Intocável escrita por GG


Capítulo 1
Capítulo único




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Intocável

Índia,

2012.

"Não deseje eu ansiosamente

ser salvo,

mas ter esperança

para conquistar pacientemente

a minha liberdade.

Não seja eu tão cobarde, Senhor,

que deseje a tua misericórdia

no meu triunfo,

mas apertar a tua mão

no meu fracasso!"

Anusha queria desaparecer, pela milésima vez tudo que ela desejava era simplesmente não ser Anusha. Para ela ser qualquer outra pessoa seria bem melhor do que ser ela mesma.

Odiava ter que aceitar tudo que o pai dizia, odiava ter que casar tão jovem e com um garoto idiota como Raghu. O casamento de crianças era proibido por lei mas as tradições sempre falavam mais alto e as pessoas ignoravam essas decisões sem hesitar, e fora exatamente isso que o pai da menina de cara emburrada fizera.

"Se eu fosse você estaria sorrindo.", sussurrou Deva, Didi de Anusha enquanto a encarava fixamente. Elas tinham recebido a dádiva de sair um pouco de casa, mas na companhia do Bhaya das duas, Komal estava distraído observando algumas esculturas belas que ele gostaria de adquirir.

"Eu não sou como você, Deva. Atchá!", exclamou a menina cruzando os braços sob o peito, Anusha sempre fora daquela maneira, tinha opinião formada e aquilo deixava seu pai sempre irritado, sua mãe tentava apaziguar as brigas na casa mas nunca dava certo, a menina sempre acabava falando mais do que o pai gostaria de escutar.

"Escute aqui, sua garota ingrata.", ordenou Deva puxando a irmã fortemente pelo braço, aquilo com certeza deixaria alguma marca futuramente, "Você vai ter que falar a sua boca, já estou farta de sua palhaçada, pensa que pode ir contra tudo? Você não pode! Tem que agradecer por alguém ter aceitado casar com uma pessoa tão ridícula como você."

"Me solta!", ela disse começando a gritar e atrair olhares curiosos dos que por ali passavam. A menina se debatia tentando libertar-se do aperto de Deva, "Komal! Bhaya!", gritou a garota apenas para irritar ainda mais sua Didi.

Komal se virou na direção das duas e seu sorriso de curiosidade, antes voltado para as mercadorias com as quais planejava gastar suas rupias, se desfez e uma cara de descontentamento foi esboçada em seu rosto moreno. Anusha não sabia se deveria se sentir melhor ou pior, o irmão poderia ser bastante duro quando queria, mas ao mesmo tempo ninguém conseguia ser pior do que Deva.

"Tchalô, expliquem logo o que está acontecendo aqui.", ele disse irritado, seus olhos pousando no aperto firme de Deva no braço magro de Anusha, "Solte-a, Didi, não tem motivos para segurá-la."

"É claro que tenho.", retrucou Deva mas soltou o braço de Anusha, mesmo que hesitante, "O problema é essa garota ingrata, nunca está satisfeita. Deveria estar comemorando o casamento com Raghu, a família dele é tão rica....."

"Anusha.", chamou Komal suavemente, "Isso é verdade, Didi?"

"É.", disse simplesmente a menina de cabeça baixa.

"Baldi escolheu o melhor noivo para você. O que lhe chateia tanto?", perguntou Komal sem compreender o verdadeiro motivo para tanto alarde.

"Eu não gosto dele, Komal. Eu não quero casar.", disse a menina sentindo que estava pondo tudo que sentia para fora, ela tinha apenas 11 anos e já estava sendo idealizada com um vestido colorido e alegre de noiva.

"Are Baba, Anusha!", disse Komal assustado com aquela revelação da irmã mais nova, "Nunca mais diga isso, nunca mais. Você é uma mulher, tem que se casar e cuidar dos filhos, é a sua função."

"Não tenho não!", rebateu a garota erguendo o rosto na direção de seu Bhaya, pela primeira vez não sentia medo do que ouviria a seguir, era libertador pôr para fora o que realmente pensava, mesmo que isso lhe custasse caro depois, "Eu não tenho função nenhuma, minha única função é não tê-la."

"Eu falei, Komal, eu sempre falei.", intrometeu-se Deva com um sorriso raivoso no rosto, "Ela quer ser como aquelas firanghis!".

"Pelo menos elas são livres.", disse a menina exaltada.

"Arebaguandi, já ouvi porcarias suficientes para toda uma vida.", contrapôs Komal irado, encarava a irmã com olhos injetados de ódio, quem ela pensava que era? Estava completamente errada. "Vamos para casa, Baldi ficará sabendo desse seu pensamento tenebroso."

"Não! Eu não vou!", gritou a menina debatendo-se, seu Bhaya tentava puxá-la mas ela tentava escapar. Conseguiu um momento de distração e correu, sem pensar no que estava realmente pensando com aquilo.

Correu por minutos adentro, não importava em olhar para a frente ou para os lados, muito menos para trás. Derrubou diversas coisas mas mesmo assim não se deteve, só queria poder correr até desaparecer daquele maldito lugar, não aguentava mais todas aquelas tradições, tudo lhe parecia tão errado que chegava a doer profundamente no seu coração.

Só parou quando se viu perdida em um vilarejo, rolou na grama quando quase acertou um poço de pedras. Caiu na grama e sujou o sári novo e os cabelos que foram cuidadosamente penteados por sua Mamadi, as joias caiam mas ela pouco se importava, odiava ter que usar tudo aquilo todos os dias.

Ficou deitada no chão, arfante por todo aquele momento. Foi quando avistou um garoto que não deveria ser muito mais velho do que ela, sorriu cuidadosamente.

"Namastê!", cumprimentou educadamente o garoto, mas ele nada lhe respondeu, parecia mais assustado do que ela mesma. Anusha se levantou e nem limpou as sujeiras do sári ou dos cabelos. "Está bem, menino?"

"Não se aproxime...", pediu o garoto ansiosamente, estava se afastando dela, a sua sombra estava quase a tocando e ele não podia permitir que aquilo acontecesse.

"Você é um Dalit?", a menina quis saber mas não obteve respostas, Anusha sabia que o silêncio confirmava suas suspeitas, "Koi bat nehi!"

"Não devia falar comigo.", disse o menino parecendo desconfiado da menina, "Você deve ser de uma casta alta."

"Kshatriya, mas não importa de verdade.", disse a menina dando de ombros.

"Está perdida aqui?"

"Tik tik.", concordou Anusha, "Mas é bom conhecê-lo, afinal...qual seu nome? Sou Anusha."

"Pandit.", disse o menino com simplicidade, "Falando sério, você deveria ir embora, procurar por sua família."

"Acabamos de nos conhecer e já quer que eu vá embora?", Anusha fingiu estar ofendida.

"Não...não é isso, Anusha!", ele garantiu acreditando na encenação da garota, "É que aqui ficam alguns Dalits e pode acabar mal para essas pessoas, para mim também."

"Are baba, eu nunca faria nada contra vocês!", ela disse erguendo as mãos para dar ênfase.

"Você talvez não faça mas seus pais....sua família."

"Também não", disse a menina, "O que faz aqui?"

"Eu? Eu corto lenha para levar para....o lugar onde moro."

"É muito difícil?"

"Ninguém nunca me perguntou isso.", disse o menino parecendo surpreso, "Sim, é difícil mas existem coisas piores. O que te trouxe até aqui, Anusha?"

"Meu pai está me forçando a casar, e eu não quero.", ela disse com a voz turva de tristeza, "Eu estava no mercado com Bhaya e Didi e eles começaram a brigar comigo quando eu falei sobre isso, eu só...só consegui correr dali."

"Are baba, Anusha! Eles devem estar preocupados, você precisa voltar."

"Eu sei.", disse a menina, "Pra começar eu nem sei como voltar daqui."

"Posso te levar até perto deles e aí você vai ao encontro deles.", informou Pandit cuidadosamente.

A pequena indiana sorriu.

"Será que eu posso voltar aqui, quando ninguém lembrar que eu existo…?", pediu a menina.

"Pode."

Anusha estendeu a mão na direção da de Pandit e ele pareceu não compreender.

"Me dê a mão.", ela pediu.

"Não posso, não pode encostar em mim.", ele disse nervosamente.

"E as leis também dizem que eu não posso me casar com essa idade.", ela disse e piscou brincalhona, puxou a mão de Pandit sem se importar.

E naquele momento ela unia suas mãos e quebrava os elos de uma tradição milenar que oprimia e sufocava a tantos.


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Notas finais do capítulo

Significados
Didi - Irmã
Bhaya - Irmão mais velho
Atchá - Expressão de satisfação
Rupia - Moeda indiana
Tchalô - "Vamos!"
Baldi - Pai
Are baba - Uma reclamação equivalente a “poxa”, “ó Deus”
Firanghi - Forma pejorativa de designar estrangeiros
Arebaguandi - Expressão equivalente a “ó meu Deus”
Mamadi - Mãe
Namastê - Cumprimento mais popular na Índia
Dalit - Classe social mais baixa dentro do sistema de castas, os “intocáveis”
Koi bat nehi - Sem problemas, está tudo ok.
Kshatriya - São como subordinados dos brahmin. Suas funções estão ligadas diretamente aos meios políticos e militares, também são respeitados por classes mais baixas.
Tik tik - “sim, sim”



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