Quer brincar comigo? escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 9
Culpa e Perdão




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– M-mas... eu não entendo... – Sarah murmurou para si mesma. – Isso não faz sentido! Por que você ataca as garotas?

– E por que possuiu o corpo da Magali? Justo a Magali? – Cebola também quis saber. Cascão pareceu ter matado ao menos uma parte da charada.

– Eu tô conhecendo essa roupa que ela tá usando, careca! É a fantasia que a Magá tava usando naquele dia que a gente entrou na casa da mina fantasma que quase te matou!

Cebola não entendeu nada.

– Como você lembra disso?

– Eu lembro, ué! Ela também contou a história de uma boneca doida que ganhou vida e...

– Sim, a Maricota. – a entidade voltou a falar com a voz rouca. Fazendo os queixos do Cebola e Cascão caírem. – A boneca preferida da Magali. Ah, como eu era bem tratada...

Seu rosto suavizou ao lembrar dos bons tempos com aquela menina. Ela era tratada como uma boneca devia ser: mimada, carregada no colo como uma filha, dormindo na cama e sempre participando das brincadeiras. Que saudade!

(Sarah) – Eu não tô entendendo... você era a boneca da Magali? Como? E o caso da menina que foi morta... eu pensei que você fosse ela a procura de vingança...

Ela voltou a chorar, depois a rir e por fim chorou como louca.

– Eu a matei, fui eu... meu crime, meu remorso! Pobre menina, só queria brincar de boneca! Mas não, elas eram só minhas e ninguém podia mexer! Então eu a castiguei e agora carrego meu castigo, o frio daquela noite me persegue para toda parte! Frio... frio...

Após um riso histérico entrecortado com algumas frases desconexas, a entidade voltou a falar.

– Depois daquela noite, eu fiquei obcecada pelas minhas bonecas! Ninguém podia ver ou tocar. Nem minhas filhas! Mas a culpa me perseguiu! Todos os dias eu via a mãe dela e aquela mulher parecia me culpar!

Seu corpo tremeu ao lembrar que o resto da sua vida tinha virado um mar de insanidade. Ela ficava cada vez mais obcecada por suas bonecas a ponto de não importar com mais nada. Não cumpria seus deveres, não importava com as filhas e nem com o marido. Ela era capaz de ficar horas e mais horas trancada no quarto conversando com aquelas bonecas. Muitas vezes a mulher exigia que as escravas lhe tratassem como uma boneca, colocassem vestidos e penteassem seus cabelos. Outras vezes ela fazia vestidos e colocava nas moças mais novas e sempre as maltratava quando não se comportavam como bonecas.

Por fim a mulher foi encontrada morta em sue quarto com os olhos arregalados e um sorriso estranho no rosto. Seu corpo estava mais gelado do que um cadáver normalmente ficaria.

– Pensam que a morte é o fim de tudo? Pensam que existe descanso eterno? Idiotas! Meu tormento só começou! Eu vaguei durante anos como alma penada sem poder brincar e sem ter quem cuidasse de mim! Só escuridão, frio, solidão! Então um dia eu vi uma menina brincando de boneca e tive a melhor idéia que alguém podia ter! Me tornei sua boneca!

(Cebola) – Como isso pode ser possível?

– Incorporando no corpo da boneca. – Sarah respondeu. – Ela incorporou nas bonecas para que as meninas brincassem e cuidassem dela.

– Sim! Eu era amada, bem cuidada, as meninas eram muito boas para mim! Só que elas cresciam, malditas! Por que elas tinham sempre que crescer? Quando cresciam, elas esqueciam de mim, me jogavam no fundo do baú ou do armário e eu ficava lá apodrecendo, deteriorando! Então eu tinha que procurar outra boneca.

Era um eterno ciclo do qual ela não conseguia sair. Primeiro passava bons anos com as meninas sendo tratada como boneca. Mas as meninas cresciam e ela era deixada de lado. Foi assim durante muitas décadas até que um dia ela encontrou Magali.

– Ela tinha acabado de ganhar a boneca e parecia amá-la tanto! Foram anos tão felizes que eu cheguei a pensar que fosse durar para sempre.

– Vish, ela é doida... – Cascão murmurou e levou uma cotovelada do Cebola. Irritar aquele espírito podia não ser boa idéia. Ignorando a discussão silenciosa dos dois, a entidade continuou falando mais para si mesma do que para os jovens.

– Eu realmente achei que fosse durar para sempre. – repetiu. – Ela brincou comigo mais tempo que as outras meninas. Mas não, tudo começou quando aquele gato nojento chegou. Por que eu não dei um jeito naquela praga quando tive chance? Ele vivia deitando em cima de mim, coisa nojenta!

Cebola fez um sinal silencioso para que Cascão saísse dali e procurasse as meninas e aproveitou que a entidade estava distraída demais contando sua história e foi libertar Marina. Sarah continuava conversando e incentivando a mulher a falar.

– Ela acabou sendo como todas: me deixou no fundo do armário onde coisas nojentas passavam por cima de mim! Chega! Cansei! Não agüento mais isso! Durante anos eu perdoei, mas dessa vez foi demais! Ela era minha melhor amiga e me deixou! Então eu tentei castigá-la, mas aquele gato asqueroso me fez em pedacinhos! Nunca senti tanta dor na minha vida!

Seu corpo tremeu ao lembrar das garras e dentes daquele gato estraçalhando seu corpo de tecido. Mesmo sendo uma boneca de pano, ela também sentiu dor.

– Ficou só um olho de vidro que ela guardou. Ela ainda me amava! Ainda pensava em mim e sentia culpa por ter me abandonado! Então eu decidi que ela devia ser minha boneca agora e que íamos brincar juntas para sempre!

– Mas você está machucando minhas amigas, isso é errado! – Sarah tentou explicar. – Se você queria brincar de boneca, por que não usou bonecas de verdade?

– Quando criança, eu era a boneca da minha mãe... depois minhas filhas foram minhas bonecas. Aí elas cresceram... eu queria bonecas de verdade!

Sarah viu que aquela mulher era perturbada, talvez criada por uma mãe na mesma situação, não havia com saber. Ela viveu a vida inteira obcecada por bonecas, pois tinha sido tratada como uma e quando cresceu, o tratamento mudou pois não era mais criança. Isso deve ter sido muito doloroso, então ela transferiu sua fixação em loucura ferindo a si mesma e pessoas ao redor.

– O que vocês estão fazendo? – ela gritou de repente ao ver que os dois rapazes não estavam por perto e que sua boneca de cabelos cacheados tinha sumido. - Traidores! Só queriam roubar minhas bonecas! Eu não vou permitir! Vou acabar com todos vocês!

– Espere, nós só queremos te ajudar! Por favor, escuta! – uma rajada de vento gelado a derrubou no chão, fazendo seus pés e pernas congelarem. Mônica tentou segurá-la e foi uma luta difícil porque a entidade tinha força sobre-humana e ela não queria machucar sua amiga.

Enquanto isso, Cebola tinha conseguido libertar Marina, que fugiu para fora do galpão. Carmem, Maria e Cascão fugiam dali com Denise inconsciente e muito fraca para reagir.

– Malditos! Vocês não vão levar minhas bonecas, não vão! – ela atirou Mônica para longe e fez com que vários caixotes caíssem na frente do Cascão e as garotas. Carmem conseguiu desviar e fugir, mas Maria e Cascão ficaram para trás.

A situação parecia muito ruim pois ninguém conseguia parar aquela coisa. Ela era forte demais e parecia ter o poder congelante da Elsa, o que a tornava mais perigosa.

– Devolvam minhas bonecas! Agora! – Ela bradava indo na direção dos que ficaram para trás. Cascão tentou falar com ela.

– Chuta essa coisa ruim pra fora do seu corpo, você consegue!

Nada parecia resolver. Por que Magali não reagia? Quando seu corpo foi invadido pela Penha, ela conseguiu expulsá-la e até lançar um feitiço para detê-la. Por que com a boneca foi diferente?

Todos tentavam falar com ela, argumentar, dizer palavras de incentivo e isso só deixava a entidade mais furiosa ainda.

Cebola correu para Mônica e a ajudou a levantar do chão.

– Vou te levar pra fora.

– Nada disso, não podemos deixar o pessoal pra trás!

– Eu dou um jeito, mas não posso te deixar aqui! Fuja e peça ajuda!

Mônica respirou fundo, reuniu coragem e falou com firmeza.

– Não! A gente precisa ajudar a Magali!

– Ela precisa reagir, senão estamos perdidos! – Sarah falou gemendo de dor. – Achei que ela tivesse força para se libertar!

(Cebola) - E tem, mas alguma coisa tá atrapalhando!

A entidade os atacou novamente, tentando avançar contra Cascão e as outras meninas. O rapaz colocou Maria no chão e tentou abraçar Magali com força para contê-la.

– Magá, você tem que reagir! Acorda! – Ele implorou e foi jogado para longe. Se nem a Mônica conseguia segurar aquela entidade, claro que ele também não ia conseguir nada.

– Meninos não brincam com bonecas! Vou acabar com você!

Cebola também tentou ajudar e foi jogado para longe junto com a Mônica. Sarah também foi derrubada. Cascão tentava entender por que Magali não conseguia lutar com aquela mulher. Droga, por que sua cabeça não funcionava direito? Será que pensar era tão difícil assim?

Ela o olhou novamente com aquele olho de vidro assustador. O olho de vidro... espera! Ele se lembrava da história que ela tinha contado, pois sempre prestava atenção ao que ela dizia. Havia qualquer coisa sobre aquele olho de vidro. Ela se lamentando pelo que tinha aconteceu com a boneca, sentindo culpa e remorso. Quando terminou de contar a história, ela parecia realmente triste e pesarosa, o que só faria sentido se a história fosse verdadeira. Só podia ser isso!

Quando a mulher avançou contra ele com a tesoura na mão, ele gritou.

– Magali! O que aconteceu não foi culpa sua, tá legal?

Ela parou e ele viu que seu corpo tremia. Os outros também perceberam.

(Cebola) – Mas como...

– Quando terminou de contar a história da boneca, ela ficou muito bolada com o que tinha acontecido porque achou que era culpa dela! – Cascão respondeu e Sarah entendeu tudo.

– Então é isso! Ela está aprisionada pela culpa!

– E foi culpa dela, seus malditos! Foi culpa dela eu ter virado esse monstro!

Sarah levantou-se e encarou a mulher com firmeza.

– Não! Você já era um monstro muito antes de conhecer a Magali! O que ela fez ou deixou de fazer não tem nada a ver com isso!

– Sua boneca horrorosa, defeituosa, queimada! Você é feia, queimada, por isso ninguém nunca vai te querer!

Aquilo fez com que Sarah sentisse vontade de chorar, mas ela se manteve firme.

– Você fez coisas horríveis no passado e nunca tentou mudar e ser uma pessoa melhor! Só viveu para machucar as pessoas e causar sofrimento!

– Mas eu só queria brincar... isso é crime? Eu era a bonequinha da minha mãe, mas quando cresci ela parou de cuidar de mim... por que as pessoas não podem cuidar de mim? Eu quis brincar de boneca com as outras meninas, mas elas nunca entenderam... eu só batia nelas para o seu bem, igual minha mãe fazia comigo...

Ela voltou a chorar e daquela vez parecia de tristeza e não loucura.

– Eu não quero mais sentir frio... não quero mais ficar sozinha no escuro... não quero mais ser abandonada no fundo do armário... não quero mais ser um monstro!

Sarah chegou mais perto da mulher apesar dos receios dos outros. Era só uma alma perdida que precisava de uma luz para encontrar seu caminho.

– Você pode mudar, não precisa ficar assim pra sempre.

– E para onde eu vou? O que farei? Quem vai brincar comigo?

– Acho que tá na hora de você crescer, como todo mundo faz. Você viveu assim durante muito tempo e só sofreu. Acho que já chega, né?

– Se eu não posso ser assim, então como vou ser?

A moça pensou numa forma de ajudar aquela pobre alma, mas o que fazer? O que dizer? Ela não tinha a menor experiência com aquele tipo de coisa e se não fizesse algo, todo o tormento poderia começar novamente. Enquanto pensava, um leve sussurro chegou aos seus ouvidos. Parecia a voz do Victor, mas naquela hora ela não teve certeza. Ela já sabia o que fazer.

– Você lembra onde escondeu o corpo daquela pobre menina? – a entidade olhou para ela desconfiada.

– Por que isso é importante?

– Pra que ela seja sepultada de forma digna. Aquela criança sofreu muito, acho que merece ser tratada com dignidade. Você não entende o quanto aquilo foi errado? Você sofre agora por causa do que fez a ela! Se quer que sua punição acabe, tem que fazer justiça!

Pela primeira vez ela pareceu sentir algum remorso pelo que tinha feito.

– Pobre Zefinha... o que eu fiz? Ela só queria brincar...

– Onde está o corpo?

Sem falar nada, a mulher andou pelo galpão e foi para o lado de fora, circulando a construção tateando as paredes com Sarah, Mônica e Cebola atrás. Assim Cascão pode tirar Denise e Maria Mello dali em segurança e ele esperava que Carmem tivesse conseguido fugir.

– Aqui... mas o corpo dela foi feito em pedaços... – falou mostrando um local que parecia ficar debaixo de uma parede que Cebola marcou com um X usando um torrão vermelho que tinha achado ali perto.

(Cebola) – Eu só não sei como a gente vai fazer pra desenterrar os ossos.

(Sarah) – Temos que tentar, isso é importante para que ela possa seguir em paz. – ela voltou-se para a mulher e disse. – Agora você precisa ir. Devolva o corpo da nossa amiga e vá em paz.

A entidade deu um longo suspiro e tremeu.

– Se eu for embora, para onde irei? Vou ficar sozinha de novo?

– Não, sinhá. Eu te levarei para onde possa se recuperar. – eles ouviram uma doce voz com menina e voltaram-se surpresos ao ver uma luz se formando no terreno.

Dentro dessa luz havia uma menina com cerca de dez anos, pele negra, olhos castanhos e cabelos trançados. Ela vestia uma túnica azul-clara e sandálias de tiras brancas. Pelo menos Sarah via isso, os outros enxergavam somente uma luz indefinida.

– Zefinha... você veio me castigar, não foi? Quer me punir? – ela tremeu de medo e recuou vários passos.

– Eu vim te ajudar.

– Eu te fiz tanto mal! Como quer me ajudar? Eu mereço ser punida!

– Ninguém vai te punir porque eu te perdoei.

– Você... me perdoou?

– Sim, agora vem comigo! Se quer mudar, vamos começar agora! Você não vai mais ficar sozinha, vem! – a menina estendeu a mão para a mulher, que começou a chorar como criança pequena.

– Me perdoa, Zefinha... eu fui uma mulher muito perversa...

– Isso passou, sinhá.

Seu corpo tremeu e o olho de vidro caiu do seu rosto indo parar no chão e partindo ao meio. Dele saiu uma fumaça esbranquiçada que foi tomando a forma de uma mulher de cabelos castanhos e roupas do século 19. A menina sorriu e pegou sua mão para que elas fossem embora.

– Nós temos que ir, tudo vai ficar bem agora.

A mulher não respondeu nada e se deixou conduzir docilmente, chorando e lamentando por ter sido tão horrível. Antes que Magali caísse no chão, Mônica a segurou nos braços. Sua amiga estava livre, finalmente.

Antes de ir embora, a menina voltou-se para Sarah e disse.

– Obrigada. Diga a sua amiga para que não sinta mais remorso pelo que aconteceu. Não foi culpa dela.

– Era o remorso dela que tava dificultando as coisas, não era? – Sarah quis saber.

– Sim. Enquanto ela sentia culpa, continuava alimentando-a e ela não conseguia enxergar o que tinha feito. Somente quando a culpa foi embora a sinhá pode enxergar melhor o que estava fazendo.

– Sobre os seus ossos...

Ela sorriu.

– Eu ficaria grata se pudessem enterrá-los em um lugar mais bonito. – Dito isso, ela foi embora na direção da luz levando a mulher chorosa pela mão, deixando o resto do pessoal ali no escuro e sem entender nada, já que tinham visto somente alguns clarões e apenas Sarah pode ver com clareza tudo o que aconteceu.


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