Quer brincar comigo? escrita por Mallagueta Pepper


Capítulo 7
Uma boneca quebrada, uma vida estilhaçada


Notas iniciais do capítulo

Se segurem nas suas cadeiras porque o bicho vai pegar!



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Não adiantou fazer mais perguntas. Magali parecia muito aflita para ir embora e continuar com sua costura. Mônica estava preocupada e decidiu que ia dormir na casa dela para lhe proteger melhor.

– Não precisa, Mô! Meus pais vão estar em casa!

– Precisa sim! As meninas foram raptadas porque ficaram sozinhas, então eu vou ficar com o olho grudado em você o tempo inteiro. Aí eu quero ver algum maluco tentar te pegar!

As duas andavam apressadamente. Quer dizer, Magali andava, já que mal podia esperar para chegar em casa. Mônica corria atrás dela insistindo no plano de dormir na sua casa.

– Eu vou só pegar umas coisas e avisar meus pais, depois do jantar eu vou pra sua casa.

– Mas...

– Não tem mas. Não vou deixar você correndo perigo.

Mônica foi para a casa dela, deixando Magali frustrada. Ela não queria ninguém dormindo no seu quarto vendo-a trabalhar nos vestidos. Mas por que isso lhe incomodava? Afinal, Mônica já tinha dormido na casa dela tantas vezes, uma a mais ou a menos não ia fazer diferença alguma. E ela não queria ficar desprotegida sabendo que tinha um tarado andando a solta por aí.

Era um conflito estranho. Por um lado, ela queria a companhia da Mônica. Por outro, queria ficar sozinha. Ela segurou a cabeça com as duas mãos para fazer parar aquela dor desagradável e foi para casa. Talvez um bom analgésico pudesse resolver tudo.

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– Ela tá muito estranha mesmo! – Sarah falou olhando Magali por detrás de um carro junto com Victor. - Ela parece tão confusa, como se não soubesse o que fazer.

– Igual você viu na carta. O que pretende fazer?

– A Mônica vai ficar de olho nela enquanto o Cebola faz pesquisas. O Cascão falou que vai montar acampamento do lado de fora da casa dela, abaixo da janela do quarto. Isso deve resolver.

– Então acho que você não tem nada a fazer aqui. Melhor ir para casa que está ficando tarde.

Os dois saíram de trás do carro.

– Eu vou. Acho que seria bom olhar as cartas para ver se descubro mais alguma coisa. Seria tão bom se eu pudesse descobrir de uma vez onde elas estão!

– Isso é trabalho do seu amigo. O seu é descobrir o passado e resolver um assunto inacabado.

Os dois foram embora dali e Sarah se perguntava qual assunto inacabado ela tinha que resolver.

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Em seu quarto, Cebola lia vários livros que tinha pegado na biblioteca, juntamente com o resultado das pesquisas que fez na internet. Felizmente a história daquela cidade tinha sido bem registrada e não foi muito difícil descobrir mais informações sobre a fazenda de cana de açúcar.

– Aqui está: fazenda São Lucas. Eles produziam cana para a fabricação de açúcar e também criavam gado leiteiro. Eram muito ricos e poderosos, só que a fazenda já não existe mais. Que droga!

Com o tempo, a fazenda foi diminuindo de tamanho, terras foram vendidas, a vila foi crescendo até se tornar uma cidade. Por fim, o que restava da fazenda foi vendido e já não sobrava mais nenhum vestígio dela. Como encontrar um lugar que não existia mais?

– Espera, eu não tô pensando direito! A fazenda sumiu, mas pode ter ficado alguma coisa no lugar. Talvez um prédio, alguma construção... só preciso saber em que ponto da cidade ela ficava!

Ele consultou mapas dos livros, referências e relatos. Era muito material para estudar em tão pouco tempo. Se ele não fosse tão organizado e acostumado com grandes pesquisas, teria se perdido totalmente. Também havia fotocopias dos jornais da época que ele lia avidamente a procura de alguma notícia que pudesse esclarecer algo. Passava das dez horas da noite e ele continuava estudando sem descansar.

– Deixa eu ver... parece que a fazenda estava no auge por volta de 1850 até 1890, quando começou a decair. Deve ser por causa da Lei Áurea em 1888, eles ficaram sem mão de obra e não conseguiram se adaptar as mudanças. Acho que os negócios não iam bem e eles não puderam pagar a mão de obra dos imigrantes italianos.

Havia muitas notícias sobre o dono da fazenda, que era rico e influente, também tinha sua esposa e duas filhas. Também havia uma foto da família em preto e branco e de péssima qualidade que não revelou nada de interessante. Mas uma notícia datada de 25 de fevereiro de 1879 chamou sua atenção. A filha de uma das empregadas desse casal tinha desaparecido e nunca mais foi encontrada. A razão de tal coisa ter chamado tanto a atenção era porque havia ciganos acampados nas redondezas e as pessoas sempre acreditaram que eles raptavam crianças. O povo da cidade deduziu que eles tinham raptado a menina embora não tivessem provas e ela nunca fosse encontrada. Fora isso, não houve mais nenhuma informação.

– Uma menina... espera, a Sarah não falou que tinha a voz de uma menina no sonho?

Seu cérebro começou a trabalhar ainda mais. Uma menina que chorava e implorava no meio do frio e da escuridão, sendo judiada por uma mulher perversa. Depois aparece um homem repreendendo a esposa por ter exagerado no castigo da menina a ponto de matá-la. Por fim a esposa sugeriu que eles escondessem o corpo e culpassem os ciganos. Céus, parecia até um daqueles seriados de investigação!

– Beleza, mas o que isso tem a ver com o rapto das meninas? A não ser que elas estejam no local onde a fazenda ficava. Ainda assim não entendo por que a gente precisa saber dessas coisas do passado... isso não faz sentido!

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Marina lutava para libertar as amigas, mas era difícil trabalhar com uma mão só já que a outra aparentemente tinha quebrado alguns ossos. Ela usava um pedaço de tábua quebrada que tinha pontas afiadas para ver se conseguia algum resultado. Primeiro ela tentava libertar Maria, já que Denise estava em péssimo estado e ela não confiava que Carmem fosse ficar ali e ajudá-la a libertar as outras.

– Por favor, Marina, corre! Já anoiteceu! – Maria implorava já imaginando o que ia acontecer se aquela mulher chegasse naquele momento. Pelo menos Marina tinha conseguido tirar o esparadrapo da boca das amigas e assim Denise pode respirar melhor. Mas ela ainda estava muito mal.

– Calma, eu tô quase lá! Depois você vai ter que me ajudar a soltar as meninas! Minha outra mão nem responde mais!

Trabalhar sob aquelas condições já era difícil. Fazer tudo sob o choro, gritaria e lamentos da Carmem era pior ainda. Droga, por que ela foi tirar o esparadrapo da boca dela?

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Assim que terminou o último vestido, Magali guardou o material de costura para alívio da Mônica, que já estava morrendo de sono.

– Puxa, não sei por que você quer tanto fazer esses vestidos. – era só uma forma suave de falar que aqueles vestidos eram tão feios que fazê-los era total perda de tempo.

– Porque são lindos e parecem de boneca! Olha esse! Ficaria lindo em você, não ficaria?

Mônica torceu um pouco o nariz para aquela coisa remendada e suja, mas tentou não magoar a amiga que parecia cheia de boas intenções.

– É bonito sim, mas vamos dormir.

– Você não quer provar?

– Amanhã eu provo. – ela já estava bocejando.

– É rapidinho! Por favor, vai! – Magali fez aquele beicinho que amolecia qualquer um, inclusive a Mônica. Por fim, ela cedeu.

– Aff, tá bom. Me dá isso aqui.

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Sarah estava tirando as cartas quando sentiu um sono incontrolável. Era como se algo apagasse sua consciência pouco a pouco e ela não conseguiu fazer nada além de debruçar sobre a mesa e dormir profundamente. Quando seus olhos fecharam, ela se viu arremessada pelo tempo e espaço até parar em um quarto decorado de forma bem ultrapassada embora os móveis não fossem velhos.

Havia uma cama de madeira escura de estilo império e laterais na forma da cabeça de cisne. Também tinha um móvel que parecia ter sido feito da mesma madeira da cama e tinha um castiçal sobre ela, junto com alguns objetos de decoração antigos. O chão era de madeira um pouco mais clara que parecia ter sido encerada de forma rústica. Era como se ela estivesse no casarão de uma fazenda do século 19.

A penteadeira ficava no outro lado do quarto, tinha um espelho e algumas escovas, pó de arroz, carmim e batom. No chão tinha um tapete e dois quadros na parede, juntamente com um crucifixo que ficava sobre a cabeceira da cama. Sobre outra mesa, um jarro e uma bacia de porcelana onde as pessoas deviam lavar as mãos antes de dormir. Era um quarto que parecia bem requintado, considerando os padrões da época. Mas o que chamou sua atenção, contudo, foram algumas bonecas que havia dentro de um grande baú de ébano que estava aberto.

Eram duas bonecas de papel marchê, três de madeira e duas de porcelana. As bonecas pareciam novas e foram guardadas com muito cuidado. Seria ali o quarto de uma menina? Não... a cama parecia ser de casal.

A porta abriu rangendo levemente, fazendo-a levar um susto. Se fosse pega ali... mas não, ela não foi vista. Uma garotinha entrou no quarto e passou diretamente por ela sem vê-la e foi até o baú de bonecas, contemplando tudo com o rosto fascinado.

Pelas roupas, Sarah deduziu que não se tratava da filha dos donos da casa. A menina usava um vestido grosseiro de algodão, tinha um lenço amarrado na cabeça e andava descalça. Ela também tinha a pele negra, olhos levemente castanhos e o rosto sofrido de uma criança que nasceu sem nenhum direito e teve que enfrentar uma vida dura desde o nascimento. Certamente a filha de uma das empregadas. Ou escravas, como diziam na época. Isso fez com que uma onda de indignação percorresse seu corpo. Escravidão era algo abominável não importando qual fosse a época.

Sem notar sua presença, a menina tirou uma das bonecas do baú e a segurou nos braços como se fosse um bebê e embalou suavemente, fazendo com que o coração de Sarah doesse. Pobre criança! Nunca teve nenhum brinquedo na vida. Nunca teve nada!

Era só uma menina de dez anos tentando ser criança ao menos um pouco. Ela sorria para a boneca enquanto ninava suavemente. Seu rosto parecia feliz, tão bonito e pacífico quanto o de uma boneca.

– O que estás fazendo? – uma voz ecoou pelo quarto e Sarah viu uma mulher usando roupa típica do século 19 entrando como um foguete com os olhos faiscando de raiva. Ela tinha a pele branca, cabelos castanhos e parecia muito zangada.

Com o susto, a menina virou-se rapidamente e deixou a boneca cair. Sarah viu o brinquedo caindo em câmera lenta até atingir o chão, partindo-se em pedaços já que aquele tipo de boneca não era resistente. Isso foi o suficiente para enlouquecer a mulher.

– Menina ruim! Ordinária! Tu vais pagar por isso!

– Perdão, sinhá! Eu...

Sem ouvir seus apelos, a mulher a pegou pelo braço e levou dali puxando bruscamente.

O tempo avançou um pouco e Sarah viu a criança sendo amarrada numa árvore. Aquilo era horrivelmente familiar e ela não sabia se queria ver o resto.

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Ela tirou a camisola e colocou o vestido mostrando visível desagrado que Magali parecia ignorar.

– Ai, que lindo! Agora deixa eu colocar esse laço na sua cabeça.

– Laço?

Sem ligar para o espanto da amiga, Magali penteou seus cabelos e amarrou um grande laço de fita. Ela também amarrou algumas fitas no vestido e fez uma leve maquiagem na Mônica, pintando as maçãs do rosto de vermelho e passando um batom na sua boca.

– Pronto! Olha que boneca linda você ficou!

– Boneca?

– Eu achava que só bonecas de cabelos compridos ficavam bonitas, mas você também ficou linda! Seu cabelo é tão bonito!

– Como é? Magali, do que você tá falando? Não tô entendendo nada... nossa, que ventinho frio é esse? Magali? O que...

Tudo apagou de repente.


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