Entropia escrita por Reyna Voronova


Capítulo 70
LXII - Entropia


Notas iniciais do capítulo

The end is nigh.

https://www.youtube.com/watch?v=3-rYQRxzaJM
Beach House - 10 Mile Stereo.

https://www.youtube.com/watch?v=N2SW_MWBa6w
HOME - Decay.



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LXII

Entropia


"They say we will go far, but they don't know how far we'll go

With our legs on the edge and our feet on the horizon..."¹

— Beach House; 10 Mile Stereo.


Sentada na Beirada do Mundo, Annik contemplava o universo infinito diante dela.

Não havia mais Rodovia, Deserto, Tundra, nada. Depois daquele ponto, havia apenas o vácuo do universo, a matéria escura e pontos brancos de estrelas cintilando ao longe. Seus pés não se apoiavam em nada que fosse tangível. Parecia uma criança pequena sentada numa cadeira muito alta, com as pernas balançando alegremente.

Aquela era, literalmente, a Borda do Mundo. Era um precipício para o espaço, uma fenda do Mundo, um abismo sem fim. E também era o último destino de Annik, o destino que procurara durante toda sua vida no Deserto. Não havia para onde prosseguir dali — o caminho seria sem volta, se o tomasse. Depois dali, só poderia voltar para onde começara, se conseguisse voltar.

Naquele ponto, sentia seus pensamentos muito mais líquidos do que antes. Pareciam pensamentos como os que se tem quanto se está prestes a dormir, naquele estágio que beira a inconsciência. Era o Caos fazendo efeito, liquidificando sua mente e transformando-a numa batida de pensamentos. Sentia que, a qualquer momento, seus pensamentos iriam passar da forma líquida para gasosa e escapariam de sua mente a ponto de ela não poder segurá-los mais. Mas ela não ligava para o fato de suas memórias irem embora. Que fossem, na verdade. A maior parte delas não lhe faria falta. Seus pensamentos com Adam, com a Legião, de suas batalhas... Estaria melhor sem eles. Todos eles lhe causavam muita dor, e ela não apenas não se importava como adoraria que eles fossem embora. Todos aqueles momentos que vivera e que contribuíram para a equação cujo resultado era o seu presente, mas que preferiria esquecer para sempre.

Exceto os pensamentos com a Menina. Nem todos os momentos que passara com ela foram bons, mas foram os únicos momentos de sua vida em que Annik se sentiu bem. Não em todos eles, também, mas pelo menos não estragara tudo como fizera com Adam. A Menina agora estava livre do Caos que infectava a mente de Annik e só de pensar que pelo menos uma vez na vida conseguira agir decentemente com outra pessoa fazia todos os momentos com ela serem dignos de serem recordados.

Mas se o pior acontecesse, pelo menos dormiria bem. Não sem arrependimentos, mas suficientemente bem para conseguir pegar no sono. Saber que Alice estaria bem e também ter chegado ao seu destino final lhe acalmava, lhe dava a sensação que tanto procurara: a de estar completa. Tudo bem que tinha estragado tudo com Adam e com todas as outras pessoas que ceifara de maneira ainda mais cruel que a própria morte, mas ter agido corretamente com a Menina fazia-a se sentir bem consigo mesma. Ou pelo menos, se sentir menos pior. E ter chegado ao Fim era o seu único objetivo naquele mundo. Agora que o havia completado, não havia mais nada que queria. Poderia dormir, talvez morrer, em paz.

— Está pensando no futuro, senhora Annik? — uma voz muito grave surgiu por trás de si, e junto com ela, um toque muito rude em seu ombro. Annik conhecia muito bem aquela voz e as memórias que ela trazia eram as que ela mais queria que se desvanecessem, que se tornassem gás e escapassem de sua mente. Porém, não lhe respondeu. Não havia o que responder a Oneiros, o Príncipe do Sono. Vendo que Annik não fazia menção de responder-lhe, Oneiros prosseguiu: — Você descumpriu meu trato, e agora eu venho cobrar-lhe.

— Como eu posso ter descumprido seu trato?

— Eu lhe tirei os sentimentos, e você agora voltou a sentir. Tudo culpa daquela menina que estava consigo. Ela pôs humanidade na sua cabeça, pelo visto. Não posso esconder que ela fez um grande serviço para o Mundo consertando todas as suas falhas, mas um trato é um trato, não é mesmo, Annik?

— Faça o que quiser comigo — disse, apática. — Apenas não toque em Alice. Até porque você não vai conseguir, se tentar. A esta altura, ela já deve estar longe daqui, longe deste mundo.

— Meu trato não era com ela. Era com você. Eu não faria isso que você está pensando a ela. Jamais machucaria alguém que não tem nada a ver com a história. Se eu for machucar alguém, será você.

— Então machuque.

Imediatamente, Annik sentiu algo a agarrando pelo pescoço e levantando-a. A enorme mão de Oneiros a segurava tão alto que seus pés balançavam no ar. Annik começou a tossir e a se debater, enquanto um uma face sem rosto a encarava.

— Eu... cof, cof... E-eu não tenho culpa! — Annik tentou arranhar a mão de Oneiros, retirar seus dedos de seu pescoço, mas tudo foi em vão, porque ele sequer pareceu sentir dor. — O q-que você queria... cof... q-q-que eu fizesse...?

RESISTISSE!! — o berro de Oneiros foi tão estrondoso que teve o impacto de um terremoto. — Sabe, eu acho que você já imaginava que eu fosse aparecer aqui. Você está apática demais desde a última vez que nos encontramos, se lembra?

— Eu não estou apática... — Annik reuniu fôlego para dizer aquilo sem falhar. — Eu só... só não tenho mais medo.

— Se não tem mais medo, então você já está pronta para pagar o que me deve. — Oneiros caminhou em direção ao precipício, ainda segurando Annik pelo pescoço, mas antes de soltá-la em direção a uma queda eterna, ele ponderou: — Sabe, Annik, eu nunca te odiei como o resto do Mundo. Talvez eu não queira finalizar sua vida desse jeito. — Oneiros virou-se, dando às costas para a Beira do Mundo, e puxou uma espingarda de cano serrado de suas vestes que eram tão grossas que pareciam ter sido feitas para resistir ao frio da Tundra, não ao Deserto. Ele apontou a espingarda um pouco abaixo do estômago de Annik, que tentou tirar seu revólver discretamente da calça. — Talvez dessa forma você tenha uma morte digna de uma Kra’vstanlas. — Annik conseguiu alcançar seu revólver, porém, assim que ela o tirou de sua calça, Oneiros atirou.

Se os pensamentos de Annik antes pareciam estar se fundindo em sua mente, agora eles pareciam escorrer para fora de seu corpo através do grotesco ferimento que o tiro da espingarda lhe causara. A dor não era nada que a incomodava demais. A verdade é que doía, doía muito, doía de um modo que nenhum ferimento que tinha sofrido antes tinha doído, e olha que já tivera incontáveis outros machucados. Contudo, ele era a menor de suas preocupações. Não havia mais preocupações, na verdade. Oneiros poderia fazer o que bem quisesse com ela, desde que não tocasse, não ousasse pensar em fazer mal à Menina.

— O q-q-q... quê...? Kra’vstanlas...? — Annik reuniu forças para fazer com que sons saíssem de sua boca, porque aquilo nem se igualava ao ato de “falar” propriamente dito.

— Mestre Alexander sabia e nos contava de seus estudos sobre isso — Oneiros continuou. — Ele nos dizia sobre suas descobertas, mas ninguém lhe dava ouvidos. Eu confesso que desdenhei de suas descobertas, mas quanto mais ele nos contava, mais fazia sentido para mim. E quando eu soube de você, então, aí que as coisas fizeram ainda mais sentido. Mestre Alexander sempre nos disse que o Kra’vstanlas era uma pessoa capaz de feitos incríveis e indescritíveis. A única pessoa que me vinha à memória quando eu pensava em alguém assim era você. E então ele nos contou sobre a relação que os nomes têm com os universos além deste e, bom, quando eu descobri sobre a tal menina sem nome que estava com você, eu não tive dúvidas. E creio que ele também não.

“Mas vocês não pararam para pensar que, se você e aquela garota são a mesma pessoa de universos diferentes, você também é a Kra’vstanlas. Na verdade, você é a única Kra’vstanlas. Aquela garota apenas caiu aqui para avisá-la disso. Antigamente eu achava que as pessoas caíam aqui sem motivos, mas agora... Talvez existam razões que ainda não conhecemos. Ou melhor, que eu ainda não conheço, porque você jamais as conhecerá.”

— S-se você me matar, então... cof... seguindo sua lógica... — Annik suspirou —... você vai condenar o M-Mundo... ao Caos.

— Eu não me importo. Este Mundo já é caótico. Que mal um pouco de caos irá trazer a ele? Espere. — Oneiros olhou bem na direção do revólver de Annik, que cintilava na escuridão daquela noite. — O que é isso?

Antes que ele pudesse perceber claramente o revólver, Annik o ergueu e puxou o gatilho. A bala acertou a testa do Príncipe do Sono, que foi cambaleando para trás até que pisou em falso e caiu pela Beirada do Mundo.

Annik não chegou a ouvir seus gritos. Talvez ele não tivesse gritado, afinal. Talvez o universo tivesse engolido seus sons e sua existência. Ou talvez ela já estivesse ficando num estágio de inconsciência e, com o Caos ainda a afetando, não mais conseguia ter pleno controle de seus sentidos.

Deitada no chão, ali ficou, observando o céu estrelado do Deserto acima dela e a Borda do Mundo ao seu lado. O céu do Deserto parecia clarear. Tudo continuaria seguindo seu ciclo sem regras: noite e dia, mas não sem grandes nuvens escuras.

Annik sentiu seu nariz sangrar, porém não imaginou que tinha sido o tiro que levara que fosse a causa daquele sangramento. Era o Caos. O Caos ainda permeava o Mundo e o devorava pelas beiradas. Annik, mesmo sendo a Kra’vstanlas, não tinha conseguido impedi-lo. Não que aquilo fizesse muita diferença. Para ser sincera, estava começando a acreditar que aquilo era apenas uma lenda, e que o Caos era o destino daquele Mundo. Tudo tinha um fim, não era mesmo? Mas tudo tinha um recomeço, também. Talvez seu recomeço fosse a Menina. Outra Annik em outro universo, com sorte um mais favorável que aquele em que estava.

Annik conseguia ignorar a dor àquela altura, mas não conseguia ignorar o sono arrebatador que tomava conta de suas pálpebras. Não sabia se era o seu sono verdadeiro voltando após a morte de Oneiros, o sono da morte se aproximando ou o Caos brincando com seus sentidos. Seja lá qual opção fosse, ela já estava pronta para dormi-los e sonhar neles.

ANNIK!!! — um grito agudo surgiu da Rodovia, de onde ela tinha vindo, pegando Annik de surpresa e cortando, mesmo que brevemente, os efeitos do sono que sentia.

— A-Alice...? — Sim, era Alice. Pôde vê-la em sua direção, com os olhos arregalados ao vê-la naquele estado caótico, prostrada no chão em agonia. A Menina se aproximou dela e agachou-se ao seu lado, acariciando seus cabelos.

— Annik... O q-que houve? — Ela colocou a mão calmamente sobre seu ferimento. Tão leve eram suas mãos que Annik não sentiu dor.

— Não se preocupe... Eu vou ficar bem... — Tentou repreender um gemido de dor que estava na garganta, mas Alice percebeu antes.

— Não... — Lágrimas corriam pelas bochechas da Menina. — Não, Annik, vem comigo. Se você vier comigo, talvez a gente encontre um jeito de te ajudar!

—... T-tudo bem... Mas p-posso dormir um pouco antes...? S-só... um pouco... — Seus olhos já pesavam muito. Não era nem mesmo a dor que fazia sua fala ficar entrecortada daquela maneira, mas sim o sono e o Caos.

— Annik...

— Eu vou ir... Vou estar logo atrás de você... Mas eu realmente preciso... preciso dormir um pouco... — Parecia que todas as noites, dias e tardes de sono que nunca tivera a atingiam naquele momento como socos na face. Mas iria só dormir um pouco, só um pouquinho... E iria ir com ela, então. De qualquer forma, iria ir com ela, não era mesmo?

Pôde perceber coisas como as lágrimas brilhantes nos olhos de Alice, a careta de tristeza profunda que ela fazia e os olhos escuros, idênticos aos seus. Todas aquelas cenas pareciam flashes de memórias que se derretiam em sua mente.

— V-você tem que ir, Alice... — Annik continuou. — O navio... Ele vai partir... J-já está amanhecendo...

— Eu sei, eu sei. — A Menina abraçou Annik carinhosamente uma última vez e depois beijou sua testa, acariciando seus cabelos sujos de areia. — Mas por favor, vem comigo. Você... tá machucada... Annik, o que...

— Shhh... Não ligue p-pra isso... E-eu já disse... Vou ir logo depois de você...  M-mas antes de ir... Meu chapéu... Alice... — Annik tentou tirar a sua boina da cabeça, mas lhe faltavam forças para isso. A Menina, entendendo o que ela queria dizer, tirou a boina da cabeça dela e a vestiu. Annik não pôde esconder o sorriso quase instantâneo quando ela colocou a boina sobre a cabeça. Sorrir doía, mas valia a pena sorrir para a Menina. — Você se parece tanto comigo... — A Menina sorriu de volta. Um sorriso triste, porém, envolto em lágrimas, soluços e gemidos de tristeza.

— Eu vou estar esperando por você, okay?

— T-tudo bem. — Sorriu mais uma vez, e mais uma vez sentiu uma pontada aguda abaixo do estômago. A Menina acenou mais uma vez. Annik também acenaria se não estivesse absorta pela dor e pelo sono. — Alice...

— O quê? Fala, Annik.

— Tudo... tem um recomeço...

Alice pegou em sua mão ensanguentada e respondeu, ainda com o sorriso triste estampado no rosto:

— Eu sei... Eu sei.

Alice levantou-se, e Annik não pôde deixar de se ver nela. Ela era como uma versão bem mais jovem de si mesma. Com a boina, então, eram ainda mais parecidas. Praticamente clones uma da outra. Como pôde ter sido cega por tantos tempos?

It utrat vus — Annik disse pela última vez. A Menina olhou fixamente para ela e assentiu e sorriu, como se tivesse entendido o que ela quis dizer. Então deu meia-volta e correu na direção de onde tinha vindo. Correu em direção do navio voador que iria levá-la para casa. E Annik iria com ela, é claro. Mas não antes de dormir o sono do qual fora privada por tantos tempos.


E então, seus olhos se fecharam, e ela embarcou num escuro, porém confortável sono.


“Sun’s coming up now

I guess it’s over…”²

— Tame Impala; Sun’s Coming Up.


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Notas finais do capítulo

¹"Falam que vamos longe, mas não sabe o quão longe nós vamos / Com nossas pernas na beirada e nossos pés no horizonte...".

²"O sol está nascendo agora / Eu acho que é o fim...".

https://www.youtube.com/watch?v=WLKuM1aAfwQ
Tame Impala - Sun's Coming Up.



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