Mariana escrita por Mayor Hundred


Capítulo 1
Paredes


Notas iniciais do capítulo

Para Mariana.



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Dorme todas as noites na companhia da parede.

Bem encostada, encolhida no canto da cama. Cama de casal. A de solteiro se cansou da solidão. Gostava de sentir algo firme em seu corpo. E o friozinho do canto do quarto, que gradualmente ia esquentando por sua influência.

Briga com o celular, que desperta incessantemente e ela sempre quer voltar a dormir. Mas sabe que depois da terceira “soneca” tem que levantar, ou chegará atrasada.

E levanta.

Encara a parede e o espelho pequeno do banheiro, enquanto a água corre pelo seu corpo. Às vezes, nos seus piores dias, só percebe que acordou quando está no meio do transporte. E olha para baixo imediatamente, se preocupando se vestiu as calças antes de sair de casa. Antes, talvez em outra vida, acordava um tanto mais cedo para se maquiar.

Agora não mais.

Não faz sentido usar maquiagem e colocar uma máscara por cima. Porque assim que descia do seu ônibus e fazia a caminhada usual de vinte minutos, vestia uma máscara de carne e se tornava Mariana, a vendedora. Sorridente, simpática, acolhedora. E quando chegava perto do meio dia, e os seus colegas de profissão a chamavam para almoçar, outra máscara lhe servia. Mariana, a amiga. Observadora, reservada, boa ouvinte.

E então voltava para o seu balcãozinho. Com a camiseta meio apertada, uniforme padrão da empresa, e um sorriso standard no rosto. Nos seus melhores dias, poucos clientes apareciam. E ela encarava a parede. Podia se permitir deixar a mente voar para longe. E enxergar além da própria máscara.

Quem era ela debaixo da máscara?

Mariana talvez era só mais uma camada desse disfarce. Um nome que nunca escolheu. Então na camada mais profunda fosse Maria, Ana, ou Maria Ana. Ou talvez ela fosse mais do que um nome. Fosse a voz dentro de sua cabeça, ou os sentimentos confusos que a atormentavam, ou o seu corpo tão parecido com tantos outros, mas tão singular. Ou tudo isso.

Ou nada.

E com esses pensamentos na cabeça, ia para casa. Não sem antes enfrentar vinte minutos de caminhada, e mais um ônibus lotado.

Às vezes, nos seus melhores dias, debruçava em sua mesinha e conseguia fazer desenhos. Quadrinhos. Sempre tão pessoais que tinha vergonha. A maioria ia para a gaveta, mas alguns poucos eram colados na parede.

Os seus quadrinhos eram ela, então.

Guardada na gaveta. Exposta na parede.

E então se deitava, de olhos bem fechados e com a luz apagada. Se acolhia ao frio confortável da parede, e, nos seus melhores dias, podia ouvir a sua vizinha ao lado. Dividiam mesma parede, e Mariana imaginava que, do outro lado, era o quarto da mulher. Imaginava isso porque a ouvia gemer.

Sequer sabia o nome da moça, mas a conhecia intimamente. Sabia que ela gostava de xingar quando estava perto do clímax, por exemplo. Como fazia agora. E Mariana, a voyeur, a acompanhava. Tocava-se em sua intimidade, e, nos seus melhores dias, gozava junto com ela.

E depois do orgasmo chorava, sempre.

A vizinha não. Dizia que amava o sujeito, e depois trocava-o. Mas Mariana, a solitária, chorava. As lágrimas não vinham por causa da masturbação que, mesmo com orgasmo, nem sempre tinha prazer. Vinham na constatação pessoal de aquele ter sido o contato mais íntimo no dia.

E então olhava para a parede, a um dedo de distância do seu nariz e tentava ver a si mesma. Quem era Mariana?

Não era o seu nome. Não era o seu emprego. Não era o seu corpo. Não era a sua consciência. Não era os seus quadrinhos.

Por trás de tantas máscaras e paredes, achou tê-la perdido.


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