. Eu tentava deixa-lo quieto, acendia minhas velas favoritas, mas você nunca conseguiu se calar. 

— Eu sou calmo — respondi.

— Seu pai dizia a mesma coisa — suspirou.

Continuei encarando seu rosto. Eu não sabia mais dizer se sua expressão era de cansaço, tristeza ou arrependimento.

— Você se parece com ele mais do que imagina. Quando criança era apenas uma semelhança, todos diziam que eu e você éramos a mesma pessoa, mas conforme você foi crescendo, eu percebi que não passava de uma pequena cópia dele.

— De verdade? — murmurei.

— Quando você entrou em casa ontem, eu, por um momento, achei que fosse ele — minha mãe mordeu o lábio.

Eu não sabia o que dizer.

— Ah, querido, não se preocupe, eu entendo porque ele partiu. Quem iria querer passar o resto da vida comigo?

— Não diga isso — sussurrei — você é uma ótima pessoa.

— Então porque você fugiu também? — ela disse, mas já sabia da resposta — você nunca conseguiu mentir para mim, não tente fazer isso agora.

— Eu não sei o que te dizer — encolhi os ombros, mesmo que ela não pudesse ver, pois seguia com os olhos fechados.

— Você veio por ela — a voz de minha mãe tremulou.

— Como? — questionei.

— Ah, meu filho, você se preocupa mais do que deveria com essa menina — disse.

— Mas que menina? Do que você está falando?

— A ruiva, de quem mais eu estaria falando? — seu cenho franziu, como se eu fosse estúpido ou muito lento.

— Eu e Fox? Por que todos insistem nisso? — perguntei, incrédulo.

— Sabe, querido, as pessoas têm olhos. E eu vou dizer logo para você: esse tipo de sentimento só nos destrói. Sua amiga sabe muito bem.

— Mas que sentimento? Mãe, ela é minha capitã, a única coisa que sinto por ela é respeito.

— Deixou de ser respeito muito tempo atrás. Agora… Agora é algo mais.

— Não é como se eu não soubesse o que é gostar de alguém.

— Para sua informação, o que você faz com as mulheres quando o navio atraca nos portos não é “gostar”.

— Mãe! — exclamei.

— Ah, querido, eu sei de tudo — ela abriu os olhos, se levantando. Me deu a mão para que eu me erguesse também. Balançou a roupa e assoprou as velas. Depois, olhou fundo em meus olhos. Ela agora estava mais baixa que eu, então inclinou seu rosto para cima — É por isso que estou dizendo: tenha cuidado. Quando se perde o controle disso — colocou o dedo em meu peito, bem onde meu coração batia acelerado, e depois o arrastou até minha cabeça — isso se torna uma ilusão.

Saiu do quarto me deixando para trás, pensativo. Cruzei os braços como se quisesse me proteger de um frio que não existia, e me inclinei para frente e para trás por alguns instantes. Balancei a cabeça, livrando-me de pensamentos que nem deveriam estar rondando minha mente, e logo caminhei para junto dos Sailors.

— Bom dia — Mika me cumprimentou com um sorriso. Fox, Magma, Mohra, Garra e Jaguar estavam sentados, cada um com uma expressão diferente no rosto, que variavam de confusão, indiferença para o que provavelmente deveria ser fome — sente-se junto de seus amiguinhos — ela sinalizou com o braço como se eu fosse alguma criança de cinco anos — tenho notícias.

— Já encontrou uma solução para o problema de Fox? — Mohra perguntou, a voz tempestuosa, o olhar nublado.

A ruiva o olhou, como que agradecendo a preocupação, mas o negro estava focado em arrancar qualquer informação possível da vidente.

Mika passou a mão por seus cabelos negros e curtos:

— Você deve me fazer essa pergunta mais tarde. Agora, temos uma última pendência para resolver.

— E que pendência? Já não postergamos esse assunto o suficiente? — Garra esbravejou.

— Silêncio, garoto — minha mãe rolou os olhos, como se estivesse lidando com um cachorro.

— Seguindo — Mika limpou a garganta — Tom, você está com o livro?

Fiz que sim com a cabeça, passando a mão pelo bolso do casaco como garantia. 

— Perfeito. Tenho uma missão para você. Eu preciso que você…

— Tenha mais uma visão — completei a frase, e ela assentiu, os olhos demonstrando orgulho. 

— Sim, tenho motivos para acreditar que essas páginas ainda nos reservam mais uma… aventura.

Peguei o livro negro em minhas mãos. Fiquei encarando o símbolo dourado, as quatro voltas que se entrelaçavam. Meu coração palpitou rapidamente, e eu pendi a cabeça para o lado.

— Mas dessa vez você não vai sozinho.

— O que você quer dizer?

— Quero dizer que duas cabeças pensam melhor do que uma. Eu posso fazer uma indução, alguém mais vai participar dessa pequena jornada com você — ela juntou as mãos, pensativa.

— E suponho que essa pessoa seja você? — Jaguar questionou, encarando a mulher. Ela balançou a cabeça negativamente.

— Alguém tem que fazer a indução, não acha? Tem que ser outra pessoa.

Fox prontamente assumiu:

— Eu vou. Esse assunto tem relação a mim.

Senti uma reviravolta no estômago com a possibilidade, mas a voz de Mika interrompeu meus pensamentos:

— Precisamos de você aqui fora. Da última vez que você encostou no livro, seus dedos queimaram como ácido. Não tenho como controlar o que pode acontecer uma próxima vez.

— Então eu vou — Garra concordou. Controlei o ímpeto de rolar meus olhos. Eu ainda não tinha superado o dia onde ele havia partido para cima de mim e tentado me matar por não me aceitar nos Metal Sailors.

— Certo. Karma, você tem algumas velas?  — minha mãe assentiu e foi buscá-las — preciso que fechem as cortinas. Quanto menos luminosidade natural, melhor — Mika coçou o queixo, e logo apontou para Jaguar — Você, de olhos puxados, empurre a mesa. Vamos, rápido! Meu Destino, que dificuldade. Pronto, todos aqui, perfeito. Ponha as velas na mesa — pediu — eu achei que tinha deixado claro que as cortinas tinham que estar fechadas!

— Eu vou dar um tiro nela — disse Fox, tirando a arma do cinto à distância, enquanto puxava as cortinas. Mohra empurrou a arma para baixo de novo.

Me sentei ao lado de Garra e limitei a dar-lhe um breve aceno de cabeça. Mika acendeu as velas e fechou os olhos. Puxou uma mão minha e uma do loiro, e as apertou com força enquanto recitava algumas palavras. Balançava para frente e para trás. O livro em meu colo começou a esquentar, e o símbolo dourado brilhou em vermelho.

— Agora, Tomeh — pediu ela.

Com a mão livre, encostei no livro.

Logo, como em um estalar de dedos silencioso, eu estava de pé em uma floresta. As árvores frondosas obstruíam a visão do céu, mas a pouca luminosidade indicava o sol se pondo. Folhas secas cobriam todos os centímetros do chão, mas vez ou outra um pouco da grama verde alaranjada escapava do sufoco. Garra, ao meu lado, me encarou, como se esperasse por ordens. Aquilo era novo.

— E agora? — indagou.

— Normalmente eu espero um pouco e o drama vem até mim.

Esperamos um pouco em um silencio pior que desconfortável, e foi quando o loiro se manifestou:

— E quanto tempo o drama demora?

— Não muito — falei — o drama é imprevisível. 

— Não me diga — ele riu pelos dentes.

— Talvez devêssemos andar um pouco.

— E se a gente se perder do drama?

— O drama vai encontrar a gente, não se preocupe — afirmei, indo para a frente.

— Há uma maneira de refazer essa visão caso você estrague tudo e o drama realmente não nos veja?

— Eu não sei. Eu não sou expert em drama.

— Disso eu discordo — foi irônico, enquanto me seguia.

— Perdão?

— Tudo que gira em torno de você é ou gera drama.

— Então agora você é um expert em drama por acaso?

— Não precisa ser expert pra saber que desde que você chegou no Metal Curse as coisas começaram a dar errado — ele falou, mais calmo do que normalmente estaria — antes de você, nosso rumo era a fronteira de Maragua. Íamos saquear navios, matar umas pessoas, lutar no convés, tudo exatamente como de costume. Mas não! Você teve que atrair uns demônios estranhos pra perto da gente!

— Eu não trouxe demônio nenhum!

— A culpa do drama é sua.

— Ah, cale a boca! — gritei.

— Não me mande calar a boca! — esbravejou, puxando um pedaço da espada da bainha.

— De verdade, estúpido, cale a boca! Estou ouvindo algo.

Garra então ficou em silêncio e passou a prestar atenção. Era alguém correndo.

— Veio dali! — ele apontou — Vamos!

Saímos correndo também, e o som parecia se aproximar cada vez mais.

— Eu não vejo o drama! — gritei, ofegante.

— Cale a boca e mexa essas pernas, não deixe o drama escapar!

Foi quando eu vi, no meio do escuro, uma silhueta se aproximando. Uma não, duas.

— Meu Destino! — gritou Garra, se jogando para o lado quando um lobo gigante e escuro como a noite pulou por cima dele, uivando. Logo atrás, um homem passou com um machado erguido, dando um grito gutural. Eles foram para a direção contrária.

— Achamos o drama, Garra! Rápido!

Voltamos a correr para seguir os dois seres. Foi quando paramos em uma clareira, quando o caçador jogou seu machado, que cravou no lobo. Esse ganiu, e dois segundos mais tarde simplesmente evaporou.

— Demônio? — indagou o loiro, limpando o suor que escorria da testa. 

Assenti brevemente, me movendo para perto do homem. Ele também respirava pesadamente. Sua barba rala cobria todo o queixo. Ele não era mais alto que eu, apesar de ter os ombros bem mais largos. A pele escura, os olhos vazios e a pele coberta de cicatrizes. Foi mancando até onde estava seu machado, se abaixou e o recolheu. Cuspiu sangue no chão, que deveria ter se acumulado em sua boca depois de algum tempo de luta contra o pseudo-animal.

Olhou para cima, e depois de fazer alguns traços no ar com os dedos, deu meia volta e seguiu andando devagar.

— O que você acha que ele quer? — Garra sussurrou.

Dei um pulo de susto. Eu não estava acostumado a escutar ninguém que não estivesse na visão, e por um momento meu coração palpitou com a insegurança de que o caçador pudesse ter nos escutado.

Não escutou.

— Eu não sei — sussurrei de volta — temos que segui-lo.

E fomos atrás dele até chegarmos na cidade. O ar dali era familiar, e eu tive certeza de já ter andado naquelas ruas antes.

E foi quando aconteceu: dois homens surgiram do nada e cobriram a cabeça do caçador. Ele passou a se debater, mas não conseguiu resistir à força da maioria, e foi arrastado até uma pequena casa de madeira que havia ali ao lado, uma das primeiras perto da floresta.

Ela era pequena, não deveria ter mais de um cômodo, e as paredes pareciam que iam se quebrar a qualquer segundo. Empoeirado e com os móveis cobertos com um lençol amarelado, havia uma mesa de madeira com quatro cadeiras bem no centro.

O homem foi arrastado até uma da cadeira. Para minha surpresa, nas outras três, já esperavam outras pessoas.

A menina maltrapilha, sendo segurada por mais um guarda, o mercenário, e a dama. Em frente a eles, uma toalha perfeitamente branca.

— Ah, que bom que chegou! — a dama se levantou, abrindo um grande sorriso. Seu cabelo castanho estava preso em uma trança, e mesmo em uma situação tão deplorável como aquele ambiente, seu vestido roxo estava impecável, assim como ela própria — sente-se, ande, antes que a comida esfrie.

Os guardas forçaram o caçador a sentar-se.

Olhei para o mercenário por um instante. Ele estava praticamente deitado na cadeira, os braços cruzados, o olhar de quem não tinha a mínima vontade de estar ali. Mesmo assim, ninguém o segurava ou ameaçava, o homem da barba loira aparentava estar ali por opção própria.

Já a maltrapilha… A bruxa estava mais raquítica que nunca, parecia menor que da última visão que eu havia tido, mesmo eu tendo a certeza de que não havia passado muito tempo. Garra me encarou com expressão de dúvida, e eu dei de ombros.

— O que está acontecendo? — o caçador indagou, debatendo-se — o que quer comigo?

A mulher então colocou atrás da orelha um fio de cabelo que escapou do penteado, e em seguida sentou-se.

— Não é o que eu quero com você, especificamente, e sim o que eu quero com todos aqui presentes — titubeou o queixo com os dedos, piscando seus grandes e sábios olhos.

— Certo, vamos rápido com isso — o mercenário pediu, rolando os olhos. A mulher limitou-se a checá-lo com o canto dos olhos, mas logo retornou ao seu discurso:

— Imagino que vocês dois — e apontou para a bruxa e o caçador — devem estar se perguntando o que fazem aqui, nessa casa, comigo.

— Você imagina? — a bruxa sibilou. Sua voz era fina como a de uma menina de 11 anos, mas ardida e seca como a de um velho de 70. Seu cabelo ensebado escorria pelo rosto, tampando um de seus olhos.

— Para explicar um pouquinho do que eu quero com vocês, eu preciso voltar um pouco no tempo, sim? — sorriu falsamente — meu pai é o conde mais importante dessa cidade, como vocês podem imaginar. Ele tem um forte comércio de grãos com  o exterior de Tiga, principalmente com a Capital. Infelizmente, em decorrência de alguns fatores que prefiro não mencionar, essa aliança do meu pai está sendo um pouco… Abalada.

— E o que eu tenho a ver com isso? — o caçador arqueou as sobrancelhas, desistindo de soltar-se.

— Você pode me responder o que estava fazendo agora na floresta? — o mercenário questionou, inclinando-se sobre a mesa.

O negro pareceu ter sido pego de surpresa.

— Caçando coelhos e aves — respondeu, seco.

— E onde estão as caças? — estreitou os olhos.

— Eu não consegui pegar nada, alguma coisa parece estar assustando os animais.

— Oh, sim, nós sabemos muito bem o que está assustando as criaturas. Assim como vocês dois — sorriu maliciosamente o homem de barba.

— O que quer dizer com isso? 

— Vamos parar de enrolação — a dama anunciou, logo erguendo o braço e estalando o dedo duas vezes. Seus servos trouxeram quatro pratos de sopa, colocando-os de frente a cada um dos “convidados”. A bruxa e o caçador se olharam sem entender, buscando respostas um no olhar do outro. Visivelmente, o mercenário e a dama estavam trabalhando juntos — vamos, comam! Seria muito desagradável não provar. 

Depois de um olhar de hesitação, o mercenário rolou os olhos:

— Vamos, eu primeiro — e colocou uma colher na boca. A dama o acompanhou, e logo os outros dois.

— Ah, sim! Eu os chamei aqui por um único motivo — a garota de cabelo castanho anunciou — Aidas. 

O caçador parou uma das colheres no meio do caminho para a boca, enquanto a bruxa deixou com que o talher batesse no prato. Os servos se entreolharam, nervosos ao som do nome. O homem de barba olhou para baixo, tentando não parecer desconfortável, mas era impossível não notar como o ambiente mudara. Encarei Garra, que erguera as sobrancelhas para mim. Aquilo era algo que eu não esperava. Não era sempre que o nome do rei dos demônios era citado.

— O que eles querem com ele? — o outro marujo questionou, e dei de ombros.

— Eu gostaria de dizer que sua existência é apenas uma lenda, mas depois desse último mês qualquer coisa virou possível para mim — respondi, atônito.

— Eu não sei que tipo de relação você pensa que um caçador como eu possa ter com um demônio, mas…

— Ah, por favor — a dama revirou os olhos — todos sabem que você não entra naquela mata para caçar coelhos. O protetor do vilarejo, ataca os soldados, enquanto busca mirar com seu machado no coração do rei.

— Deve estar me confundindo com alguém — respondeu.

— Não importa, já sabemos de seus pecados. Infelizmente, indo atrás dos servos do grande Rei, você acabou por deixa-lo incomodado.

— E o que você tem a ver com isso? — vociferou.

— Eu venho de uma linhagem de estudiosos — a mulher colocou um dedo em seu queixo — dizemos trabalhar com a ciência das plantas, mas os desejos de meu bisavô sempre foram os fatos sobrenaturais. Capturava as criaturas para poder estudá-las mas depois as soltava novamente na natureza, e elas nunca o causaram mal algum.

— São demônios! Você tem ideia das coisas que está dizendo? — ergueu as sobrancelhas, perplexo. Os guardas tiveram de segura-lo enquanto inclinava para a frente.

— Meu avô seguiu o legado. Tentou estudar essas fascinantes criaturas, e por um tempo, conseguiu. Mas um trágico acidente levou à sua morte. Era estúpido, pensava saber tudo sobre demônios, não seguiu as notas básicas de meu bisavô.

— Esqueça as sombras! Elas vão te destruir, assim como me destruiram! — implorou o caçador.

— A história não para por aí — ela deu seguimento, ignorando os conselhos do outro — Meu pai cresceu só com a mãe, e lhe fez falta a figura masculina. Ele me proibiu de chegar perto de qualquer coisa que tivesse relação com as criaturas, e, por anos, eu as estudei em segredo, e agora descobri porque nunca encontrei um demônio em pessoa. Era você!

  — O que quer dizer com isso? 

— Segui todas as instruções do diário de meu bisavô!  — vociferou, erguendo um livro preto com o símbolo das quatro voltas que se entrelaçavam. Meu coração acelerou — Onde encontra-los na floresta, como me aproximar, como captura-los e como fazer para que não me matassem, e mesmo assim sempre dava errado. Quase cheguei a desacreditar nos estudos dele. Mas era você. Você matava todos os demônios, fazendo disso sua profissão! 

  —Vamos! Admita! — gritou o mercenário, dando um soco na mesa.

O impacto fez com que o outro homem desse um pulo. Ele olhou para baixo, uma expressão amarga, e quando ergueu o rosto, não era necessária uma resposta. A verdade estava ali.

— Tudo o que eu fiz, o que eu sacrifiquei, foi para o bem do vilarejo.

— Trataremos de você depois — o homem de barba grunhiu, e logo virou-se para a bruxa, que estava calada desde o início da conversa — você provavelmente já sabe o porquê de estar aqui.

Ela sorriu.

— Estou aqui porque sou a ponte entre Aidas e nosso mundo.

A dama riu, ironicamente.

— Você seriamente acredita nisso?

— Acredito na verdade. Vocês sabem que o rei dos demônios tem uma ligação comigo, e que ele não pode me matar. Se está tão interessada nas criaturas do submundo, precisa de mim para trazer o maior de todos até  você.

— Ah, querida. Eu precisava. Você já fez o serviço, e agora não posso correr o risco de que alguém atrapalhe meus planos, e sei que a única com poder para isso é você. 

— Como assim? — a pequena engasgou de surpresa.

— Na noite em que meus soldados te capturaram, o feitiço funcionou. Aidas já está entre nós.

— Como? — o caçador deu um salto — ele está aqui?

— E quem sou eu para controlar o rei dos demônios? Você pode matá-lo, e aquela — disse, apontando para a bruxa com a cabeça — controlá-lo. Não posso nem pensar em ter problemas com vocês mais tarde.

— O que quer dizer com isso? — a menina ergueu as sobrancelhas.

O caçador então começou a tossir, perdendo o ar como um velho. O som arranhado que escapara de sua garganta ardeu em meus ouvidos, fazendo com que um arrepio subisse por minha espinha. Aquele ruído não era normal.

Cicuta, é isso o que ela quer dizer. Tive de correr para o alto do monte Tivarius para colhê-la. Pelo menos isso me rendeu um bom pagamento — o mercenário abriu um sorriso — Boa viagem ao inferno.

Mas, surpreendentemente, a fala do homem foi interrompida por uma tosse que veio do mesmo. Tossiu duas vezes, o suficiente para encarar a dama com olhar de questionamento.

— O que foi? — ela disse, parecendo falsamente surpresa — não esperava por isso? Você sabia demais.

— Sua… — pensou em algo para dizer, mas perdeu o ar no meio da frase.

Todas as velas então brilharam intensamente, enquanto o mercenário puxou sua faca mais rápido que os guardas puderam evitar, cravando-a no peito da mulher. Um dos serviçais logo atravessou a espada no pescoço dele. O caçador despencou da cadeira, os olhos abertos e sem vida.

Garra encarava boquiaberto a cena, enquanto a bruxa segurava o sangue que saía em meio a tosse com o punho cerrado. Os olhos fechados, ela intercalava a respiração que falhava com mais um feitiço: o último.

— Nossas almas não cessarão — murmurou, quando atingiu o chão de joelhos — nosso sangue passará de geração à geração, até que algum de nossos descendentes possa acabar com a bagunça que você criou — disse, se arrastando até a dama, que dava os últimos suspiros de vida. 

Assim que a bruxa caiu no chão as velas se apagaram.

Abri os olhos no sofá de minha casa. Garra estava ofegante, ao meu lado, e me encarou, sem palavras. Os questionamentos logo começaram, perguntas vinham de todos os lados, mas Mika os calou com um aceno.

Levei alguns segundos para ordenar meus pensamentos, mas assim que percebi que tinha fôlego para falar, disse:

— É você, Fox.

Ela ergueu as sobrancelhas, me olhando com os braços cruzados do canto do sofá.

— Eu o quê?

O loiro, ao meu lado, deu um aceno de cabeça.

— É você que vai matar Aidas.


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Notas finais do capítulo

E aí? O que acharam?
Vejo vocês no capítulo que vem :3



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